A resistência popular no Paquistão, liderada por Imran Khan, enfrenta repressão militar e desafios geopolíticos, unindo cultura, religião e política na luta por liberdade, justiça e soberania nacional
Por Bint Inqilab (pseudônimo; “Filha da Revolução” em Urdu [بنت انقلاب]) | Jovem de Islamabad que foi ameaçada de morte pelo regime militar do país.
Nota dos editores: Em abril de 2022, Imran Khan, primeiro-ministro do Paquistão, foi derrubado do poder e aprisionado a despeito de seu apoio popular massivo, e um regime militar se instalou no país desde então. Entramos em contato com uma paquistanesa e pedimos a ela que nos contasse mais sobre a situação política no Paquistão — e onde, num “país muçulmano”, entra o islamismo em meio a tanta agitação política. Abaixo está o artigo que ela escreveu.
Já faz três anos que a agitação política no Paquistão aparece em manchetes por todo o mundo. Como de costume, canais de notícias internacionais, embora noticiem o contexto atual, não compreendem o trauma coletivo do povo devido a tudo que aconteceu. Eles te contam o que está acontecendo, mas estou escrevendo uma história para vocês, esperando que, ao final, vocês decidam manifestar solidariedade ao meu povo e nos apoiar. Imran Khan, ex-primeiro-ministro do Paquistão, foi sentenciado no dia 17 de janeiro de 2025 a catorze anos na prisão. A declaração oficial publicada por Khan começa com “Sabse pehle tou apne ghabrana nahi hay” ([سب سے پہلے تو آپ نے گھبرانا نہیں ہے] “Acima de tudo, vocês não podem perder a esperança”).
Isso é precisamente o que Khan representa — esperança. Dizem que ele é um ladrão. Isso é verdade. Ele roubou o poder e o orgulho de todos eles. Mesmo mantendo-o por um ano e meio trancado numa cela, e empregando todos os aparatos do Estado para reprimir o apoio a ele, são incapazes de quebrá-lo. Aos setenta anos de idade, Khan nunca deixa de repetir suas ideias. Ele diz que não vai se desculpar aos militares. São eles que precisam se desculpar por oprimir, torturar e matar inocentes. Ele nos lembra que aqueles que temem Alá não temem mais nada neste mundo. Ele nos garante que vai continuar lutando contra a tirania, e a favor dos direitos e da liberdade de seu povo, enquanto respirar.
Khan não tem motivo para fazer concessões. Isso é exatamente o que o torna perigoso. Ele não é um político, é um rebelde, e rebeldes não fazem acordos, mas lutam. Após ser colocado numa prisão próxima às celas dos condenados à morte, ele diz que vê a forca todos os dias, que não há nada além dela, e que é a última coisa que podem fazer a ele. Mas a vida e a morte pertencem somente a Alá, e ele morrerá quando estiver escrito, quando Alá decretar a hora — “Vá e diga ao King”, ele diz.
Não só Khan, mas a maior parte de seus apoiadores e membros do partido ouvem sempre a mesma pergunta: “Você não tem medo das consequências?” Um sussurro dissidente pode resultar em prisão, detenção arbitrária, ou desaparecimento. A resposta é sempre a mesma: “Qual é a pior coisa que eles podem fazer? Nos matar? Vão em frente.” Talvez seja um eco distante do famoso lema de Che Guevara: “Pátria ou morte”.
As verdadeiras razões para a prisão de Khan
Para entender o que está acontecendo hoje no Paquistão, é necessário revisitar a história do país. Jinnah, o pai fundador do Paquistão, não era um político. De 1930 a 1935, ele atuou como advogado em Londres. No entanto, ao retornar, ele ajudou a estabelecer o Paquistão independente em 1947. É claro que a história dos muçulmanos sendo politicamente ativos no sul da Ásia antecede o Paquistão em muitos séculos: o movimento Khilafat, a Primeira Guerra de Independência e as batalhas que se seguiram, a resistência da dinastia Khilji contra os mongóis — religião e política sempre estiveram entrelaçados.
