Irregularidades investigadas na seguradora adventista sul-americana, estimadas em R$30 milhões, estão conectadas à rede de fundos mútuos centralizados durante a presidência de Erton Köhler


Por André Kanasiro, Felipe Carmo e Alexander Carpenter | a matéria foi elaborada na parceria entre revista Zelota e Spectrum Magazine, com a participação de seus editores e uma versão em língua inglesa.

Montagem com Erton Carlos Köhler, ex-presidente da Divisão Sul-Americana (Fonte: Spectrum Magazine)

As irregularidades financeiras na Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) brasileira, estimadas em cerca de R$30 milhões e atualmente sob investigação pela Adventist Risk Management (ARM, Inc.), ocorreram dentro de uma estrutura de seguros centralizada na Divisão Sul-Americana (DSA) e criada por seu presidente anterior Erton Köhler. Ele é atualmente o secretário da Associação Geral (AG) e é visto por alguns como um potencial presidente da AG no futuro.

A centralização dos recursos na sede compartilhada entre a DSA e a Adventist Risk Management South America (ARM-SA) em Brasília, consolidada por Köhler, enfraqueceu significativamente a autonomia das Uniões. A escolha era explicada como uma forma de profissionalizar a administração financeira. Fontes no Brasil e nos Estados Unidos pediram anonimato para fornecer detalhes a respeito do que uma pessoa chamou de “experiência de entidades que recebem recursos de contribuintes” na reportagem anterior. Um estudo de caso em uma União do Brasil mostra como este processo funcionava.

Até a eleição de Köhler em 2006 como presidente da Divisão quase todas as Uniões na América do Sul tinham seu próprio fundo mútuo para assegurar os veículos de obreiros credenciados da IASD. A prática foi iniciada pela União Central Brasileira (UCB) há mais de 40 anos. Era uma forma de poupar recursos pagos a seguradoras externas, já que direção perigosa e acidentes automobilísticos eram ocorrências menos prováveis tratando-se do obreiro médio. A prática era arriscada no início, mas a conduta dos motoristas e a contribuição contínua dos obreiros ao longo de muitos anos deu aos fundos uma quantidade considerável de dinheiro. Estes recursos permitiam que as Uniões cobrassem menos pelo seguro automobilístico de seus obreiros ou congelassem preços ao longo de muitos anos, a despeito da inflação. Este programa popular até mesmo premiava obreiros que não acionavam sinistros com benefícios, como dinheiro extra para a manutenção de seus carros.

Além do benefício mútuo, estes fundos administrados pelas Uniões também aumentavam a segurança e a autonomia financeira das instituições do campo. Era comum que eles contribuíssem para uma mentalidade de “caixa dois” nas Uniões. Fora uma “reserva técnica” cuja manutenção era obrigatória — cerca de seis vezes os rendimentos do fundo no ano anterior — de acordo com duas fontes que pediram anonimato, uma comissão executiva da União podia votar para investir ou emprestar o dinheiro para instituições da IASD, de modo a desenvolver novos programas ou prover assistência em caso de dificuldades financeiras.

Esta fonte de autonomia financeira das Uniões era vista como um grande problema pela administração de Erton Köhler, que pregava modernização através de uma estrutura hierárquica vertical. A DSA iniciou uma campanha para alocar todos os fundos mútuos das Uniões em Brasília. Entre as razões dadas pela mudança estava uma melhor supervisão contra o mau uso dos fundos em nível local, assim como uma ordem da AG para centralizá-los sob a administração da ARM, Inc. na sede denominacional, em Silver Spring, Maryland.

Sob Köhler, o escritório recém-criado da ARM na América do Sul (ARM-SA) logo adquiriu a corretora de seguros da UCB, Unibrás (fundada em 1978), que passou a ser operada pela ARM, Inc. Mas enquanto a maior parte das Uniões transferiu seus fundos mútuos para a ARM-SA durante a década de 2010, a UCB, cujo fundo mútuo tinha a quantidade mais significativa de dinheiro, resistiu à fusão. De acordo com uma fonte que pediu anonimato para compartilhar detalhes, a UCB passou a ser o alvo principal da campanha da DSA. As reuniões com a DSA eram tensas, com uma mentalidade de “nós contra eles”. A fonte acrescentou que a retórica da Divisão implicava que a UCB estava agindo contra os interesses da IASD mundial.

