Jovens adventistas consomem com frequência o Espírito de Profecia, e preferem compreendê-lo de forma contextualizada e crítica; a despeito da liderança, que prefere impor interpretações tradicionais ao invés de abrir espaço para discussões
“Ellen G. White” (Montagem: Jayder Roger; Fonte: EGW Estate)
Não é de desconhecimento dos membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) quem foi Ellen G. White, a jovem estadunidense que, aos 17 anos, iniciou um ministério profético no período de comoção religiosa entre cristãos do movimento millerita. Suas mais de 100 mil páginas escritas ao longo de 70 anos de ministério são até hoje debatidas em termos legitimidade e posição em relação à Bíblia. Amanhã, domingo (16), será relembrado o 108o aniversário de sua morte, ocasião propícia para reviver o seu legado e revisitá-lo de forma crítica para uma melhor compreensão de sua relevância e atualidade para os adventistas.
Seu legado, seu ministério, e seus escritos, mesmo 108 anos após sua morte, ainda se fazem presentes nas Assembleias da IASD. No ano passado, na 61ª Assembleia da Associação Geral, em Saint Louis, EUA, dois assuntos da agenda pautavam seu legado póstumo: (1) a criação do cargo de coordenador de escritos Espírito de Profecia em igrejas locais e (2) a nova declaração de confiança nos escritos de Ellen G. White.
No primeiro caso, o cargo recém-criado teria a atribuição de “promover a importância e o uso devido dos 25 escritos do Espírito de Profecia”. A proposta causou discussões na sessão, pois muitos membros colocam os escritos de White acima da autoridade bíblica, correndo o risco de que seus escritos fossem idolatrados. Sandi Colon, delegada pela Associação Califórnia Central, mostrou sua preocupação com os termos usados, “importância e uso devido”, argumentando que uma pessoa nessa posição poderia se sobrepor à liberdade religiosa dos membros e à forma como eles poderiam interpretar a importância dos escritos. A emenda foi aceita com 66,3% dos votos, e as igrejas poderão a partir de agora nomear um coordenador para a função.
Na nova “Declaração de Confiança nos escritos de Ellen G. White”, assim como a emenda que inclui o novo cargo no Manual da Igreja, não há uma orientação esclarecendo o que significa o uso adequado ou inadequado de sua produção literária. Delegados apontam que isso pode gerar problemas de interpretação entre membros, além de apontar a falta de definição para o que são “escritos de Ellen G White” — seriam seus livros, os compilados de seus escritos, as cartas a amigos e familiares? Anthony Bosman, delegado da Associação Geral, preocupou-se porque o documento se refere aos escritos como “um guia inspirado para as Escrituras”, e diz que isso abrirá brecha para que os críticos afirmem que a igreja interpreta a Bíblia através das lentes de Ellen G. White, enquanto Ellen G. White sempre afirmou que “a Bíblia interpreta a si mesma”.
Duas décadas de controvérsia
A votação de tais emendas e declarações em Assembleias Gerais não é novidade. Ao observarmos as últimas cinco Assembleias da Associação Geral, percebemos o grande esforço realizado pela igreja para reafirmar o dom de profecia manifesto em Ellen G. White.
Na Assembleia de 2000 em Toronto, Canadá, por exemplo, foi votada a “Resolução sobre o dom de profecia por meio do ministério de Ellen G. White”. Em sua introdução, a resolução apresenta uma narrativa sobre o tempo do fim em que Deus, através dos profetas, confere revelações para combater os enganos de Satanás. A resolução então faz algumas considerações a respeito da expressão da graça de Deus através dos escritos whiteanos, e nos exorta a humilhar os corações diante de sua mensagem, para que esta dê frutos em nossas vidas. Ela então recomenda dedicação para encorajar os jovens e novos conversos a enxergar o valor deste dom; aumentar a circulação dos livros da autora; viver os “conselhos inspirados” em sua vida diária; a criação do “Dia do Espírito de Profecia”. A medida também tornou a circulação da obra de White acessível às igrejas, reforçando que a Associação Geral subsidiaria mais traduções nos idiomas locais.
Cinco anos mais tarde (2005), em Saint Louis, Missouri, os delegados afirmaram que o Ministério de White ainda continua nutrindo o movimento adventista e preservando a unidade da igreja, e apela aos jovens que se familiarizem com seus escritos.
