O Ministério Amizades Verdadeiras utiliza conceitos ambíguos para praticar a “correção” da prática homossexual, e segue os mesmos padrões históricos e metodológicos de ministérios de ‘cura gay’ dentro e fora da denominação adventista
Série: “Ministério Amizades Traiçoeiras”
“Mulheres orando” (Fonte: Unsplash+)
Neste final de semana, o Ministério Amizades Verdadeiras (MAV) irá realizar, agora de forma presencial, o “V Encontro Nacional MAV”, com o título “Sexualidade e a Igreja no Século XXI”, entre os dias 10-12 de novembro, na Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) do Brooklin, em São Paulo. O evento será restrito aos participantes pagantes, com exceção do sábado de manhã, que será aberto ao público. Para muitos adventistas, no entanto, a existência do MAV é uma incógnita, seja pela ambiguidade do nome ou pelo desconhecimento do ministério, em geral. Em termos simples, o MAV é um ministério pioneiro no Brasil para o acolhimento e atendimento de homossexuais no contexto adventista e, em muitos aspectos, de alcance interdenominacional. Ele pretende alcançar a comunidade LGBTI+ cristã para propor um “estilo de vida alternativo” à “prática homossexual”.
Embora pareça algo novo, o MAV nasce e se desenvolve de maneira muito semelhante a iniciativas de cura gay no contexto adventista que remontam à década de 1980. Ele também segue uma abordagem similar à de iniciativas cristãs que pretendem a “correção” das homossexualidades, visitando traumas antigos e incentivando a piedade religiosa como forma de alterar práticas e preferências sexuais. Esse ministério, mesmo recente, já conquistou espaço significativo em discursos e reuniões administrativas da IASD, oferecendo à instituição na América Latina a tão sonhada “alternativa” para lidar com a comunidade LGBTI+, envolta de um discurso científico e piedoso.
À semelhança de seus progenitores, o MAV já começa a apresentar suas fragilidades como ministério para os LGBTI+ adventistas. Aos poucos, surgem relatos, tanto pessoais quanto jurídicos, que denunciam más práticas nos processos terapêuticos aplicados aos participantes. Nesta breve matéria, tentaremos apresentar algumas delas, abordando o MAV desde uma perspectiva histórica, passando pelo seu discurso sobre a correção da prática homossexual e, por fim, apresentando padrões que o classificam como mais uma entre as iniciativas que pretendem tornar pecaminosa e insalubre a relação entre pessoas do mesmo sexo no contexto cristão.
Histórico, idealização e agenda
De certa maneira, a história do MAV se confunde com a história de seu principal idealizador, o biólogo Flavio Krzyzanowski Júnior, atual coordenador do ministério. Em seu relato pessoal, Flavio possuía “tendências homossexuais” desde a infância, e desenvolveu atração sexual por pessoas do mesmo sexo durante a adolescência, período no qual a questão se tornou um conflito pessoal e religioso: pessoal, porque sofreu abusos sexuais de homens mais velhos, e alimentava, ao mesmo tempo, aversão e atração por eles; e religioso, porque costumava procurar pastores para esclarecimentos, dos quais não encontrava qualquer auxílio efetivo.
Anos mais tarde, ao iniciar a faculdade de biologia, Flavio se interessou pelo assunto da homoafetividade e resolveu dedicar parte de seus estudos acadêmicos ao tema. Enquanto cursava o doutorado na Holanda, o biólogo passou a frequentar uma IASD de língua portuguesa no Amsterdã, local em que conheceu Suzane Portela, pastora adventista responsável pela congregação à época. Em meio a conversas pessoais, Suzane percebeu que Flavio, além de homossexual, possuía conhecimento científico sobre o assunto; ela o convidou, então, a visitar famílias para oferecer conselhos com o conhecimento que já possuía. Dessa iniciativa surgiu o desejo de realizar palestras sobre o assunto e dar início a um ministério.
Flavio retornou ao Brasil em 2013, e durante dois anos a ideia permaneceu engavetada. Em 2015, o biólogo foi convidado pelo Pr. Adriano de Villa para dar início ao MAV na Igreja Central Paulistana (ICP). Desejoso de que os homossexuais adventistas não passassem pela mesma experiência, Flavio ficou ainda mais motivado em dar continuidade ao projeto e aceitou o convite. O grupo começou pequeno, dentro de uma pequena sala na ICP, atendendo não apenas homossexuais, mas também pais e mães que enfrentavam questões dessa natureza em casa.