Isso não é exclusivo ao sul da Ásia. O islamismo, para os muçulmanos, não é meramente uma religião. É uma forma de vida que estipula um código social e moral, e fornece até um sistema político de governo. Embora este último não seja mais praticado, é difícil despolitizar a fé. O Ocidente usou e abusou do islamismo político, criando grupos armados para travar guerras por procuração, tais como o Estado Islâmico e o Talibã, ou para derrubar regimes que não atendiam às suas necessidades geopolíticas, tais como na Revolução Iraniana de 1979 e na ditadura de Zia ul Haq em Paquistão no mesmo ano. Para criar os Mujahideen e enfrentar os soviéticos no Afeganistão, era do interesse dos EUA que a extrema direita estivesse no poder em países vizinhos. Estes indivíduos e grupos também usam a religião para seus próprios benefícios e propósitos. Os EUA foram embora, mas nosso tecido social foi destruído. Ainda estamos lidando com as consequências.
Embora essa parte da história seja bem conhecida, o presente e o passado recente não o são. A percepção pública em geral é de que Washington apoiou a derrubada de Khan. O Cipher Case foi menosprezado por muitos intelectuais paquistaneses como parte de uma narrativa populista. O telegrama diplomático foi enviado a Islamabad, capital do Paquistão, pelo embaixador do Paquistão em Washington. O diplomata estadunidense Donald Lu, infame pelo rastro de golpes de Estado e violência que deixa atrás de si, teria dito que “Tudo seria perdoado” se passasse a moção de censura contra o primeiro-ministro Imran Khan em março de 2022.
O que tem sido ignorado nos debates é a guerra dos EUA na Ucrânia. Khan manteve sua visita marcada a Moscou enquanto estourava a guerra. Após seu encontro com Putin, Zelensky disse a Khan que tinha dificuldades para transmitir sua mensagem [durante as negociações]. O que Islamabad poderia ter feito sob a liderança de Khan era manter o diálogo entre Rússia e Ucrânia. Uma guerra que nem a Rússia, nem a China, nem a União Europeia queriam poderia ter sido evitada. Neste cenário geopolítico, é difícil não perceber como a derrubada de Khan se alinhava aos objetivos geopolíticos dos EUA. Esta hipótese pode ser confirmada pelo acordo apelidado de “Bombs for Bailout” [“Resgate financeiro em bombas”, em português] pelo Twitter paquistanês. Um acordo do Fundo Monetário Internacional (FMI) foi oferecido ao Paquistão em meio a especulações de que armas paquistanesas estariam sendo enviadas à Ucrânia. The Intercept então publicou uma história confirmando que os EUA facilitaram um resgate financeiro do FMI em troca de um acordo secreto fornecendo armas à Ucrânia. Orwell disse que guerra é paz — sem dúvida o é para os EUA, assim como opressão é estabilidade para os militares paquistaneses.
O povo paquistanês não aceitou pacificamente a prisão de Khan, mas uma ditadura militar brutal se instalou para nos esmagar e nos manter em silêncio. O Massacre de Islamabad, em 26 de novembro de 2024, talvez seja a noite em que eu me senti mais impotente. Minha casa era próxima ao percurso do protesto, e desde o início da tarde, quando as pessoas estavam começando a se reunir, eu já ouvia bombas explodindo. À noite, ouvia-se helicópteros, tiros, e pessoas gritando. O barulho ressoou nos meus ouvidos das 23h às 4h da manhã. Eu não consegui dormir. Minha mãe não me deixou sair de casa. “Um membro da família em risco já basta”, disse ela.
Minha tia, uma médica, estava lá. Ela me contou como ofereceu os primeiros socorros aos feridos nas calçadas. Pessoas com ferimentos menos sérios não queriam ir ao hospital, com medo de serem presas. Uma das minhas amigas desabou e começou a chorar quando liguei para ver como ela estava. Ela tinha visto uma pessoa morrer com um tiro na cabeça, e seu pai está desaparecido. Ela foi proibida de embarcar em aviões para fora do país devido ao seu ativismo. Outro amigo me contou que ajudou a levar um homem atingido por um tiro ao hospital. Só então ele descobriu que era mais de um tiro; ele só tinha visto um. Dois primos dos meus colegas levaram tiros. Minha tia conhecia muitos médicos trabalhando em hospitais públicos — ela disse que pelo menos oitocentas pessoas foram mortas. Os registros e os cadáveres foram confiscados, e os médicos foram ameaçados. Não sabemos ao certo. O que sabemos é o seguinte: as ruas foram lavadas antes que amanhecesse, nós vimos tanques passando; encontramos bandeiras com marcas de tiros; e bandos de milhafres pretos, aves que se alimentam de carne e carniça, sobrevoaram os contêineres colocados no percurso do protesto ao longo de todo o dia.