Posteriormente, na Assembleia de 2010, foi votada uma nova resolução com basicamente as mesmas praxes. As mudanças significativas, com valor simbólico, se deram em 2015, na Assembleia de San Antonio, quando a declaração votada passou a ter o nome de “Declaração de confiança nos escritos de Ellen G. White”; imputando que sua obra literária é confiável, ou mesmo sem margem para desconfiança.
Considerando que a igreja só vota um documento a partir de um problema ou necessidade, é possível que, pelo menos nos últimos 22 anos, a IASD esteja enfrentando um crescimento gradual de descrença e desconfiança nos escritos de Ellen G. White. Essa mesma tendência pode ser observada, ainda que de forma superficial, entre os adventistas na América Latina, com especial atenção aos brasileiros.
A profetisa entre os brasileiros
No Brasil, Ellen G. White tem visibilidade dentro e fora da comunidade adventista. No final de 2012, um retrato de White passou a integrar a galeria da Universidade Aberta do Meio Ambiente e da Cultura da Paz, no estado de São Paulo. Os retratos da galeria são uma homenagem a pessoas que contribuíram para o bem na sociedade. A indicação de seu nome para a honraria partiu do então secretário do Verde e Meio Ambiente, Eduardo Jorge, que disse ter identificado a promoção de desenvolvimento sustentável, cultura de paz e saúde na literatura whiteana.
Entre as contribuições para que Ellen G. White seja conhecida fora da denominação está o Impacto Esperança, projeto evangelístico de distribuição de livros que já trouxe publicações da autora em algumas de suas edições. O alcance do projeto pode ser notado a partir da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2015), do Instituto Pró-Livro, que apontou Ellen G. White entre os quinze autores mais citados como resposta à pergunta 20 (E quem é o autor deste último livro que o(a) sr(a) leu ou está lendo?). Ellen G. White ocupou a décima posição.
No que diz respeito ao entendimento específico dos adventistas do sétimo dia, durante o período de 30 de maio a 07 de junho de 2022, a revista Zelota disponibilizou uma pesquisa on-line com a finalidade de mensurar a credibilidade do ministério profético de Ellen G. White entre os membros da IASD brasileira. O questionário foi composto por perguntas objetivas, com o propósito de obter informações genéricas sobre o tema para sublinhar impressões iniciais. Atualmente, o formulário não está mais aberto para respostas, e sua circulação se restringiu ao ambiente on-line.
No geral, a pesquisa publicada pela Zelota recebeu exatamente 530 respostas. Dentre os participantes, 91,7% afirmaram ser membros oficiais da igreja, sendo ligados a ela através de batismo ou profissão de fé (Gráfico 1). Deste grupo, 61,2% relataram que frequentam a igreja sistematicamente, 14% não mais frequentam, e os demais afirmaram ir ocasionalmente às reuniões de sua congregação ou grupo.
Legenda: Respostas de acordo com vínculo institucional.
Os participantes do questionário se distribuem geograficamente da seguinte forma: 51,1% vivem na região sudeste brasileira; 20,6% no nordeste; 14,9% no sul; 5,3% no centro-oeste; e 3,6% no norte. 4,5% dos participantes declararam não residir no Brasil (Gráfico 2).
Legenda: Distribuição das respostas entre as diferentes regiões do Brasil.
A pesquisa esteve aberta para membros que tivessem acima de 14 anos, de adolescentes a idosos. Entre os participantes, 21,9% afirma ter 26–30 anos; 20,9% têm 31–35; e 20,2% têm 21–25. Em outros termos, mais da metade dos participantes (63%) equivale à categoria “jovem” da IASD, que vai de 21 a 35 anos. Ademais, 15,3% têm 36-40 anos; 9,8% têm 41–50 anos; e 4,3% têm 51–60 anos. Esses dados podem ser representativos da categoria “adulta” da membresia, que soma 29,4%. Apenas 2,3% dos participantes têm mais de 61 anos. Por fim, a segunda ala menos representada é a adolescente, que corresponde a 4% entre os de 18–20 anos, e 0,9% entre os de 14–17 anos (Gráfico 3).
Distribuição da faixa etária dos participantes.
Dos 530 respondentes, 99,8% dizem conhecer Ellen G. White, e só uma pessoa escolheu a opção “já ouvi falar”. Da mesma quantidade, 97,9% afirmaram ter lido algum livro da autora, contra 1,5% (8 pessoas) que disseram o contrário – além de outros 0,3% (3 pessoas) que não se lembram. Em outros termos, trata-se de um grupo que, em sua quase totalidade, já leu algum material da autora.