Quando integrado à ICP, o MAV foi um dos ministérios que recebiam auxílio financeiro para gerir suas atividades. Na época, o Pr. Adriano de Villa implementou um projeto denominado “Dons e Ministérios”, com o objetivo de identificar e efetivar a participação de seus membros. O projeto também foi aplicado como uma maneira de “desburocratizar” a criação de ministérios e facilitar a aceitação de projetos na comissão da igreja. Assim, dentre projetos com moradores de rua e outros que envolviam a juventude, o MAV conseguiu espaço oficial para iniciar suas atividades com homossexuais recebendo algum auxílio financeiro, ainda que simbólico. A partir de setembro de 2021, o MAV passou a cobrar mensalidade dos participantes por afirmar que a ajuda financeira oficial da IASD não cobria todos os gastos.
Atualmente, o ministério não possui mais relações com a ICP, e encontra-se diretamente ligado à Associação Paulistana (AP), ainda sob a tutoria do Pr. Adriano de Villa, da IASD do Brooklin, que sediará o V Encontro Nacional do movimento nos dias 10-12 de novembro. O MAV já realizou treinamentos na Europa e nos EUA, e tem como objetivo criar grupos de apoio locais em todo Brasil para auxiliar e envolver as congregações adventistas. Ele também atua em dois grupos de WhatsApp para atender pessoas que não vivem em São Paulo; realiza um Congresso Nacional por ano; e oferece palestras presenciais e on-line. Realizam-se ainda outras atividades, como duplas de oração, vigílias, “tardílias”, cultos semanais, encontros de pais, além de cursos oferecidos em EAD para a formação de líderes. Todos os participantes do MAV são voluntários e de vertente interdenominacional; participam da organização pastores e outros que conduzem aconselhamentos.
O MAV atua como braço da IASD no Brasil para lidar com a questão da homoafetividade entre os adventistas. Flavio já foi convidado, por exemplo, a palestrar em um encontro de pastores distritais em São Paulo, em agosto de 2023. No mesmo ano, ele falou a um grupo de jovens universitários no Rio de Janeiro em congresso sobre identidade cristã. Em época de pandemia, setembro de 2021, ele também chegou a participar de uma live com alcance sul-americano, mediado em português e espanhol, e acompanhado do diretor do Ministério da Família para o continente. A iniciativa e discurso do MAV também ganham espaço em reportagens e entrevistas na Agência Adventista Sul-Americana de Notícias (ASN); e o próprio coordenador do MAV possui espaço de fala no portal de notícias da IASD. Há evidências de que Flavio chegou a palestrar aos doutorandos em Teologia no Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), e diversos relatos de programações realizadas pelo Brasil.1 O MAV também foi indicado ao grupo de pastores no Concílio Ministerial da União Central Brasileira (UCB), em julho de 2022, juntamente com outras iniciativas adventistas para lidar com a homossexualidade.
O viés político do MAV fica evidente na ocasião em que se une à agenda da IASD e é apoiado por figuras de influência ideológica na instituição, que por questões igualmente ideológicas publicizam o MAV entre os adventistas na América Latina. Nos dias 21 a 24 de outubro de 2021, por exemplo, Flavio participou como um dos principais palestrantes do “Congresso Internacional de Saúde”, com o apoio do UNASP e da Associação de Médicos Adventistas (AMA). Além de outros assuntos, a chamada para o congresso deu destaque aos temas preferidos da extrema direita brasileira, a saber: maconha, aborto e sexualidade.
Outro convidado para o evento, para palestrar sobre o aborto, foi o pastor e jornalista Michelson Borges, editor na Casa Publicadora Brasileira (CPB). Como é do conhecimento dos leitores da Zelota, há anos Michelson atua como voz política que reforça a agenda reacionária na IASD. A própria Suzane Portela, idealizadora do MAV, já foi mencionada pela Zelota como apoiadora de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022; ela chegou a declarar “luto pelo Brasil” com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Além disso, o site do ministério costuma compartilhar material de outros pastores ideólogos reacionários adventistas, como os de Eleazar Domini2 e Rodrigo Silva. O MAV parece ser uma referência para tais influenciadores da extrema direita bolsonarista, a exemplo de Leandro Quadros, que o menciona como “maravilhoso ministério” para homossexuais cristãos que desejam lutar contra a homossexualidade. Outro nome implicado é Daniel Lüdtke, que apareceu em vídeo junto de Flavio e Suzane, na Faculdade Adventista da Bahia (FADBA), elogiando o trabalho do MAV em evento local. No vídeo, também encontra-se o pastor Sávio Nunes.
