No adventismo brasileiro, interpretações proféticas conservadoras transformam a “besta do abismo” em um instrumento de guerra cultural contra o progressismo e alimentam cismas internos


Por André Kanasiro e Felipe Carmo | editores-chefe da revista Zelota.

Diretamente das profundezas do sheol, o adventismo brasileiro revive um delírio profético que associa a “besta do abismo” (Ap 11.7; 17.8) com movimentos progressistas e o “marxismo cultural”. Esta narrativa é propaganda primariamente por Michelson Borges, editor da Casa Publicadora Brasileira (CPB), conhecido há décadas por promover teorias da conspiração religiosas a respeito da manipulação midiática.1 Sua interpretação profética está alinhada a uma agenda denominacional que condena, persegue e pune qualquer manifestação considerada excessivamente “esquerdista”, seja entre pastores ou membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD).

Seus delírios proféticos poderiam ser irrelevantes, não fosse o fato de que são disseminados em igrejas e promovidos nos programas oficiais da IASD.2 Este padrão não é nenhuma novidade: conforme já demonstrado por Stefan Bratosin, a própria IASD emergiu de um processo no qual notícias falsas se tornaram mitos, sendo posteriormente institucionalizadas pela mídia adventista.3 Michelson possui a “vocação millerita” e o aparato institucional necessários para solidificar uma interpretação profética da besta do abismo e formalizar uma narrativa profética que privilegia certas ideologias políticas — mesmo que ele alegue estar alinhado com a “ideologia do céu” e com ensinos bíblicos.

Michelson e outros intérpretes modernos seguem estritamente a sugestão de Ellen G. White que associa a “besta do abismo” com a Revolução Francesa. O comentário da profetisa n’O grande conflito — assim como a posição de teólogos reformados — presume o ano 1789 como o início da atividade da besta, que manifestaria o ateísmo do Egito e a licenciosidade de Sodoma (cf. Ap 11.7-8). Esta interpretação, oficializada entre adventistas, não surgiu de estudos exegéticos sofisticados. No entanto, o tópico não ocupa muito espaço na literatura acadêmica adventista; referências à besta do abismo são escassas até mesmo nos mais completos estudos adventistas conservadores, tais como a série Santuário e profecias apocalípticas (Daniel and Revelation Committee Series, DARCOM).4 Isso não é coincidência, já que esta abordagem interpretativa carrega sérios problemas dentro da tradição adventista, e tem sido um elemento tênue e secundário nos escritos da própria Ellen G. White.

Todo o esquema adventista conectando a besta do abismo e a Revolução Francesa é baseado em um único capítulo d’O grande conflito — “A Bíblia e a Revolução Francesa” — e se legitima sob a premissa de que as afirmações do capítulo foram mostradas a Ellen G. White em visões celestiais. No entanto, já foi amplamente demonstrado há mais de 50 anos que o capítulo não foi escrito com base em visões sobrenaturais, e sim em autores conservadores e monarquistas, cuja prioridade era difamar a democracia popular e atacar o catolicismo, e não oferecer uma descrição acurada de eventos reais. O escritor britânico George Gleig, por exemplo, uma das principais fontes usadas por White, era mais conhecido por seu “ataque à Lei de Reforma de 1832, que estendia o privilégio do voto à classe média […] A passagem do artigo de Gleig citada pela Sra. White (uma condenação moral devastadora do povo francês: ‘A França é a única nação do mundo relativamente à qual se conserva registro autêntico de que, como nação, se levantou em aberta rebelião contra o Autor do Universo.’) é parte de uma diatribe violentamente antifrancesa. Gleig estava especificamente pressionando por uma intervenção britânica militar ou diplomática contra os franceses no continente”. A maior parte desses autores não era levada a sério como historiadores na época em que White escreveu o capítulo, e seus ataques à Revolução Francesa se baseiam em argumentos contra a democracia que são simplesmente insustentáveis atualmente.

