Os indivíduos estão envolvidos no desvio que estima R$30 milhões descoberto por uma investigação que permanece em andamento; ele configura uma cultura de privilégios entre lideranças de origem sulista


Por André Kanasiro, Felipe Carmo e Alexander Carpenter | a matéria foi elaborada na parceria entre revista Zelota e Spectrum Magazine, com a participação de seus editores e uma versão em língua inglesa.

Os nomes marcados com asterisco (*) são fictícios para proteção das fontes consultadas.

Montagem com a identificação dos administradores demitidos pela ARM (Fonte: Spectrum Magazine).

A Adventist Risk Management internacional (ARM, Inc.) recentemente demitiu seis de seus funcionários brasileiros e abriu uma investigação que segue em curso a respeito de irregularidades administrativas. Estes três líderes e três funcionários supervisionavam operações financeiras e processavam seguros para a seguradora da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD). Sediada nos escritórios da Divisão Sul-Americana (DSA) em Brasília, a organização é responsável pela seguridade de cerca de 50 mil obreiros e entidades associadas na América do Sul, assim como em partes da Ásia.

Os indivíduos demitidos incluem toda a diretoria — o diretor geral Christian Rafael Spindler Prates, o diretor financeiro e administrativo Agnaldo Machado Pacheco, e o diretor de fundos Elizandro Rosérgio Hoffmann. Os funcionários demitidos até o momento incluem o gerente de produtos Marcos Lima e duas analistas de seguros, Débora Zainy e Inês Hoffmann, que é irmã de Elizandro.

Estas ações e investigações, iniciadas no começo de 2024 pela ARM, Inc., sediada em Silver Spring Maryland, partiram de uma auditoria regular padrão feita pela auditoria da Associação Geral (GCAS) no final de 2023. O relatório da investigação da auditoria foi a base para as demissões. As irregularidades citadas pela ARM, Inc. em um alerta do dia 29 de fevereiro incluem uma estimativa preliminar de que pelo menos R$30 milhões em recursos foram desviados da ARM South America (ARM-SA).

Em diálogo com a GCAS no início de 2024, a liderança da ARM, Inc. foi informada das irregularidades administrativas da ARM-SA. No dia 13 de janeiro o presidente James Winegardner e o diretor financeiro Andrew Moll viajaram para o Brasil e assumiram o controle da ARM-SA. No mesmo mês, a ARM contratou um escritório de advocacia em Brasília para conduzir uma investigação que pode ser concluída em algumas semanas. Neste processo, Agnaldo Machado Pacheco devolveu R$500 mil e entregou seu smartphone à ARM. O celular forneceu informações que também implicaram Jabson Magalhães da Silva, ex-diretor geral da ARM-SA, nas irregularidades.

Após algumas informações sobre o assunto vazarem para grupos de pastores no WhatsApp, o nome dos envolvidos foi removido rapidamente do site oficial. Poucos dias depois, a ARM, Inc. publicou um singelo comunicado para explicar ao público a natureza do problema: em nota, ela afirmou ter encontrado irregularidades financeiras e desligado os diretores que estavam à frente do escritório brasileiro. Ela disse que tomou iniciativa desde o conhecimento de tais problemas e designou responsáveis para geri-lo com o objetivo de promover melhorias nos processos de controle interno. 

O que é a Adventist Risk Management South America?

A ARM, Inc. é uma agência adventista mundial que administra as apólices de seguro da IASD, com uma sede de funcionamento em Brasília, a ARM-SA. Trata-se de um escritório de importância para a igreja brasileira, pois oferece serviços de proteção financeira e gerenciamento de riscos para indivíduos e organizações, mitigando riscos associados a eventos imprevistos, como acidentes, doenças, morte, danos materiais ou processos judiciais. Como instituição financeira, de fato, ela movimenta muito dinheiro.  

O aporte financeiro agregado pela ARM-SA inclui contribuições adquiridas de instituições da América Latina e do sudeste asiático. A ARM-SA seria, assim, uma espécie de patrimônio compartilhado entre as duas divisões para seguros. A América Latina, nesse sentido, também estaria responsável pelo sul do Pacífico. Esse funcionamento foi incentivado pela AG desde os anos 2010, para que a igreja latina desenvolvesse uma cultura de securitização dos materiais e atividades que envolvem a denominação. 