Isso criou alguma confusão na União. Por exemplo, cerca de 500 obreiros aposentados em São Paulo transferiram seu seguro automobilístico para a ARM-SA por pensarem erroneamente que sua aposentadoria, administrada pela DSA, exigia que seus carros fossem assegurados pela ARM-SA. Muitos aposentados então transferiram seu seguro de volta para a UCB quando viram que suas taxas eram mais baratas.

Foi somente no fim de 2018 que a campanha da DSA produziu frutos, novamente através da rede sulista de conexões que produziu os últimos três presidentes da Divisão e outros líderes financeiros da IASD. Edson Erthal de Medeiros, que na época era o tesoureiro da União Sul Brasileira (USB), foi eleito na assembleia quinquenal como tesoureiro da UCB, com o propósito declarado de resolver pendências entre a UCB ea DSA.

Em novembro de 2019, um ano após ser reeleito na mesma assembleia quinquenal, Domingos Sousa, o presidente da UCB, se aposentou. A comissão executiva da União, presidida pelo presidente da Divisão Erton Köhler, nomeou então Maurício Pinto Lima, na época presidente da União Sudeste Brasileira (USEB) e chamado por alguns de “sniper do Erton”, como novo presidente da UCB. Em 2020, os milhões de dólares no fundo mútuo da UCB e todos os seus contratos de seguro envolvendo milhares de carros foram adquiridos pela DSA/ARM-SA. Em 2021, após parcos dois anos na UCB, a comissão de nomeação da DSA transferiu Edson Erthal de Medeiros para a liderança da Casa Publicadora Brasileira (CPB).

A transferência de fundos mútuos para a sede da Divisão em Brasília também consolidou um mecanismo para assistência financeira não oficial através de Köhler. Embora não reconhecida oficialmente como uma prática da ARM-SA, múltiplos relatos sugerem que instituições da IASD podiam pegar dinheiro emprestado de Brasília para investimento ou assistência em emergências, desde que certa quantidade de seguros da ARM-SA fosse contratada para compensar o dinheiro emprestado na contabilidade da empresa. Um exemplo deste uso de caixa dois discricionário ou post hoc beneficiou o Internato Adventista Cruzeiro do Sul (IACS), localizado no sul do Brasil. A igreja da escola foi severamente danificada por uma tempestade e não estava assegurada para desastres naturais, mas teve coberta boa parte dos gastos do conserto.

Conforme reportado anteriormente, seis funcionários da ARM-SA, incluindo os três principais líderes da organização, foram demitidos após múltiplas investigações da auditoria da Associação Geral (GCAS) no final de 2023. O paradeiro dos trinta milhões supostamente mal utilizados por eles ainda não é conhecido. De acordo com uma fonte, todos os funcionários demitidos têm conexões com a rede de relacionamentos da Divisão centralizada por Köhler.

Embora o destino dos vários fundos mútuos ainda não esteja claro, aguardando a conclusão e divulgação da investigação da ARM, Inc., essa rede informal de controle centralizado pela DSA e uma mentalidade generalizada de “caixa dois” poderia ser a fonte das irregularidades detectadas pelo GCAS.

A ARM, Inc. possui duas corporações na América do Sul: UNIBRAS e ARM Consultoria. Essas duas entidades passam por auditorias regularmente e não são o alvo da investigação atual. O escritório da ARM-SA inclui pessoas que administram fundos de benefícios para funcionários para os obreiros credenciados na DSA. É aí que estão as supostas “irregularidades administrativas”. De acordo com uma fonte que pediu anonimato para revelar informações sensíveis, estes fundos “são administrados pela Divisão”.