Da “cura gay” à “cura de feridas emocionais”
Todos os nomes acompanhados de * (asteriscos) são fictícios com o objetivo de manter o sigilo das fontes que compartilharam suas experiências no MAV com a Zelota.
A Resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia estabelece que “a homossexualidade “não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” (texto introdutório), e, portanto, “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades” (Art.3º, parágrafo único). Entre as possíveis sanções a psicólogos que realizam estas práticas está a cassação de seu registro profissional, de modo que o Brasil é considerado pioneiro na proibição de práticas desse tipo. No entanto, o relatório de pesquisa Entre ‘curas’ e ‘terapias’: esforços de ‘correção’ da orientação sexual e identidade de gênero de pessoas LGBTI+ no Brasil, publicado em 2022 pelas organizações All Out e Instituto Matizes, reconhece que o uso de termos como “cura” e “terapia” é limitado, e tem sido “disputado para justificar a perpetuação de violências que causam traumas prolongados vividos pelas pessoas sobreviventes.”3
O MAV trata os homoafetivos como pessoas que “sofrem atração pelo mesmo sexo” (AMS),4 e os define como portadores de “tendências” homoafetivas. Estas seriam reação a um “vazio de gênero”5, isto é, um distanciamento de pessoas do mesmo sexo ocasionado por abusos sexuais, bullying, lares disfuncionais etc. Ao preencher o vazio, as feridas emocionais seriam curadas, alterando-se também sua tendência anterior.6 A “cura” das feridas emocionais – da lacuna de gênero – dos portadores de AMS seria realizada por “amizades verdadeiras” do mesmo sexo, que segundo Flavio, é “a forma correta e a planejada por Deus para que cresçamos espiritual e emocionalmente”. O próprio coordenador alega ter desenvolvido atração heterossexual ao reconhecer e aplicar seus próprios métodos.7 Dessa maneira, a tese em torno dos métodos de tratamento do ministério também se confunde com a vida de Flavio Krzyzanowski Júnior.8
Em nota pública, o MAV afirma que “não defende ‘cura gay’ ou qualquer tipo de ‘Terapia de Reversão’”. Eles se definem como um ministério que auxilia pessoas que decidem “seguir os ensinamentos de nosso Senhor Jesus Cristo” e deixar a prática da homossexualidade. Dessa forma, em seus termos, “não se trata da cura da homossexualidade, e sim de apoio aos seus princípios cristãos”. Em aula inaugural, Flavio afirmou que o MAV não trabalha com os termos “homossexualismo” e “cura”; como já explicado, o que seria categorizado como doença, distúrbio ou perversão é substituído por “feridas emocionais”, passíveis de tratamento psicológico.
A Zelota teve acesso a uma série de prints de um grupo no Whatsapp chamado “MAV 4 – Homens”. A coleção de prints é extensa, e oferece exemplos não apenas da relação dos participantes mas da intermediação do MAV em seus respectivos processos de “cura”. A revista também conseguiu contato com alguns dos ex-membros do ministério que, ao contrário dos exemplos citados pela propaganda do MAV, relataram situações de manipulação sentimental, quebra de sigilo de informações e problemas emocionais decorrentes do tratamento oferecido.
Yuri*, por exemplo, conheceu o MAV em um “Adolescer” – evento direcionado aos adolescentes da Associação Paulistana (AP). Ele explicou que, embora o ministério não prometesse a cura da homossexualidade, trabalhava com a propaganda e testemunho de ex-gays ou ex-lésbicas “recuperados” de sua situação anterior por eficiência dos métodos aplicados; ou seja, por meio da cura das “feridas”, ou dos “traumas emocionais”, que impediriam a libertação dos LGBTI+. Yuri relatou também que, no início, o participante costuma apresentar uma “falsa melhora”, mas com o passar do tempo a luta contra si mesmo se torna intensa a ponto de desencadear sérios problemas emocionais (depressão, ansiedade, pânico etc.), como foi a sua experiência e a de outros colegas do grupo.
