Em julgamento pela invasão de Brasília no 8/1, adventista vira símbolo da campanha por anistia incentivada por Jair Bolsonaro e apoiada pelo pastor Rodrigo Silva, comparando o STF ao regime nazista


Por Felipe Carmo, André Kanasiro e Jayder Roger | editores da revista Zelota.

Débora Rodrigues dos Santos, bolsonarista presa há dois anos, está sendo julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pelos crimes de associação criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado e dano qualificado por violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, durante os ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023. Sua participação nos atos é mais conhecida pela pichação da frase “perdeu, mané” na estátua “A Justiça”, em frente ao tribunal. 

A cabeleireira de 39 anos e membra da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) pediu desculpas ao ministro Alexandre de Moraes, alegando que não sabia do valor da estátua (estimado em R$ 2-3 milhões) e que outra pessoa a incentivou à pichação. Moraes votou pela sua condenação a 14 anos de prisão. De acordo com familiares, ela está arrependida, não concorda com sua condenação, mas ainda tem fé na justiça brasileira.

O julgamento, que começou em 21 de março no plenário virtual do STF, deve ser concluído até o dia 28, com votos pendentes de outros quatro ministros. A defesa argumenta que as únicas provas são imagens de Débora pichando a estátua com gloss labial e que a pena deveria ser mais branda. Moraes, porém, sustenta que ela participou ativamente dos atos antidemocráticos e foi responsável pelo vandalismo.

Em seus documentos oficiais, a IASD proíbe que seus membros participem de manifestações políticas e se envolvam em protestos dessa natureza. A despeito da popularidade do caso, a denominação não se manifestou publicamente sobre o assunto, a não ser o pastor e arqueólogo Rodrigo Silva, curador do Museu de Arqueologia Bíblica (MAB), que comparou a ação do STF à perseguição de nazistas contra judeus e comunistas na Segunda Guerra Mundial.

A publicação de Silva ocorreu após um pedido público do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro para que líderes religiosos se manifestassem a favor da cabeleireira em ato pró-anistia. O conjunto de manifestações ocorre às vésperas do julgamento do STF que decidirá, nesta terça (25), se Bolsonaro será réu sob a acusação de liderar a tentativa de golpe de Estado a partir de 2022.

Fonte: foto de Gabriela Billó, na Folha de S.Paulo

Fonte: foto de Gabriela Billó, na Folha de S.Paulo

Adventistas no 8 de janeiro

Na ocasião dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, a Zelota considerou — por falta de evidências — que não houve participação de adventistas no ataque aos três poderes, embora o crime tenha sido incentivado indiretamente pela IASD, suas lideranças e influenciadores. Essa participação seria apenas presumível, como ocorreu no dia 21 de janeiro de 2021, na invasão do Capitólio, em Washington, quando adventistas distribuíram cópias de O grande conflito — muitas das quais foram encontradas no chão, após os ataques.

Além de Débora, no entanto, outras evidências sugeriram o contrário. O caso mais divulgado foi o da cantora Junia Mesquita. Natural de Anápolis, município do interior de Goiás, a bolsonarista possui vasta experiência como cantora adventista. Ela já gravou dois CDs pela Gravadora Novo Tempo: Um toque de amor (de 1998) e Minhão mão em tua mão (de 2002); e já chegou a participar do programa “Caixa de Música”, em novembro de 2015. 

Na ocasião da tentativa de golpe, Mesquita participou da invasão e gravou alguns vídeos para o TikTok. Por conta da repercussão, eles foram apagados logo em seguida. Nos vídeos, a artista aparece em frente aos três poderes junto à multidão, cantando uma parte do hino da independência, “ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil”. Na primeira parte, a legenda corresponde ao dia da invasão, “08.01.23”, com a frase “amo passar essa vergonha patriota”.

A segunda parte descreve com mais detalhes a ocasião e o significado dela: Mesquita afirma estar “em frente à praça dos três poderes”, e que o restante dos manifestantes estavam a caminho pra declarar que o Brasil não será “governado pelo PT, partido das trevas, comunistas”. Por fim, a cantora acalenta a esperança de que a “direita não irá permitir” esse tipo de governo, e convoca seus seguidores à invasão golpista em nome da família e da nação.

Solidariedade ou oportunismo?

As redes sociais foram palco para demonstrações de solidariedade a Débora. Claudinei Candido da Silva, por exemplo, afirmou se corresponder por cartas com a condenada. Ele também teria agregado “advogados, empresários, pastores, psicólogos, jornalistas, enfermeiras, professores e pessoas comuns” para auxiliá-la espiritual e financeiramente. A solidariedade expressou pedidos de oração à família, ênfase em sua condição de mãe e mulher trabalhadora, críticas ao governo “comunista” de Luís Inácio Lula da Silva e às decisões condenatórias do STF. 