Isso não é um ataque à integridade pessoal de White, tampouco é uma sugestão de que ela estava conspirando secretamente para transformar todos os adventistas em gado conservador; não é assim que a ideologia funciona. No entanto, sob uma análise mais rigorosa, fica claro que a profetisa adventista não prestava atenção na Revolução Francesa até que, pressionada pela demanda por novas publicações,5 estudou os romancistas históricos e comentaristas encontrados na biblioteca pessoal de J. N. Andrews.6 Embora seu posicionamento quanto à Revolução Francesa tenha certamente sido facilitado pelos valores majoritariamente conservadores do adventismo, composto principalmente de estadunidenses brancos e de classe média rural,7 é um tanto revelador que no capítulo, em meio a imprecisões factuais e exageros emprestados de outros autores, White ainda reserva tempo para reconhecer que a culpa pelo que ela percebia como uma grande catástrofe era do clero católico e da nobreza feudal {GC 276.4; 279.3}. Ainda mais significativo é que Ellen G. White, mesmo após escrever sobre a Revolução Francesa, não gastou tanta energia condenando sindicatos e socialistas quanto seus contemporâneos na liderança da IASD ao escrever para a Review and Herald — frequentemente espalhando desinformação de uma forma análoga às fake news atuais.

A partir dessa conexão frágil entre a besta do abismo e a Revolução Francesa, intérpretes brasileiros decidiram acrescentar mais um elemento interpretativo para atualizar a profecia: com base nos comentários de C. Mervyn Maxwell8 e Henry Feyerabend9, eles expandem o ateísmo do Egito e a licenciosidade de Sodoma a movimentos políticos que agiriam como o “legado da Revolução Francesa”, tais como o marxismo e a organização de movimentos comunistas. Michelson usa estes comentaristas como álibi para condenar qualquer manifestação progressista, “woke” ou marxista como uma perpetuação dos ideais da Revolução Francesa, e, portanto, expressões atuais da besta do abismo.

Embora ele imagine as bestas do Apocalipse como “marionetes satânicas” — manipulando opiniões da esquerda e da direita — as críticas de Michelson ao “marxismo cultural” e ao movimento “woke” inclinam seu posicionamento político à extrema direita. Por exemplo, com a reeleição de Donald Trump, Michelson publicou o texto de um adventista português dizendo que estava “extremamente feliz com a vitória” devido a uma política a favor da “liberdade de consciência” — a publicação logo foi excluída. Em especulações proféticas, Borges interpretava esse novo momento político como uma virada conservadora para a “besta da terra” (os EUA), e portanto como algo benéfico para a preservação de valores cristãos e ideais republicanos, embora ele alegue enxergar as ações de qualquer besta com suspeita.

Outro valor cristão supostamente beneficiado seria a crítica de Trump à “cultura woke” e o enfraquecimento da besta do abismo. Neste sentido, a afiliação velada de Michelson à agenda da extrema direita o leva a propagar ideologias que sabotam o trabalho de sua própria instituição, tal como o bloqueio de suporte financeiro da USAID à ADRA: o Departamento de Estado, em um comunicado enviado a jornalistas no dia 29 de janeiro, explicou o congelamento à assistência externa como um “bloqueio de programas ‘woke’”; da mesma forma, ao falar com repórteres no Salão Oval, Trump afirmou que ama o “conceito” da USAID, mas “eles acabam sendo lunáticos radicais de esquerda”.

No início deste ano, a mesma ênfase ideológica foi expressa no 15º Simpósio Bíblico-Teológico Sul-Americano com uma conotação ideológica: “Princípios e respostas ao desafio da práxis eclesiástica no tempo do fim”. De acordo com a DSA, “os participantes mergulharam em plenárias, painéis e trabalhos sobre abordagens hermenêuticas a desafios contemporâneos, contemplando os dilemas […] como teorias políticas, evangelho social, marxismo, feminismo, psicanálise, evolucionismo, teologia do domínio, teologia coach”. Compareceram ao evento representantes do Instituto de Pesquisas Bíblicas (BRI), tais como Elias Brasil, Daniel Bediako, Frank Hasel, Alberto Timm e Clinton Whalen. Ele também recebeu Bruno Raso, vice-presidente da DSA, e Adolfo Suárez, diretor do Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia (SALT).