De fato: Danilo*, 24 anos, contou à Zelota que foi recomendado ao MAV na época em que trabalhava como colportor, provavelmente por conta de seus trejeitos. Quando começou a participar, ele experimentou frequentes crises de ansiedade, após as quais dormia por conta da intensidade do choro, pedindo a Deus que retirasse tais sentimentos de si. Danilo explicou que se sentia imundo, e que tentou o suicídio diversas vezes, mas o MAV insistia na ideia de que ele necessitava “buscar mais” e “se fortalecer em espírito”.
Ainda que negue apregoar a cura da homossexualidade, o MAV elabora um método que mira um alvo ambíguo e traumático do passado, mas no fim tem como objetivo controlar ou reverter a prática homoafetiva. Hiago Côrtes, 23 anos, relatou à Zelota que, ao entrar em contato com o MAV, de imediato perguntou pela possibilidade de cura. O ministério, como de costume, disse que era necessário compreender o que Hiago entendia como “cura”, mas que poderiam ajudá-lo a viver com “santidade conforme as orientações da Bíblia”. Eles também afirmaram que, a partir de observações do MAV e estudos científicos, 30% de suas experiências atingiram a heterossexualidade, proporção já citada publicamente por Flávio em entrevistas. O atendente deu a entender que “santidade” representa o oposto da “prática da homossexualidade”, ou seja, a prática heterossexual, que estaria em conformidade com os princípios cristãos.
Nas mensagens do grupo ao qual a Zelota teve acesso, a pessoa mediadora explica que a maioria dos homens homossexuais têm o desejo “desesperado” de ser heterossexuais. E que, por isso, a homossexualidade masculina é uma busca da masculinidade, em geral: “sentindo que não a possuímos em nós mesmos [a masculinidade], ou que nunca conseguiríamos obtê-la, nós a procuramos em outros homens”, afirma a mediação. E, então, lança uma promessa: “Essa busca pode ser redirecionada.” Nos mesmos prints, fica evidente que, para a mediação do grupo, a luta, na verdade, não está meramente restrita às práticas homoafetivas: os participantes necessitam lidar com as “raízes e/ou causas da homosexualidade” a fim de apresentar alguma melhora nos seus processos – um conflito que deve ser travado em três áreas: comportamento, identidade e atrações. Em outras palavras “atingir as áreas que formam as causas da homossexualidade; os fatores que geram tais tendências em sua vida, e que o mantém aprisionado nela ainda hoje.”
Nos termos da mediação do grupo, as três áreas que devem ser trabalhadas e suas definições são: “[1] Comportamento: Não importa o quão compulsivo você esteja no momento, através do poder de Deus você pode reduzir e eventualmente cessar tais comportamentos; [2] Identidade: Você virá a sentir-se totalmente à vontade e em paz com a sua identidade masculina ou feminina; [3] Atrações: Você experimentará mudanças substanciais; com a possibilidade de experimentar uma vida heterossexual satisfatória com o seu esposo/esposa.”
Assim como outras comunidades terapêuticas de cura gay, é a partir de tal abordagem e linguajar ambíguos que o MAV propõe uma série de “exercícios espirituais” para “fortalecer” os participantes e “aproximá-los de Deus”. O ministério exige um programa de leituras, participação de programações, palestras, duplas de oração etc. Tais atividades são compreendidas como essenciais para implementar um processo de cura das emoções que, posteriormente, poderia reverter ou curar a homossexualidade. Yuri*, por exemplo, chegou a afirmar que os componentes são, literalmente, “obrigados a frequentar as reuniões”, com pouca ou nenhuma tolerância a faltas, ainda que seguidas de justificativas.
No entanto, é possível que a escolha de sair do MAV exija uma saúde emocional maior do que permanecer nele. Os relatos feitos à Zelota explicam que, com o afastamento do ministério, os ex-participantes são chantageados emocionalmente, com alegações que prometem a infelicidade na prática homoafetiva e o consequente afastamento de Deus. Essa, por exemplo, é a experiência de Danilo*, que até hoje recebe visitas de irmãos da igreja: eles o tratam como alguém que, embora esteja “longe de Cristo”, ainda “pertence a ele”, e que em um momento finalmente retornará à igreja, arrependido. “Mas eles não entendem o fato de que minha vida foi destruída por todos esses anos”, esclarece ao comentar sua convivência entre os adventistas e o MAV.