O que me radicalizou?
Voltando à agitação política, o que nos radicalizou? O que me radicalizou? Em primeiro lugar, estudar história escrita e oral simultaneamente me ensinou que a memória coletiva oferece perspectivas muito mais autênticas que o que nossos colonizadores escreveram sobre nós. Tantos incidentes na minha vida podem ser encaixados uns nos outros como um quebra-cabeça. Uma das minhas memórias mais antigas e vagas de inquietação política é a de quando Saddam Hussein foi enforcado. Eu estava sentada no sofá, com meu avô de um lado e minha mãe do outro. Eles me disseram para desviar o olhar e cobrir meus olhos, pois a TV estava transmitindo ao vivo sua execução. Eu tinha sete anos de idade — eu cobri meus olhos, mas dei uma espiada mesmo assim. Desde então, tudo de que me lembro é a destruição do Iraque. Era como se os mongóis tivessem descido outra vez.
Nós somos as crianças que cresceram à sombra da Guerra ao Terror. A mídia ocidental publicava manchetes sobre como nossa religião, nossa cor de pele e nossa cultura tornavam-nos uma ameaça à sociedade. Muitas mulheres entre nós começaram a odiar vestir o kurta shalwar (traje étnico paquistanês) no início da adolescência, achando que ele era um símbolo de opressão. Os meninos faziam a barba para que não fossem vistos como religiosos. Nós nos desassociamos da cultura em público, pensando que ela era um obstáculo ao progresso.
Ao mesmo tempo, passamos nossa infância em meio a notícias diárias de bombas explodindo. Minha irmã mais nova era um bebê, e “suicídio” e “bomba” foram algumas das primeiras palavras que ela aprendeu, mesmo que não as pronunciasse corretamente (urdu: khudkush dhamaka [خودکش دھماکہ]; minha irmã chamava de khudkus madhaka). Eu lembro da minha mãe e minha tia discutindo se era seguro sair para fazer compras — uma explosão na segunda-feira significava que a terça-feira era um dia mais seguro para sair, e quarta-feira um dia mais perigoso.
Eu me lembro das notícias sobre Aitizas Hassan, um menino que se jogou em um homem-bomba para impedir um ataque. Ele morreu, mas seus colegas de classe sobreviveram. Eu me lembro da escola bombardeada por drones estadunidenses. Zubair tinha treze anos de idade quando depôs contra Obama em 2012. O que ele disse me quebrou, talvez porque na época eu também tinha treze anos — poderia ter sido eu, e poderia ter sido minha avó martirizada enquanto colhia quiabo ao invés da avó dele. “Eu não amo mais o céu azul […] Os drones não voam quando o céu está nublado”, ele disse.
Isso me mudou. Foi a primeira vez em que tive consciência de que nascer e ser criada na capital era um privilégio, e eu decidi na época que ia usar esse privilégio por aqueles que não o tinham. Eu também prometi a mim mesma que nunca perdoaria Obama ou os estadunidenses. Nenhuma criança ou adulto merece viver num lugar em que um ataque só é considerado “sério” se morrem mais de 100 pessoas em uma explosão. Era uma das regras não ditas na época: um número de mortos de um só dígito significa que está tudo bem, pode até ser ignorado. Se está nos dois dígitos, abaixo de trinta ou cinquenta, bem, acontece. Se estiver acima de sessenta ou setenta, seria um bombardeio moderado. A outra regra não dita era não sair em dias de oração, especialmente para a mesquita ou para o mercado. Meu avô nunca faltava às orações de sexta-feira, que são obrigatórias para homens muçulmanos, e eu sempre vivia com medo de que ele um dia não voltasse. Nossa terceira regra era que não ter notícias é uma boa notícia. Se parentes em outras cidades não te ligam, é porque está tudo bem.