A pesquisa também perguntou quanto o participante já consumiu das produções literárias de Ellen G. White, assim como quanto ele concordou ou discordou do que leu. A pesquisa adotou uma escala de 1 a 5, onde 1 é compreendido como pouco, 3 como médio e 5 como muito. Do público pesquisado, 5,8% declaram ter consumido pouco, 32,6% medianamente e 14,3% consomem muito. Somando os extremos inferiores (opções 1 e 2) e os extremos superiores (opções 4 e 5), 35,2% afirmam consumir pouco, enquanto 32% afirmam consumir muito. Não há tanto equilíbrio quando o assunto é o nível de concordância com White: 5,7% escolheram a opção 1 (concordam pouco), ao passo que 24,3% escolheram a opção 5 (concordam muito). Já a opção mediana (3) foi marcada por 30,9% dos participantes. Somando os extremos inferiores (opções 1 e 2) e os extremos superiores (opções 4 e 5), 22,1% tendem a discordar do que leem, e 46,9% tendem a concordar.
O questionário também perguntou se os textos de Ellen G. White devem ser lidos de forma literal, ou seja, fora de seu contexto histórico e cultural. A maioria (85,5%) disse que não; 7,5% respondeu que sim; e 7% tem dúvidas. Na questão seguinte, o questionário pergunta aos participantes para que época os conselhos de Ellen G. White deveriam ser aplicados. 73% escolheram a opção “alguns para época dela, outros para a nossa”; 17,5% a opção “tanto para a época dela quanto para a nossa”; e 9,4% escolheram “apenas para a época dela” (nenhuma resposta foi dada à opção “apenas para a nossa”).
Outra questão perguntou qual a importância dos escritos de Ellen G. White para o estudo e a compreensão da Bíblia, numa escala também de 1 a 5. Nesse quesito, 28,7% escolheram a opção 1 (pouco), contrário a outros 14% que escolheram a opção 5 (muito); 24% escolheram a opção 3 (mediano). Somando os extremos: 51% tende a conferir menos importância aos escritos de Ellen G. White para o estudo e compreensão da Bíblia, ao passo que 25,1% tendem a conferir mais importância ao mesmo objetivo.
No que diz respeito à crença nas doutrinas adventistas: 59,2% acredita que não é necessário crer em Ellen G. White para aceitar as doutrinas adventistas, contra 30,4% que afirmam o oposto e 10,4% que têm dúvidas sobre o assunto. Ainda que 30,4% do público pesquisado afirme que é necessário crer em Ellen G. White para aceitar as doutrinas adventistas, em outra pergunta, 93,2% afirma que os escritos da autora, separados da Bíblia, não devem ser utilizados como argumento para formulações doutrinárias. A esta questão, 2,5% respondem que sim e outros 4,3% não têm certeza.
Em relação a outras questões, 37,9% acreditam que Ellen G. White foi uma profetisa equivalente aos profetas bíblicos do Antigo e Novo Testamento; 39,4% acreditam que não; e 22,6% têm dúvidas em relação a isso. Por outro lado, 65,3% creem que White possui algum dom sobrenatural para os seus escritos; 20,6% têm dúvidas; e 14,2% não acreditam que ela possua qualquer dom sobrenatural.
Para a maioria dos participantes, não é preciso crer nos escritos de Ellen G. White para compreender a Bíblia. Essa resposta foi dada por 91,5% do público pesquisado, contra contra 5,1% que acha necessário, e 3,4% que responderam ter dúvidas. Ademais, 82,6% declararam que não veem espaço na IASD brasileira para discutir de forma crítica o legado de Ellen G. White; 9,2% disseram que “às vezes” há espaço; e 8,1% disseram que “sim”, há espaço.
Promovendo o “uso correto”
A despeito dos dados apresentados, há muito menos diversidade na IASD brasileira a nível institucional. Com o centenário da morte da autora, em 2015, a Divisão Sul-Americana (DSA) promoveu concursos para que os membros estudassem seus livros, vendendo coletâneas a preços populares. Dois anos mais tarde, uma das medidas tomada pela DSA foi que os mais de 217 minicentros existentes à época formassem uma rede composta de iniciativas universitárias e minicentros das igrejas locais. Posteriormente à decisão, pelo menos cinco novos centros foram inaugurados: em Linhares, norte do Espírito Santo; em Montes Claros, norte de Minas Gerais; duas unidades em Vitória da Conquista, Bahia; e outro na sede administrativa da Associação Paulista Sudeste, em Sorocaba, São Paulo.