A solidariedade à cabeleireira também fortalece movimentos políticos à extrema direita para favorecer a lei pela anistia, no Brasil — uma proposta que visa perdoar ou absolver penalmente não só as pessoas envolvidas nos protestos e atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas invadiram e depredaram o Congresso, o Palácio do Planalto e o STF em Brasília, mas também os membros do governo Bolsonaro sob investigação por sua articulação para dar um golpe de Estado e assassinar opositores. Vídeos com os filhos de Débora, sua mãe ou irmã são compartilhados para comover o público com chamadas à ação “Anistia já!”, como fizeram os deputados federais bolsonaristas Carlos Jordy, Douglas Gomes, Eduardo Azevedo, para citar alguns exemplos.

O próprio ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, no dia 21 de março, criticou a decisão do STF, classificando-a como “desumana, desarrazoada e inacreditável”. Ele também ressaltou a condição de Débora como mãe de família e convocou seus apoiadores para um ato em defesa da anistia para o dia 6 de abril na Avenida Paulista, em São Paulo. O projeto de lei que propõe a anistia para os envolvidos nos atos de 8 de janeiro beneficia o ex-presidente e seus aliados, já que eles enfrentam processos relacionados aos ataques golpistas e a outros supostos crimes contra a democracia. 

No dia 23 de março, às 15h26, Bolsonaro chegou a publicar uma nota em suas redes sociais destinada a “pastores, padres e líderes espirituais de todo Brasil” para que clamem a Deus e orem por Débora dos Santos “e tantos outros políticos que hoje estão privados de sua liberdade”. Ele pediu para que os líderes fizessem menção aos presos em suas missas e cultos, e que fossem lembrados nas “reuniões de oração e de intercessão”.

Cumprindo o pedido do ex-presidente, Rodrigo Silva publicou um vídeo para expressar seu posicionamento sobre o caso. Ele afirmou que “não poderia ficar calado”, porque isso seria “covardia”. Embora cumpra com o pedido de Bolsonaro e fortaleça o discurso pró-anistia aos golpistas do 8 de janeiro, Silva explica não ter intenções ideológicas ou endosso à depredação de patrimônio público. Ao enfatizar sua preocupação com o “ser humano” — representado pela figura da cabeleireira como mãe de família — Silva convoca seus seguidores à oração. O vídeo do arqueólogo chegou a ser compartilhado nas redes sociais do filho do ex-presidente, Flavio Bolsonaro.

Ao se pronunciar, Silva contraria as orientações da IASD sobre manifestações políticas, que orienta seus pastores a não participarem de atividades político-partidárias, mantendo neutralidade. Segundo o documento, os pastores não podem fazer campanha por candidatos, usar púlpitos para discursos políticos, ou vincular a igreja a qualquer partido. A denominação também proíbe o uso de templos, redes sociais oficiais ou recursos institucionais para esses fins.

A despeito das proibições, Silva atua ao lado de figuras políticas de destaque no bolsonarismo e não evita publicar sua agenda política em tons de piedade cristã. Como já demonstrado pela Zelota, ele participou de encontros com a ex-primeira dama, Michelle Bolsonaro, durante viagem a Israel em 2022; e realizou um projeto em parceria com a ex-deputada bolsonarista Ana Campagnolo em um curso “antifeminista”, abordando temas como feminismo e cristianismo sob uma perspectiva conservadora.

No contexto das eleições brasileiras, em 2022, Silva publicou um vídeo intitulado “Em quem devo votar?”, argumentando que os cristãos, por serem maioria no Brasil, devem eleger candidatos que promovam seus valores morais, marginalizando minorias. Ele critica pautas progressistas, como direitos LGBTQIA+, combate à homofobia e políticas de inclusão, ridicularizando-as como “fobias” excessivas. Além disso, ele apoia discursos bolsonaristas como a oposição ao aborto e a defesa da “família tradicional”, enquanto rejeita a separação entre Igreja e Estado, defendendo que a política deve favorecer a maioria cristã. 

Quem são os nazistas?

Para corroborar seu posicionamento no último vídeo, Silva começa citando o teólogo luterano Martin Niemöller, ex-simpatizante do nazismo que passou à resistência com a ascensão de Hitler. Nas palavras de Silva, a citação — “Primeiro eles vieram buscar os comunistas, e eu fiquei calado, porque não era comunista […]” — parece sugerir que a ação do STF e a prisão de Débora têm alguma relação com o regime nazista e sua perseguição contra judeus e comunistas na Segunda Guerra Mundial.

À parte da citação de Niemöller, o influencer jamais demonstrou solidariedade aos “comunistas”de sua própria denominação.1 Ao mesmo tempo, como porta-voz da extrema direita, Silva compara o STF a nazistas em nome de uma suposta legalidade democrática. Ao analisar os novos movimentos filonazistas de extrema direita que fervilhavam na Alemanha vinte anos após a Segunda Guerra, o intelectual Theodor Adorno2 dizia que

todas as expressões ideológicas do radicalismo de direita são caracterizadas por um conflito permanente entre o não-poder-dizer e aquilo que, como disse um agitador recentemente, deve fazer a audiência ferver […] Ora, esse conflito não é somente externo, mas a coerção à adequação às regras do jogo democrático significa também uma certa alteração nos modos de comportamento […] Desaparece o que é abertamente antidemocrático. Pelo contrário: evocam sempre a verdadeira democracia e acusam os outros de antidemocráticos.