O mesmo ocorreu a Yuri*, que alegou ter experimentado situação ainda mais invasiva: ele explicou que, no MAV, costumava ser acompanhado por profissionais da psicologia que acreditavam nos métodos propagados por Flavio. Ao decidir sair do movimento e voltar à prática homoafetiva, Yuri revela que o grupo teria quebrado o sigilo das informações coletadas em suas sessões; isso teria ocorrido para que a liderança pudesse compreender o motivo de sua escolha, mesmo após a aplicação do tratamento. Além de ser induzido a pensar que a prática da homossexualidade o conduziria à infelicidade, e de que estaria desagradando a Deus, houve ainda chantagem emocional: Yuri* teria escutado que suas atitudes deixariam os profissionais e conselheiros do MAV decepcionados com ele.
Ainda que insista em um discurso sobre acolhimento, o MAV é intransigente com membros que utilizam o grupo do Whatsapp como ocasião para encontros românticos ou atividades sexuais. Segundo o “Termo de Compromisso”, tais pessoas são retiradas do convívio e proibidas de retornar ao grupo em qualquer outra circunstância posterior. Mesmo o contato entre as pessoas no particular é desaconselhado, porque pode induzi-las ao pecado da prática homossexual. Yuri*, por exemplo, confirmou à Zelota a aplicação da intransigência: ele explicou que conversas paralelas eram apenas permitidas no grupo, e proibidas outras interações que pudessem alimentar o “impulso” homoafetivo.
De acordo com estudo “Saúde mental e população LGBT”, baseado em questionário do coletivo Mais igualdade Peru, realizado em 2019, 40% dos respondentes LGBTI+ afirmaram já ter tentado mudar sua orientação sexual ou identidade de gênero por meio de ministérios religiosos do gênero. Destes, 5% foram internados, 62% eram menores de idade, sendo 90% do total com menos de 25 anos. Estes esforços, muitas vezes, são praticados ao longo de muitos anos, e vão de encontro aos resultados encontrados pela revista Zelota em 2020, onde 83,7% dos participantes adventistas afirmaram terem tentado “vencer” a homossexualidade por meio de uma variedade de práticas estipuladas pela comunidade ou sugeridas pela instituição. De fato, para o MAV, tais atividades são úteis para o processo de “renovação da mente”, como, por exemplo, a memorização de textos bíblicos que proíbem a prática homoafetiva (Gn 19.1-29; Lv 18.22; 20.13; Rm 1.18-32; 1Co 6.9-11; 1Tm 1.8-10), como pode ser evidenciado no print das interações entre os participantes do MAV:
Carlos*, estudante adventista no UNASP, disse já ter participado de ministérios religiosos do gênero, ainda que fora da instituição. Ele explicou à Zelota que eles têm um aspecto em comum: tentam encontrar problemas no passado, em relações traumáticas, para justificar a homossexualidade e sugerir a prática religiosa como alternativa à “cura”. Embora o MAV não considere a homossexualidade como doença, ele classifica sua prática como “pecado”, e estabelece um conjunto de práticas espirituais para vencê-lo – uma espécie de teologia perfeccionista aplicada à sexualidade.
Em uma das mensagens do grupo, o MAV afirma que a homossexualidade é uma prática voltada para si, isto é, a animação de sentimentos egocentricos, “para satisfazer nossas necessidades a qualquer custo”. É nesse contexto que o ministério abrange sua perspectiva de recuperação: não se trataria apenas de lidar com a homossexualidade, mas com pecados “mais profundos e graves”. No mesmo grupo, a pessoa mediadora convidava as pessoas a estudos específicos sobre a questão do pecado, e chegou a afirmar que possuem “a solução para o pecado”. O homoessexual, nesse sentido, necessita arrepender-se dos seus “pecados mais profundos”, por tratar-se do “processo de santificação para todos os cristãos”. Todo esse processo é classificado e denominado pelo MAV como processo de “cura”, em seus respectivos termos.