Eu vi como Raymond Davis se safou com assassinato, e me lembro de como os estadunidenses infestaram nossas ruas. As escolas reabriram após férias de inverno prolongadas devido ao ataque à Escola Pública do Exército em Peshawar. De repente, minha escola parecia uma prisão. Dois furgões cheios de homens armados ficavam estacionados em cada portão. Os muros eram duas vezes mais altos que antes. As árvores enfileiradas que eu escalava quando criança foram derrubadas. Atiradores foram posicionados no telhado. Durante os intervalos, meus amigos e eu discutíamos casualmente quais de nós sobreviveríamos se fôssemos atacados. Eu só tinha 15 anos.
Quando começou a Primavera Árabe, eu tinha onze anos de idade. Jovem demais para compreender geopolítica, mas velha o bastante para entender o custo humano do conflito. Levou quase uma década para que eu entendesse a escala de tudo que aconteceu. Dois problemas eram constantes, fosse no Paquistão, Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia, Iêmen, Egito ou Somália: envolvimento (e armas) dos EUA e governantes sedentos por poder, os quais pensavam que nunca cairiam.
O mais surpreendente é que poucos pareciam entender isso. Houve um silêncio sepulcral na minha sala quando eu apresentei meu trabalho a respeito do envolvimento e lucro da CIA com o tráfico de drogas no Paquistão. Meus colegas ficaram abalados quando escrevi um texto investigando os grupos banidos do Baluchistão que recrutavam crianças-soldado, cujos pais na maior parte dos casos tinham sido mortos ou desaparecidos pelo Estado. Foi a primeira vez em que eu me senti ameaçada. Também houve um incidente com a minha fonte. Não acabou bem, mas poderia ter sido pior. Meu povo foi bombardeado com centenas de explosivos e obuses vindos do ar. Eles foram transformados em refugiados. Nossas crianças perderam membros para minas terrestres.
Eu acho que muitos ainda não entendem — culpamos o Ocidente, mas não há interesses europeus, só interesses estadunidenses. A União Europeia só dança conforme a música, o que provavelmente era o objetivo do Plano Marshall desde o início. O AfD quer tornar a Alemanha grande outra vez, mas não consegue reconhecer que seu inimigo não é o islamismo, e sim os perversos estadunidenses brancos, loiros de olhos azuis de Washington D.C.
Islamismo, religião e política
Imran Khan não é um homem comum — ele é King Khan — um jogador de críquete que se tornou um filantropo e então um político. Após uma juventude dissoluta, ele encontrou a religião e um propósito de vida, e hoje inspira a juventude paquistanesa a se orgulhar do que nos esforçamos tanto para disfarçar — nosso islamismo. Precisamos do TikTok e do Instagram para superar o trauma e entender como o enquadramento da mídia mudava nossas percepções. Da mesma forma, precisamos de Imran Khan para perceber que os homens merecem respeito mesmo usando o shalwar kameez, e que pessoas com orgulho de suas identidades são ainda mais respeitadas. Alguns de seus lemas mais populares são: Amar bil Maroof wa Nahi anal Munkar ([الامر بالمعروف والنهي عن المنكر]“unir-se ao bem e desencorajar as pessoas de fazerem o mal”) e Allah al-Haq hay (Deus é a verdade).
Uma edição da Sunday Magazine sobre Imran Khan quando jogava críquete, chamando-o de King Khan. Desde então ele é chamado assim.
Para falar sobre Khan, talvez seja importante responder por que o povo, embora seja muito religioso, escolheu Khan ao invés do clero islâmico. Os partidos políticos de extrema direita focam na prática pessoal da religião — por exemplo, querendo impor por lei o uso de lenços na cabeça para as mulheres. Após lidar com a islamização imposta pelo Estado na época da Guerra Soviética, o povo tem aversão ao Estado criar políticas similares outra vez. É por isso que a extrema direita nunca foi eleita no país. O único governo islamista na história do Paquistão — no qual o islamismo é considerado a “religião do Estado” — foi a ditadura do General Zia ul Haq.