Por exemplo, os clubes de desbravadores ou escolas podem recorrer à ARM-SA em busca de seguro de vida para as crianças envolvidas em suas atividades, assegurando amparo para internações médicas e outras emergências e imprevistos do gênero. Além disso, a ARM-SA também abrange o seguro patrimonial das igrejas, auxiliando-as em casos de roubos de equipamentos, ou mesmo em situações de incêndios e catástrofes naturais. Em outras palavras, a atuação da ARM-SA é essencial para o benefício patrimonial da IASD.

Um relato a respeito dos benefícios da ARM-SA foi oferecido por Elizandra Gabriela da Silva*, funcionária do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), campus Engenheiro Coelho. Segundo a fonte, o seguro oferecido aos alunos da instituição de ensino ocorre via ARM-SA; os estudantes recebem informações específicas para acioná-lo em viagens de curta ou longa duração. Elizandra afirmou que a ARM-SA foi muito útil à instituição no ano passado, quando precisou lidar com um acidente que envolveu prejuízos patrimoniais e de saúde. 

De fato, a ARM-SA encontra-se próxima às necessidades da membresia brasileira: ela chegou a criar um podcast, o ARM PodCast, para oferecer dicas de prevenção a viagens que envolvem o Ministério Jovem, os clubes de desbravadores e aventureiros, os acampamentos de verão e os retiros de carnaval. Ela, inclusive, ofereceu dicas para lidar com a proteção dos equipamentos nas igrejas. Alguns dos riscos mais comuns em viagens são os de afogamento, quedas, torções, fraturas, queimaduras e acidentes de trânsito no percurso; além de eventos climáticos extremos, como chuvas torrenciais em algumas partes do país.

Ademais, a ARM-SA também costuma oferecer cursos e treinamentos. Em meados de 2022, quando os noticiários brasileiros veiculavam notícias sobre atentados realizados nas escolas por adolescentes armados, a ARM-SA teve a oportunidade de ministar o curso “ALERTA: medidas e contramedidas ao agressor ativo”. O treinamento, como evidencia o nome, versou sobre as medidas protetivas necessárias para lidar com “agressores ativos”, alunos ou ex-alunos, que costumam invadir escolas para a realização de massacres. O curso chegou a ser ministrado para alguns colégios adventistas dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, e atendeu a necessidade de professores, funcionários e alunos que nunca haviam se preparado para lidar com esse tipo de ocorrência.  

A partir do momento em que a ARM-SA apresenta desvio de recursos financeiros, o escândalo pode comprometer a credibilidade da ARM-SA para o contexto latino-americano.

“O Sul é meu país”

Erton Carlos Köhler, secretário executivo da Associação Geral (AG), criou a ARM-SA durante seus 15 anos como presidente da DSA. Antes disso, os fundos mútuos de seguridade eram administrados com relativa autonomia por cada União. Em alguns locais isso contribuiu para o que um líder denominacional chamou de “mentalidade administrativa de caixa dois”. A iniciativa de criar a ARM-SA enfrentou forte oposição dos líderes de Uniões, já que sua existência corroborava com o legado da administração de Köhler: a centralização do poder presidencial e a expansão da influência brasileira na denominação. A ARM-SA também cobre a Divisão Pacífico Norte-Asiático e a Divisão Pacífico Sul-Asiático. 

Quando a ARM-SA foi estabelecida, próximo de 2010, Köhler, que é do Sul do Brasil, nomeou o sulista Jabson Magalhães da Silva como diretor geral. Magalhães posteriormente trouxe os recém-demitidos Christian Rafael Spindler Prates, Agnaldo Machado Pacheco e Elizandro Hoffmann, também sulistas (exceto Agnaldo). Em 2018, Jabson foi nomeado tesoureiro da União Sudeste Brasileira (USEB) e deixou a ARM-SA.