Num sentido semelhante, o relatório Entre ‘curas’ e ‘terapias’, já citado acima, encontrou “um conjunto de esforços de ‘correção’ por meio dos quais as sobreviventes eram induzidas a acreditarem que sua sexualidade ou identidade de gênero era um ‘erro’ (seja uma doença ou um pecado) e precisavam ser, portanto, ‘curadas’ ou ‘revertidas’.”9 Dentre estes esforços, é possível observar no MAV, pelo menos a princípio:
- Esforços de “correção” por meio de ameaças e profecias;
- Esforços de “correção” por meio de confissões e aconselhamentos;
- Esforços de “correção” por meio da participação em grupos religiosos para jovens;
- Esforços de “correção” por meio de tentativas reiteradas de convencimento em cultos, missas, sessões religiosas;
- Esforços de “correção” por meio de rituais;
- Esforços de “correção” por meio de tarefas religiosas e espirituais;
- Esforços de “correção” por meio de psicólogo que abertamente oferecia procedimento de “cura” da sexualidade e/ou identidade de gênero;
- Esforços de “correção” por meio de psicólogo que, mesmo sem admitir desenvolver procedimentos de “cura”, estimulou pessoa LGBTI+ a desistir de se assumir.10
A aplicação desses esforços, no entanto, não é pontual e único no processo de “correção”: os relatos coletados pelo relatório apresentam um padrão circular, em que os praticantes tendem (1) a desistir do processo e se desatrelar da influência dos ministérios; (2) ou permanecer influenciados pelos atores da terapia, repetindo os mesmos esforços a fim de granjear resultados por período indeterminado. A lógica pode ser ilustrada pelo seguinte gráfico:
Em relação às táticas de persuasão destes movimentos de “correção” da sexualidade, o relatório afirma que “quem opera a manipulação e o convencimento constantemente argumenta com a pessoa sobrevivente que ela está em sofrimento por parecer, se comportar, ter pensamentos, possuir ‘tendências homossexuais’ ou efetivamente por ser LGBTI+.” Desta forma, inverte-se o que é certo e o que é errado: “o sofrimento a que a pessoa LGBTI+ passa nesses contextos é creditado à sua orientação sexual e identidade de gênero, não ao fato de pessoas e instituições se orientarem hegemonicamente pela negação da autodeterminação de exercer e expressar a orientação sexual e identidade de gênero em suas variadas manifestações.”11 Estas táticas também podem ser observadas nos relatos de ex-integrantes do MAV, e são potencializadas por sua associação à fé e à espiritualidade dos sobreviventes.
Da mesma forma, assim como relatado à Zelota, o relatório encontra que “diversas pessoas sobreviventes passaram a experimentar traumas com efeitos profundos e duradouros no desenvolvimento de suas vidas e que são decorrentes não do fato de serem LGBTI+, mas das violências a que foram submetidas nos esforços de ‘correção’.” Entre as sequelas relatadas, encontram-se: pensamentos suicidas; tentativa de suicídio; depressão; transtornos alimentares; isolamento social; estresse pós-traumático; sentimento de inutilidade; sensação de inadequação; dificuldade de confiar nas pessoas e instituições; automutilação; ansiedade; perda de autoestima; e disfunção sexual.12
A Zelota entrou em contato por WhatsApp com Flavio Krzyzanowski Júnior, questionando-o a respeito das ambiguidades terminológicas relacionadas à “cura gay”, acerca das propagandas de reversão sexual, sobre detalhes de alguns relatos de ex-membros e sobre a preferência ideológica de extrema direita de seus colaboradores, entre outras questões implicadas nesta matéria. Em resposta, Flavio alegou não ter tempo para dar conta dos questionamentos durante “estes dias”.
“Filho de peixe, peixinho é”
A iniciativa do MAV, ainda que pioneira no Brasil em termos de organização e alcance, não é novidade no contexto adventista estadunidense: o início da história da comunidade LGBTI+ na IASD é antiga, e está marcado por preconceitos, perseguições e escândalos sobre cura gay.13 Segundo o sociólogo adventista Ronald Lawson, a relação da igreja com a comunidade LGBTI+ tornou-se cada vez mais segregacionista. A presença de um homossexual na IASD era constrangedora, e o indivíduo expurgado imediatamente; esse fator não possuía uma motivação apenas religiosa, mas cultural. Um olhar mais compassivo aos homossexuais na IASD ganhou força, no entanto, na década de 1960 com o avanço dos direitos civis conquistados por negros e mulheres.