Esta mesma tática discursiva é utilizada pela articulação militar-bolsonarista, que  reivindica legitimidade democrática para seus planos golpistas. Mas o que Rodrigo Silva, assim como seu titereiro Jair Bolsonaro, “não pode” dizer? Em primeiro lugar, não podem dizer a verdade; ao contrário do que alega Silva, Débora não é ameaçada de 14 anos de prisão por passar batom em uma estátua, e sim por sua participação em uma tentativa fracassada de golpe de Estado.

Esta tentativa era muito maior do que a invasão de Brasília por civis indignados e inofensivos; os invasores partiram de acampamentos mantidos por meses na frente de quartéis a clamar por um golpe militar, sendo defendidos oficialmente pelas Forças Armadas e operados em aliança com o Exército. Quando a invasão foi desbaratada e os golpistas fugiram de volta para seus acampamentos, foram protegidos pelos militares, que não permitiram a entrada da polícia no acampamento para prender os invasores.

A invasão de Brasília compunha o detalhado plano golpista da cúpula bolsonarista-militar, que também previa o assassinato do presidente Lula, do vice-presidente Geraldo Alckmin, e do juiz do STF Alexandre de Moraes, e o qual, em vias de se realizar, só não avançou devido à covardia de parte da cúpula golpista. Essa covardia parece ser a regra: a mesma cúpula bolsonarista-militar que usou uma cabeleireira, armada com um batom, como bucha de canhão para a invasão de Brasília enquanto agia em outras frentes, quer usá-la como cobertura enquanto clama por anistia para crimes ainda mais graves.

Acontece que — e este é o grande tabu indizível, o buraco negro na sombra de Débora que Rodrigo Silva não se atreve a olhar — os políticos e militares que clamam por anistia o fazem no mesmo espírito de seus antecessores:3 os militares que deram um golpe de Estado em 1964 e, após instalarem um regime em que o desaparecimento e a tortura de dissidentes foram a regra,4 anistiaram a si mesmos por manter o povo na miséria, torturar e assassinar mulheres e crianças, e são hoje celebrados como salvadores da pátria por seus herdeiros enquanto desfrutam de suas aposentadorias. 

Acostumados a não responderem por seus crimes — como não responderam pela morte de 700 mil brasileiros na pandemia de COVID-19 —, não suportam a possibilidade de que os “campos de concentração” brasileiros, reservados para pretos e pobres presos sem julgamento, também sirvam para eles. Clamam por anistia, no mesmo espírito do nazista Carl Schmitt, que, recusando-se a desnazificar após o fim da Segunda Guerra, escreveu que “após o restabelecimento de condições normais, ninguém mais pode ser punido em razão do fato de ter estado do lado errado.”5

O caso de Débora Rodrigues dos Santos, longe de ser um caso de perseguição, é mais um capítulo da estratégia bolsonarista de transformar civis em mártires convenientes, enquanto para o bolsonarismo e militares pouco importam as vidas e famílias dos civis que usam como massa de manobra. Na mobilização da extrema direita, a adventista não passa de uma palavra de ordem. Já Rodrigo Silva, ao vestir seu discurso de preocupação humanitária, não só desrespeita as diretrizes de sua própria denominação, como também colabora com a narrativa que busca reescrever a violência do 8 de janeiro como mera “defesa de valores”.

Notas:

1. Já reportamos muitos casos nos quais líderes e pastores de extrema direita no Brasil perseguiram membros leigos e pastores mais progressistas (como o caso do CAJU, o caso de Gilson Grüdtner, de Apolo Streicher, da censura ao grupo Vocal Livre, e o caso emblemático da Nova Semente [1] [2] [3]). Nestes casos, quando apareceu, Rodrigo Silva o fez legitimando (mesmo que indiretamente) a repressão institucional e os ataques de influenciadores.

2. Theodor W. Adorno, Aspectos do novo radicalismo de direita (São Paulo: Editora Unesp, 2020), p. 63-64. Grifos nossos.

3. A respeito do legado da ditadura militar nas Forças Armadas, ver André Ortega, Pedro Marin, Carta no Coturno: A Volta do Partido Fardado no Brasil (São Paulo: Baioneta, 2019); Pedro Marin, Aproximações sucessivas: O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III (São Paulo: Baioneta, 2023).

4. Embora o relatório final da Comissão Nacional da Verdade tenha listado “só” 434 mortos e desaparecidos políticos, não há medida oficial da quantidade de presos e torturados arbitrariamente pelo regime. Só nos primeiros meses após o golpe de 1964, por exemplo, mais de 50 mil pessoas foram presas. Cf. Paulo Arantes, “1964, o ano que não terminou”, p. 205, n. 3. Em O que resta da ditadura: a exceção brasileira (São Paulo: Boitempo, 2010), p. 205-236.

5. O nazista sendo o famoso intelectual Carl Schmitt. Citado por Felipe Catalani, “Depois da meia-noite no século: Adorno e as análises do fascismo”, p. 28. Em Theodor W. Adorno, Aspectos do novo radicalismo de direita, p. 11-42.