Líderes do Sul do Brasil dominam cargos de liderança na IASD sul-americana. Em 2021, por exemplo, a comissão de nomeações da DSA elegeu o sulista Stanley Arco como presidente da DSA; Charles Rampanelli como secretário-executivo da União Chilena; Jorge Wiebusch como presidente da União Uruguaia; Celso Santos como diretor financeiro da União Noroeste Brasileira; Edson Erthal de Medeiros como diretor-geral e Uilson Garcia como diretor financeiro da Casa Publicadora Brasileira; Evandro Fávero como diretor do Seminário Adventista Latino-Americano; Jolivê Chaves como diretor da Faculdade Adventista da Bahia; Josias Souza como diretor financeiro da Novo Tempo; Jairo dos Anjos como diretor financeiro da União Nordeste Brasileira; Joel Distler como diretor financeiro da Superbom; Davi Contri como diretor financeiro do Instituto Adventista de Tecnologia; e Gilnei de Abreu como diretor financeiro da União Centro-Oeste Brasileira. Todos os nomes acima são do Sul do Brasil ou construíram suas carreiras em instituições adventistas desta região. A preferência por diretores financeiros sulistas também reflete hábitos da DSA: Marlon Lopes, tesoureiro da DSA, é sulista e irmão de Marlinton Lopes, presidente da União Sul Brasileira. Ambos estão em seus cargos desde 2010.

Uma cultura de conexões

O papel dominante dos líderes do Sul, onde o adventismo aportou no Brasil pela primeira vez através de imigrantes alemães, foi notado até pelo artigo da Enciclopédia oficial dos Adventistas do Sétimo Dia sobre a DSA: “durante as três últimas administrações ela continuou sob a presidência de descendentes de imigrantes alemães”.

Ao longo do século 20, famílias adventistas alemãs tradicionais puderam ser mais bem-sucedidas economicamente que seus compatriotas brasileiros, e assim se estabeleceram como elites eclesiásticas conforme a IASD se expandia para as porções mais pobres da população. Como elites eclesiásticas no Brasil, líderes adventistas não se limitam a estruturas administrativas oficiais. Assim, muitas decisões políticas e econômicas são frequentemente motivadas por conexões para-oficiais entre líderes importantes e seus discípulos, que defendem as decisões do líder com base em sua suposta conexão pessoal com Deus e seu interesse subjetivo no bem-estar da IASD. Isso resulta em uma estrutura denominacional de dois níveis, com líderes de expressões culturais germânicas privilegiados por suas conexões familiares, que domina o adventismo na América do Sul. Isso se manifesta de várias formas, tais como a prevalência de líderes sulistas por todo o continente e a falta de autonomia em Uniões da DSA que não estão no Sul. 

As únicas Uniões da DSA com relativa autonomia administrativa são a União Argentina, a União Sul Brasileira, a União Central Brasileira e a União Sudeste Brasileira, todas no Sul e Sudeste, contra 12 Uniões que ainda são consideradas Uniões-Missões, a despeito do fato de que algumas delas têm mais membros da IASD que a maioria das Uniões-Associações do continente. Todas as principais instituições denominacionais do continente também estão localizadas no Sul e no Sudeste do Brasil, tais como fábricas de alimentos, a Casa Publicadora, a Novo Tempo e o primeiro seminário.

Tampando a lacuna

Uma pessoa familiarizada com a situação afirmou que, no momento, é essencialmente impossível confiar na DSA, particularmente os brasileiros responsáveis pelas finanças denominacionais. Isso se deve a uma cultura na liderança que transforma áreas cinzentas em oportunidades ao focar mais em “fazer as coisas acontecerem por quaisquer meios e custos” e menos em “se preocupar com a bagunça depois”.

Durante os últimos três meses, a liderança da ARM, Inc. da América do Norte tem supervisionado diretamente os 40 funcionários restantes na ARM-SA. Embora auditorias sejam realizadas rotineiramente em fundos operados pela ARM-SA e sua intermediária Unibrás Corretora de Seguros, Ltda., algumas questões permanecem em relação aos recursos financeiros da DSA. Estes parecem ser considerados mais como um fundo de benefícios para funcionários do que um fundo para seguridade. Esta “experiência de entidades que recebem recursos de contribuintes”, administrada pela DSA, supostamente passa por auditorias separadamente. Isso produziu uma lacuna na fiscalização que tem existido há muito tempo.

A revista Zelota e a Spectrum Magazine entraram em contato com a DSA para conseguir mais esclarecimentos sobre o assunto, mas não houve retorno até o momento da publicação desta matéria.