Oficialmente, a IASD ignorou o tópico até a década de 1970. Os líderes da denominação presumiam a não existência de adventistas homossexuais, um pressuposto naturalmente falso: tais membros viviam escondidos, ou, quando descobertos, eram rejeitados tanto por suas famílias quanto pela igreja, expostos a culpa e humilhação. Pastores e evangelistas interpretaram os movimentos de libertação gay nos EUA, em 1969, como um sinal do fim dos tempos. Por isso, entre 1970-1980, a IASD começou a propagar artigos que afirmavam a possibilidade de vencer a homossexualidade por meio da fé. O autor dos textos era Colin Cook, ex-pastor adventista, por ter sido considerado gay. Depois de seu casamento heterossexual, ele começou a se apresentar como prova de uma cura espiritual, disponível a todos; isto é, um “homossexual recuperado”. Com o tempo, Colin Cook passou a granjear a simpatia da liderança da IASD em diversos níveis administrativos.
Em 1980, Colin Cook dá início ao Quest Learning Center (em português: “Centro de Aprendizagem Quest”), organizado em torno de um grupo de apoio denominado “Homossexuais Anônimos” (HA). Pouco tempo depois, a Associação Geral e a União Columbia optaram por financiar a Quest, e a IASD tornou-se a primeira denominação a financiar um “ministério de reversão” para homossexuais. O Quest não apenas ganhou popularidade nos periódicos adventistas, mas conquistou espaço na TV, rádio, além da simpatia de uma comunidade cristã interdenominacional.
A fim de conhecer de perto os resultados publicizados por Colin Cook, Ronald Lawson entrevistou 14 participantes do Quest entre 1984-1985. Ele descobriu relatos que não eram divulgados pela imprensa adventista: os participantes alegaram ter experienciado um pesadelo, e mencionaram a ocorrência de uma estranha sessão de massagem realizada por Cook em seus aconselhados, que era realizada com ambos nus, seguida de avanços sexuais. Tratava-se de uma evidência de que, na verdade, Cook abusava sexualmente de quase todos os aconselhados. Ao contrário da expectativa do Quest, 11 dos 14 entrevistados por Lawson passaram a aceitar sua homossexualidade.
Após a denúncia, Cook foi removido e o ministério Quest encerrado. Mas isso durou pouco tempo: posteriormente, as revistas Ministry e Christianity Today estavam publicando material de Colin Cook, que aos poucos voltou a granjear confiança entre os adventistas e demais evangélicos, revitalizando seu ministério na criação do “Quest II”, ou “Faith Quest”. Consequentemente, os jovens adventistas se voltaram a Cook uma vez mais à procura da “cura” da homossexualidade. De maneira semelhante à anterior, os abusos sexuais de Cook foram descobertos e, dessa vez, publicados no periódico jornalístico da região. Aos poucos Cook desapareceu juntamente com seu ministério, enquanto a IASD negava qualquer relação com tais atividades de aconselhamento, ainda que tenha sido processada por vítimas de abuso.
Em 1996, outro ministério, de motivação semelhante, foi iniciado pela esposa de pastor Carrol Grady, por conta da publicação de seu livro My Son, Beloved Stranger (“Meu filho, estranho amado”), que contava a história da angústia de uma mãe ao saber que seu filho era homossexual. Dessa vez, a iniciativa inaugurou um espaço de aconselhamento de pais que não tinham apoio para lidar com seus filhos LGBTI+. Nesse período, vários “ministérios de reversão” foram iniciados, dos quais o Coming Out Ministries (COM) foi o mais proeminente, formado por três homens ex-homossexuais. O COM também se apresenta em igrejas e espaços acadêmicos adventistas, e seus palestrantes contam histórias caracterizadas por uma promiscuidade descontrolada e envolvimento com drogas e álcool. Tais histórias são retratadas como típicas de todas as pessoas LGBTI+.