Nesse contexto, é interessante notar que até mesmo o serviço batismal foi afetado por essa disparidade no território sul-americano. Ainda que o Manual da Igreja não traga mais a obrigatoriedade de aceitar o dom de profecia manifestado no ministério de Ellen G. White em seus votos batismais, a membresia fica diante de duas situações: (1) a declaração de fé, presente na ficha batismal do território da DSA, dispõe em seu décimo tópico que o candidato a membro deve aceitar o dom manifesto em Ellen G. White “como característica distintiva da igreja remanescente”; e (2) a obrigatoriedade de aceitar todas as “crenças fundamentais” e a possibilidade de disciplina eclesiástica, conforme consta em caixa alta logo antes do espaço para assinatura.
Deste modo, o voto batismal obriga os candidatos a aceitar os escritos whiteanos como “autoridade profética” que “proveem consolo, orientação, instrução e correção para a igreja”, ou a mentir para se associar à igreja. Mesmo o cargo de “coordenador do Espírito de Profecia”, que surpreendeu a muitos na Assembleia em Saint Louis, em 2022, existe no território da DSA pelo menos desde 2017. A pessoa designada ao cargo tem por atribuição estimular os membros a ler mais os livros da autora. Na prática, por se tratar de um ministério que lida com literatura, a pessoa indicada à função costuma ser a mesma responsável pelo Ministério de Publicações. Curiosamente, a linguagem usada no manual de orientações aos coordenadores ecoa trechos bastante questionados na emenda deste ano: o objetivo 5 do cargo prevê que o coordenador deve “estar atento para corrigir qualquer uso incorreto de seus escritos”(p.18).
Outras medidas criadas foram a instituição do Dia do Espírito de Profecia para as igrejas dedicarem um sábado a estudar os escritos e a vida de Ellen G. White, um concurso para incentivar a leitura da autora entre adolescentes, e especialidades dos desbravadores para resgatar o seu legado. Há ainda o programa “Adoração em Família”, que promove estudos dirigidos de livros de Ellen G. White em cultos de quarta-feira ou em pequenos grupos. Tais projetos sempre parecem partir de instâncias adventistas superiores, tais como a DSA e a Casa Publicadora Brasileira (CPB), que não abrem muita margem a discussões críticas do conteúdo distribuído.
A despeito do zelo e preciosismo demonstrados tanto pela DSA quanto pela CPB, há casos já documentados de alterações a textos de Ellen G. White no contexto brasileiro que mudaram seu sentido original, como observado na edição brasileira de Mente, Caráter e Personalidade vol. 1, publicada pela CPB. O livro em questão aponta supostas declarações de Ellen G. White sobre homossexualidade, além de apresentar um comentário por parte dos compiladores da versão original (e perpetuada nas edições seguintes): “Para cada privilégio lícito, concedido por Deus, Satanás tem uma contrapartida a propor. O pensamento puro e santo ele procura substituir pelo impuro. A santidade do amor matrimonial ele quer substituir pela permissividade, infidelidade, excesso e perversão; pelo sexo pré-marital, adultério, animalismo, dentro e fora do matrimônio, e a homossexualidade. A tudo isto faz referência este capítulo.”1
Na versão impressa, na edição especial do “Adoração em Família” de 2014 e versão digital distribuída no site Centro White, há um subítulo que diz “Homossexualidade, Pecado Específico de Sodoma” e “Homossexualismo, o Pecado Específico de Sodoma”, respectivamente. Nessas versões há um acréscimo direcionado a Ezequiel 16.49.2 A fim de saber do que se tratava esse parágrafo isolado supostamente atribuindo a homossexualidade como o “pecado específico de Sodoma”, o texto original de Ellen G. White na edição de The Health Reformer de julho de 1873, p. 220 é como segue:
“The prophet Ezekiel describes a class whose example Christians should not imitate. “Behold, this was the iniquity of thy sister Sodom, pride, fullness of bread, and abundance of idleness was in her and in her daughters, neither did she strengthen the hand of the poor and needy.” HR July 1, 1873, par. 1
We are not ignorant of the fall of Sodom because of the corruption of its inhabitants. The prophet has here specified the particular evils which led to dissolute morals. We see the very sins now existing in the world which were in Sodom, and which brought upon her the wrath of God, even to her utter destruction. HR July 1, 1873, par. 2″
Esse mesmo texto, presente na versão em português (CPB), vemos na versão em Mind, Character and Personality, v. 1, p. 232, sob o subtítulo “Sodom’s Dissolute Morals”.