Nas três décadas após essa ditadura, o Partido do Povo do Paquistão (PPP) e a Liga Muçulmana Noon do Paquistão (PLMN) estiveram no poder. Esse sistema bipartidário foi interrompido entre 2001 e 2008, durante a ditadura do General Musharraf, após a qual o PPP e o PLMN retornaram ao poder pela década seguinte. O PPP é um partido político de autoproclamados progressistas conduzido por senhores feudais. Musharraf também promovia uma retórica de islamismo “moderado e esclarecido” em oposição ao “fundamentalismo”, acompanhado de suporte estatal irrestrito à Guerra ao Terror do Ocidente e à acumulação neoliberal de capital.
A separação artificial entre religião e política não tinha como dar certo. Por outro lado, foi Imran Khan que apresentou uma visão diferente para as massas — ele pede ao povo que se aproprie do islamismo, não em termos de prática pessoal, mas levando em consideração o código sociopolítico que o islamismo estipula. Explicando isso com um exemplo: se alguém não ora, isso não terá impacto em mais ninguém. No entanto, se alguém está mentindo, conduzindo negócios fraudulentos ou se envolvendo em corrupção, é isso que importa para a sociedade — no que diz respeito à sociedade, todos deveriam seguir as regras colocadas para nós no Corão. Além disso, de uma perspectiva muçulmana, garantir a lei e a ordem, a segurança alimentar, proteger o meio ambiente, e prover acesso à saúde também são responsabilidade do Estado — uma narrativa que Khan construiu por mais de uma década e a partir da qual criou várias iniciativas.
Ao invés de impor uma visão rígida da religião ou tentar ativamente colocar o islamismo em uma caixa — “fundamentalismo” em oposição a uma religião “socialmente aceitável” — Khan seguiu um caminho diferente. Ele foca no que devemos às pessoas ao nosso redor como muçulmanos ao invés de focar no que devemos a Alá, pois isso ficará entre nós e nosso Senhor no Além. No entanto, se deixamos de cumprir nossos deveres para com outros cidadãos, compatriotas e a humanidade como um todo, Alá não vai nos perdoar até que as pessoas afetadas por nós nos perdoem.
Khan é o único líder paquistanês que eu e toda a minha geração vimos enfrentar os EUA, e que não mantém propriedades fora do país para fugir quando for conveniente. Ele negou aos EUA a permissão de operar bases aéreas no Paquistão — ou seja, não houve ataques de drones enquanto ele esteve no poder — ele não recuou de sua visita à Rússia, se recusou a condenar a China, e disse em alto e bom tom que o Paquistão poderia ser um aliado, mas não um Estado satélite. Ninguém vai ditar nossa política externa, econômica, ou violar nossa soberania. Nós perdemos setenta mil pessoas; nunca mais nossos homens, mulheres e crianças vão morrer pelas guerras dos outros.
Khan é o único líder que nos encoraja a ler e até nos dá recomendações de livros. O “Cartão Sehat” que ele iniciou disponibilizou aos paquistaneses saúde gratuita pela primeira vez na história. O “Tsunami de um bilhão de árvores” e seu ativismo climático; os Panahgahs (abrigos) para pessoas em situação de rua; o programa Ehsaas, que ofereceu assistência financeira ao povo durante a pandemia de COVID-19; o Programa Koi Bhooka Na Soye (“Ninguém vai dormir com fome”); e o Currículo Único Nacional — tudo que ele fez foi para reduzir a desigualdade em nosso país. Houve uma época em que a polícia parava pessoas em pontos de checagem em Islamabad se a placa do carro fosse de qualquer outra região além de Lahore. Será que Peshawar, Quetta e Karachi não eram parte do Paquistão? Por que pessoas com carros de outras cidades eram interrogadas, e por que elas não conseguiam vender seus carros pelo valor de mercado em Islamabad? Não seria esse um apartheid não oficial criado pela elite? Foi somente após as convocações de Khan por protestos que o povo de todos os lugares, seja no Punjab rural ou nas regiões tribais de Kyber Pakhtunkhwa, percebeu que Islamabad não era só uma cidade para os burocratas, oficiais do governo e os ricos. Era a cidade deles também — Islamabad, assim como o resto do Paquistão, pertence ao seu povo muito mais que à elite que reivindica poder sobre ela.
Em um discurso na ONU, Khan disse que só existe um islamismo. Existem extremistas em qualquer religião, o que não quer dizer que eles tenham algo a ver com aquela religião. O termo “extremismo islâmico” é uma farsa que só serve aos objetivos geopolíticos do Ocidente.