Assim como o MAV, eles rejeitam a “terapia reparadora”, mas defendem a possibilidade de se tornarem heterossexuais e se casar. E, a exemplo do primeiro, a história dos seus líderes era tida como exemplar da comunidade LGBTI+: os idealizadores do COM se descreviam, no passado, como pessoas promíscuas, enrustidas e envolvidas com álcool e drogas, e a partir dessa perspectiva aconselhavam seus participantes. O COM chegou a perder dois de seus palestrantes, um deles por alegar não ser capaz de manter o celibato, e outra por “motivos pessoais”.
A despeito das imprecisões, ambiguidades e denúncias iniciais, o MAV tem como virtude o fato de pretender o acolhimento da comunidade LGBTI+ e, de alguma forma, naturalizar a presença dela na realidade evangélica, especialmente entre os adventistas. No entanto, ele segue os padrões típicos das comunidades terapêuticas do gênero: ele se estrutura em torno de uma figura “especialista” que alcançou a heterossexualidade e, em seguida, propõe um ministério com base em sua perspectiva pessoal. Em seguida, ele ganha prestígio da IASD e publicidade da mesma, dominando o discurso denominacional e interdenominacional, emaranhado de ideólogos da extrema direita. A história do MAV ainda está sendo escrita, mas as primeiras denúncias de cunho anônimo e jurídico despontam aos poucos.
Notas:
1.↑ A Zelota conseguiu averiguar relatos da participação do MAV em alguns Estados Brasileiros, como Rondônia, Acre, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Além de Flavio, outros representantes do MAV também encontram espaço nas instituições adventistas, como Fábio Gonçalves, membro da diretoria do MAV, que palestrou na Mega Convenção para Líderes de Desbravadores e Aventureiros em Guarapari, no mês de março de 2023, para cerca de 850 pessoas.
2.↑ Eleazar Domini é pastor de comunidades adventistas brasileiras nos EUA, ele tornou-se referência na propagação de vídeos com testemunhos de “ex-homossexuais”, e costuma se aproximar do MAV para contribuir teologicamente com o ministério. Assim como outros influentes citados, Eleazar possui uma agenda política reacionária, e evidente discurso antimarxista.
3.↑ FRÓES, Anelise; BULGARELLI, Lucas; FONTGALAND, Arthur. Entre curas e terapias: práticas de conversão sexual e de gênero no Brasil, p. 6. São Paulo. All Out e Instituto Matizes. 2022.
4.↑ Flavio entende que as causas da AMS são múltiplas, envolvendo fatores de personalidade, como é o caso da hipersensibilidade, citada diversas vezes pelo coordenador do MAV.
5.↑ O termo, na verdade, foi cunhado por CONSIGLIO, William. Homosexual no more: Practical strategies for Christians overcoming homosexuality. Baltimore: Regeneration Books, 2000.
6.↑ Ao citar o cientista australiano John H. S. Tay, autor do livro Nascido Gay?, o coordenador do MAV afirma não existirem evidências de que fatores biológicos influenciam na tendência homoafetiva. E, caso exista algum fator biológico, ele seria insignificante diante das questões emocionais.
7.↑ No entanto, Flavio afirma que “a maioria das pessoas com AMS nunca sentirá atração pelo sexo oposto”, exigindo um auxílio especial da igreja para abandonar o seu pecado, que diz respeito à prática da homossexualidade. A “vida em santidade” não seria alcançada apenas por meio de orações e jejuns, mas deveria contar com “apoio mais amplo baseado na ciência”.
8.↑ Flavio Krzyzanowski Júnior é biólogo, mestre em Microbiologia e doutor em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Ele é autor do livro Como a igreja pode acolher pessoas homoafetivas: Entendendo suas necessidades mais profundas (da Editora EUPP, 2023), e já foi mencionado como especialista cristão na reversão da homossexualidade tanto em mídias não religiosas como em mídias religiosas.
9.↑ Ibid., p. 25.
10.↑ Ibid., pp. 18-23.
11.↑ Ibid., p. 53.
12.↑ Ibid., p. 55.
13.↑ A revista Zelota publicou uma série de quatro textos sobre a história dos LGBTI+ na IASD: “Kinship vs. Colin Cook” (parte 1); “Guerra aos homossexuais” (parte 2); “Não pergunte, não conte” (parte 3); e “AIDS no adventismo e os limites da igreja ‘acolhedora’” (parte 4).