“Sodom’s Dissolute Morals.—We are not ignorant of the fall of Sodom because of the corruption of its inhabitants. The prophet has here [Ezekiel 16:49] specified the particular evils which led to dissolute morals. We see the very sins now existing in the world which were in Sodom and which brought upon her the wrath of God, even to her utter destruction.—The Review and Herald, July, 1873. (The S.D.A. Bible Commentary 4:1161.)”
Fazer essa comparação nos permite perceber algumas coisas: (1) O texto original em The Health Reformer não possui subtítulo; (2) Ezequiel 16 é mencionado no parágrafo anterior; (3) Em todo o texto original, o pecado de Sodoma é descrito como injustiça social e desigualdade entre ricos e pobres; (4) Ellen G.White fala da importância da diversidade no trabalho para Cristo e valoriza o papel de gênero da mulher; e (5) Em nenhuma das versões anteriores à publicação da CPB há menção à homossexualidade como “pecado específico” de Sodoma.
Em resumo, a edição de Mente, Caráter e Personalidade da CPB não só inseriu subtítulos a trechos de EGW de modo a distorcer seu sentido, mas o fez utilizando a palavra “homossexualismo”, não utilizada desde que a Organização Mundial de Saúde (OMS) tirou a homossexualidade do catálogo de patologias.
Ao ser questionada por e-mail, a Editoria dos Livros de Ellen G. White, parte da CPB, explicou que “recentemente, ao preparar uma nova edição do referido livro, detectamos o problema mencionado e já o corrigimos. Na próxima edição, o intertítulo citado aparecerá como ‘A moral decaída de Sodoma’, sendo esta uma tradução mais literal do inglês. A solicitação de correção também já foi encaminhada para o White Estate, que mantém o site oficial dos escritos de Ellen G. White.”
A Editoria também negou conhecer a motivação do tradutor e dos editores das edições: “O tradutor já é falecido e os editores mencionados já não trabalham mais na Casa Publicadora Brasileira. Não podemos responder por eventuais intenções deles em fazer e manter essa adaptação específica; mas, ao preparar as reedições dos livros de Ellen White, podemos constatar que interpretações e adaptações assim são extremamente raras e sempre em títulos e intertítulos, nunca no texto”.
Embora a Editoria tenha dito que estes erros são raros, tais distorções (pelo menos quando o assunto é homossexualidade) se mantêm em outros compilados, dessa vez importadas diretamente dos EUA. O livro Conduta Sexual (2011),3 publicado pela primeira vez em 1989 com os nomes Testimonies on Sexual Behavior, Adultery, and Divorce4 e Testemunhos Sobre Conduta Sexual, Adultério e Divórcio (2008)5, apresenta um capítulo exclusivamente sobre homossexualidade; os trechos de Ellen G. White citados, no entanto, só apresentam referências vagas à Sodoma e aos sodomitas, incluindo o trecho descontextualizado de The Health Reformer citado acima. Não há qualquer citação nos trechos que vincule o pecado de Sodoma diretamente à homossexualidade, com exceção do título do capítulo — uma escolha editorial.
A presença de uma nota no início do capítulo, no entanto, deixa mais clara a motivação para estas distorções: [O concílio anual de 1977 da Igreja Adventista do Sétimo Dia votou que “graves perversões sexuais, incluindo práticas homossexuais, são reconhecidas como um mau uso das faculdades sexuais e uma violação da intenção divina no tocante ao casamento. Como tais, constituem justa causa para o divórcio”. — General Actions, p. 10. Razões pelas quais a pessoa pode ser desligada da Igreja Adventista do Sétimo Dia incluem “prática homossexual, abuso sexual de crianças e de adultos vulneráveis e outras perversões sexuais”. — Manual da Igreja Adventista do Sétimo Dia (revisão de 2000), p. 187.] Aparentemente, a inviolabilidade dos escritos de Ellen G. White está subordinada ao voto da Igreja, que, após deliberar sobre um tópico anacrônico à profetisa, julga ter autoridade para manipular seus escritos e validar doutrinas formuladas após sua morte.
Conclusão
Há um exemplo final que ilustra bem as tensões entre os questionamentos da membresia e o credo institucional. A partir de abril de 2021, a revista Zelota publicou uma série de artigos traduzindo textos do blog do Pr. Jon Paulien, professor na universidade de Loma Linda, e também o entrevistou em vídeo. Os temas discutidos foram a natureza do dom profético de Ellen G. White e a expectativa de um decreto dominical.