O Paquistão continua a sofrer com violência sectária, e em muitos casos a religião contribui para a dinâmica dos conflitos tribais. Ela também é usada por atores não estatais, seja com o apoio do Estado ou de poderes estrangeiros. No entanto, ao incorporar o pensamento e a filosofia política de sunitas e xiitas em sua luta, Khan conseguiu uma base de apoio que sobrepujou divisões sectárias.
Imran Khan é da casta Niazi. A tribo é etnicamente Pakhtun, mas vive em Punjab há quinhentos anos — uma região que foi poupada da maior parte da violência militar até seu povo começar a se manifestar a favor de Khan. Após Jinnah e Liaqat Ali Khan, e após Zulfiqar Ali Bhutto, Imran Khan é o único líder paquistanês que denunciou a hipocrisia da ordem mundial. “Por acaso somos seus escravos, para fazermos os que vocês mandam?”, respondeu Khan aos pedidos de diplomatas ocidentais por uma condenação à Rússia. Todos esses fatores contribuíram para uma base de apoio unida a despeito de divisões étnicas.
Cultura como resistência
Não é só a religião; a cultura e as dinâmicas políticas do passado também têm um papel a cumprir. O Paquistão é um país pós-colonial. Nós abraçamos a cultura como uma forma de resistência e uma ferramenta para uma verdadeira descolonização. Quando a cultura é política, tudo é político, e por isso ela há muito tempo serve como veículo para nossos sentimentos políticos e nosso apoio a Khan. O Kaptaan Chappal (“O sapato do capitão”) foi um par de sapatos de Peshawar marcado com 804, o número de Imran Khan na prisão. O ateliê de moda Karma lançou um Kurta com o retrato de Imran Khan. Basant é um festival de primavera celebrado no Paquistão — as pessoas empinam pipas e enchem o céu de cores para marcar o final do inverno. As redes sociais foram inundadas de fotos e vídeos de pipas com o rosto de Imran Khan ou o número 804. Jashan-e-Mefung é um festival de solstício de inverno celebrado em Gilgit Baltistan, a região mais ao norte do Paquistão. As pessoas cantam, dançam e festejam em fogueiras enquanto seguram tochas acesas. Em 2024, uma foto do número 804 escrito em fogo saiu nas notícias após as celebrações do Mefung.
Kurta do ateliê Karma, lançado em 2018, ano de eleições nacionais no Paquistão, após as quais Khan foi eleito primeiro-ministro. Seu mandato deveria durar até 2023, mas ele foi derrubado em 2022.
Uma pipa em Basant, 2024 e Celebrações do Mefung, 2024.
No folclore paquistanês, o herói é sempre um príncipe. Ele é belo, charmoso e protege seu povo, mas frequentemente sofre uma tragédia. Nesse sentido, antes de ir para a prisão, Khan era visto por muitos de uma maneira similar: os desafios que ele enfrentava pareciam estar além da compreensão do que o paquistanês médio podia alcançar. Agora, em 2025, não há diferença entre Khan e um homem com uma barraquinha de chá na rua. Perturbar os que estão no poder significa ir para a prisão e ter seus familiares alvejados pelo Estado.
A ordem estabelecida apresentou uma tragédia banhada a ouro — e lhe ofereceu uma escapatória. Ele poderia ter retornado à sua vida em Londres, mas ele se recusou. Ele ficou para lutar. Ele não é motivado pelo poder, mas sim pela dor que seu coração sente por nós. Nós somos o propósito dele, e ele é o nosso. Ele é a única coisa entre nós e a ordem estabelecida. Se ele tivesse se rendido, toda uma geração seria silenciada para sempre. Hoje nós estamos desencantados com o sistema e esperamos queimá-lo até não sobrar nada para substitui-lo por algo melhor. Deus nos livre de perder a esperança — pois neste momento vamos destruir tudo. O desespero combinado à raiva equivocada só leva à violência, e não a revoluções.
O levante político está fazendo surgir um gênero artístico. A arte pró-revolução da Primavera Árabe e da América do Sul está alimentando a arte da resistência no Paquistão.
Uma camiseta com outro retrato de Imran Khan desenhado no estilo do retrato de Che Guevara.