Michelson e seus apoiadores afirmam estar realizando uma espécie de realpolitik escatológica, apoiando uma besta com o objetivo de enfraquecer outra besta mais perigosa. Esse apoio não se limita a afirmações nas redes sociais, mas se traduz em ações concretas quando líderes da IASD criam guerras culturais10 em comunidades adventistas com base nesses mesmos cálculos político-escatológicos.

No entanto, o que eles de fato fazem é muito pior. Ao escolher a dedo e dobrar a aposta em uma proposição teológica que Ellen G. White tirou de autores monarquistas, e que para White tinha importância secundária na melhor das hipóteses, Michelson e seus colegas não são diferentes do clero francês criticado por White — hierarcas egoístas que imbuem ideias reacionárias de autoridade divina para rotular como “maligno” qualquer coisa que desafie as estruturas de poder injustas e humanas que os beneficiam. Para falar em termos de realpolitik escatológica, talvez eles sejam a “besta” perigosa a ser enfraquecida — antes que o povo mais uma vez confunda líderes religiosos corrompidos com representantes do cristianismo como um todo.

Notas:

1. Allan Macedo Novaes, “A tese subliminar adventista: Manipulação midiática como teoria conspiratória midiática”, Novos Olhares, 13, 1, jan-jun, 2024. https://doi.org/10.11606/issn.2238-7714.no.2023.226154

2. Para citar só dois exemplos, Michelson já discursou ao vivo sobre o assunto com o Diretor da Assessoria de Comunicação da Divisão Sul-Americana (DSA), Felipe Lemos. Recentemente ele também falou sobre o assunto em uma “vigília profética” no dia 15 de fevereiro, na igreja adventista de Águas Claras, Brasília, acompanhado pelo pastor Vanderlei Dorneles, ex-editor da CPB e atualmente o coordenador do mestrado em teologia do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). Suas especulações proféticas já ultrapassaram as 200.000 visualizações no YouTube.

3. Stefan Bratosin, “Adventism and Meditization of Fake News Becoming a Church”, Religions, 15, 492, 2024. https://doi.org/10.3390/rel15040492

4. A única menção mais direta da besta do abismo está no volume 7 da coleção: Frank B. Holbrook (Editor), Symposium on Revelation, Book II: Exegetical & General Studies (Biblical Research Institute, 1992).

5. Sobre a relação entre Ellen G. White, a imprensa adventista e a indústria de publicações em ascensão, cf. Malcolm Bull, Keith Lockhart, Seeking a Sanctuary, Second Edition: Seventh-day Adventism and the American Dream (Indiana University Press), 25-26. Edição Kindle.

6. Peterson, p. 59. Até a edição de 1888 de O grande conflito, sua discusão da Revolução Francesa mal chegava a seis páginas, e os primeiros relatos de suas viões em Spiritual Gifts sequer mencionam esse evento histórico.

7. Sobre a relação entre a composição social do adventismo e suas crenças, cf. André Kanasiro, “The Land of Theology Against the Theology of the Land: How the US Adventist Culture Shaped the South American Church”, Spectrum 51.3-4 (2023), 97-105.

8. C. Mervyn Maxwell, Uma nota era segundo as profecias do Apocalipse (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2008).

9. Henry Feyerabend, Apocalipse: Verso por Verso (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 20140.

10. Já reportamos muitos casos nos quais líderes e pastores de extrema direita no Brasil perseguiram membros leigos e pastores mais progressistas (como o caso do CAJU, o caso de Gilson Grüdtner, de Apolo Streicher, da censura ao grupo Vocal Livre, e o caso emblemático da Nova Semente [1] [2] [3]), ou promoveram ativamente iniciativas que seriam inaceitáveis fora da bolha da extrema direita (tal como o apoio oficial a um movimento de cura gay).