Coincidentemente, nos meses que se seguiram à publicação dos artigos e do vídeo, se intensificaram os esforços institucionais na promoção de interpretações tradicionais a respeito das profecias de Ellen G. White e do decreto dominical: além de uma série de artigos e uma matéria de capa na Revista Adventista (Imagem abaixo), veículo gerenciado diretamente pela CPB e pela DSA, e várias lives feitas com autoridades institucionais, foi publicado um documento com declarações do Biblical Research Institute (BRI) a respeito do assunto. A justificativa era que “questionamentos recentes foram direcionados ao Instituto de Pesquisa Bíblica a respeito de marca da besta e sua relação com a observância do domingo, bem como condicionalidade da profecia bíblica”. Nenhum dos textos menciona Paulien diretamente, tampouco discute seus argumentos criticamente; a reafirmação das doutrinas tradicionais se dá por sua repetição incessante, de modo a soterrar qualquer opinião diferente sob interpretações doutrinárias hegemônicas.
Justiça seja feita, este apego a interpretações mais conservadoras e literalistas do legado de Ellen G. White não é exclusividade da América do Sul, e a Assembleia Geral de 2022 deixou claro que esta é uma posição defendida com unhas e dentes pela ala conservadora que atualmente administra a Associação Geral, especialmente na pessoa de Ted Wilson. O que chama a atenção é a sinergia entre AG e DSA no que diz respeito à imposição destas interpretações sobre todo o território sul-americano, e a falta de autonomia ou iniciativa de administrações locais para dar espaço a discussões abertas e francas sobre o assunto.
A pesquisa feita pela Zelota apresenta uma membresia — especialmente os jovens — que crê em Ellen G. White e em seu dom profético, mas enxerga nuances em suas profecias e pensa criticamente a respeito de seu legado. Essa membresia fiel, mas questionadora, não parece ver espaço para diálogo com a instituição, que prefere impor interpretações tradicionais acriticamente e vencer questionamentos pelo cansaço. Não surpreende que os jovens da IASD estejam, de fato, cansados — foram 519.768 jovens sul-americanos deixando a IASD na última década, o que equivale a 55% da membresia entre 12 e 29 anos de idade. Pensando nesta demanda da membresia adventista brasileira que não é atendida pelas publicações oficiais, e de modo a recuperar o legado de Ellen G. White no 108º aniversário de sua morte, a revista Zelota começa hoje a série “Filha do Apocalipse”, com a publicação de material inédito em português que discute criticamente a composição, inspiração e função dos escritos de Ellen G. White para o adventismo.
Notas:
1.↑ Citação presente na página 220, da versão original, em inglês. WHITE. E. G. Mind, Character, and Personality Volume 1 (1977). Disponível em: http://www.centrowhite.org.br/files/ebooks/egw-english/books/Mind,%20Character,%20and%20Personality,%20vol.%201.pdf. Acessado em 10 de junho de 2022. Citação presente na página 245 da versão em português. WHITE. E. G. Mente, Caráter e Personalidade 1 (2005). Disponível em: http://www.centrowhite.org.br/files/ebooks/egw/Mente,%20Car%C3%A1ter%20e%20Personalidade%201.pdf. Acessado em 10 de junho de 2022. Versão em português na edição especial (CPB) presente na página 160. WHITE. E. G. Mente, caráter e personalidade, volume 1: guia para a saúde mental e espiritual / Ellen G. White; tradução de Luiz Waldvogel. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014.
2.↑ WHITE. E. G. Mente, caráter e personalidade, volume 1: guia para a saúde mental e espiritual / Ellen G. White; tradução de Luiz Waldvogel. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014.
3.↑ WHITE. E. G. Conduta Sexual: testemunhos sobre abuso, homossexualidade, adultério e divórcio / Ellen G. White; tradução Hélio L. Grellmann. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011.
4.↑ WHITE. E. G. Testimonies on Sexual Behavior, Adultery, and Divorce (1989). Disponível em: http://www.centrowhite.org.br/files/ebooks/egw-english/books/Testimonies%20on%20Sexual%20Behavior,%20Adultery,%20and%20Divorce.pdf. Acessado em 10 de junho de 2022.
5.↑ WHITE. E. G. Testemunhos Sobre Conduta Sexual, Adultério e Divórcio (2008). Disponível em: http://www.centrowhite.org.br/files/ebooks/egw/Testemunhos%20Sobre%20Conduta%20Sexual,%20Adult%C3%A9rio%20e%20Div%C3%B3rcio.pdf. Acessado em 10 de junho de 2022.