Ammar, de 5 anos de idade, morreu após lhe negarem um leito no hospital. “Eu vou contar tudo para Alá” é uma referência à fala de uma criança síria. A criança não aguentou ter sua casa invadida e vandalizada várias vezes, assim como testemunhar seus familiares sendo torturados. O pai de Ammar, Ibad Farooq, membro do partido de Imran Khan Pakistan Tehreek-e-Insaf (PTI), foi preso, e lhe ofereceram a liberdade se ele fizesse uma declaração repudiando as manifestações do dia 9 de maio de 2024, algo que ele se recusou a fazer. Enquanto Ammar estava doente, a esposa de Ibad (mãe de Ammar) também foi presa por um breve período. Seu pai foi autorizado a fazer a oração no funeral do filho, mas foi arrastado para fora antes que pudesse enterrar seu filho.
Durante a Primavera Árabe, um artista inscreveu o hino nacional do Líbano na bandeira. Dessa vez, um artista paquistanês inscreveu Iyyaka Na’budu Wa Iyyaka Nasta’een ([إِيَّاكَ نَعْبُدُ وَإِيَّاكَ نَسْتَعِينُ] “Somente a ti adoramos, e somente de ti esperamos auxílio”), algo que Khan diz com frequências em seus discursos frente à bandeira do PTI.
Imperadores mughal eram ilustrados com uma auréola nas cabeças. Uma publicação similar sobre Khan viralizou.
Essa publicação também incorpora a tipografia. A língua Urdu segue a escrita Abjad, usando letras arábicas. Ou seja, as regras da tipografia arábica também se aplicam ao Urdu.
Pôsteres inspirados por outras revoluções.
Pôster Bauhaus, inspirado na obra 1984 de George Orwell. O texto diz “Hum Dekhen Ge” — um poema de um poeta revolucionário chamado Faiz Ahmad Faiz.
Os raios de sol no fundo são uma marca frequente de pôsteres soviéticos. Outra publicação que viralizou.
Tigres de Imran Khan
Khan não vai resolver todos os nossos problemas num passe de mágica. Ele vai resolver um só: nossa insegurança e nossa falta de fé em nossa liderança. Segurança e liberdade são pré-requisitos para que comecemos a resolver outros problemas. A chama acesa por nossos irmãos e irmãs em Bangladesh, que mais uma vez estão se libertando da opressão, vai iluminar nosso caminho. E não só o nosso, mas também o de nossos vizinhos: iranianos, afegãoes e indianos, que vivem sob regimes fascistas. Pode parecer algo idealista, mas historicamente as revoluções atravessam fronteiras.
Em Urdu temos um ditado que diz: “har urooj ko zawal hay” ([ہر عروج کو زوال ہے], “todo zênite testemunhará sua própria queda”). No islamismo, nós temos uma profecia sobre os últimos dias: a queda da nação árabe, o retorno da adoração a ídolos na Península Arábica, a queda da Casa de Saud, e os árabes perdendo a honra de serem os guardiões da Caaba. Militarmente, só o Paquistão ou a Turquia têm a capacidade de proteger a Caaba. Outra profecia afirma que a batalha final será travada na Palestina, pelos muçulmanos e cristãos unidos contra um terceiro poder. Para mim é difícil separar estas crenças da geopolítica. A Rússia e os cristãos ortodoxos de fato estão se aliando ao mundo muçulmano. Há mais cristãos sionistas que cristãos verdadeiros nos EUA e na Europa ocidental. Ídolos de fato estão retornando ao reino da Arábia Saudita, e bilionários ímpios do Vale do Silício controlam o mundo.
Nossa liberdade não está desconectada do mundo. Mudanças sistemáticas para a libertação coletiva são o único caminho adiante para nós, como paquistaneses e como muçulmanos. O time paquistanês de críquete, que venceu a Copa do Mundo de 1992, tinha o apelido de “Tigres” — o nome foi levado adiante por voluntários que coletaram caridade para o Hospital Memorial do Câncer Shaukat Khanam. É assim que nos chamamos agora — não importa o quão encurralados, somos os Tigres de Imran Khan. Somos os filhos da revolução. Nós pertencemos à pátria, e a pátria nos pertence. E vamos lutar por nossa liberdade — ou morrer lutando.