A partir de uma breve pesquisa realizada pela revista Zelota, em 2020, foi possível constatar uma comunidade LGBTQIAP+ expressiva, complexa, plural e atuante no contexto adventista brasileiro
20 jun. 2022 | Redação Zelota
Logo da Igreja Adventista e bandeira do orgulho LGBTQIAP+ (Foto: banco de imagens)
A associação das palavras “gay” e “adventista” causa estranhamento e, muitas vezes, repulsa ou indignação entre adventistas de alas mais conservadoras. Em combate a esse tipo de relação, afirmam-se incompatibilidades bíblico-teológicas de natureza variada, das quais não é possível (ou mesmo proveitoso) apresentar um sumário sucinto neste momento. Ainda assim, a despeito de tal ativismo anti-LGBTQIAP+, ações de homofobia velada ou explícita, existe um fato que precisa ser reconhecido pela membresia adventista brasileira: a comunidade LGBTQIAP+ existe e está assentada em nossas fileiras há anos, seja em seus respectivos armários ou em atitude de resistência.
A revista Zelota já publicou uma longa e detalhada série sobre a relação histórica entre os adventistas e a comunidade LGBTQIAP+, de autoria do sociólogo adventista australiano Roland Lawson. Trata-se de uma coleção de documentos introdutórios essenciais para qualquer debate a respeito do assunto no contexto adventista. Em resumo, o sociólogo demonstra como a comunidade LGBTQIAP+ foi, em muitas ocasiões, marginalizada, perseguida e mesmo abusada sexualmente por professos “curandeiros” da sexualidade; tudo isto, infelizmente, sob o amparo oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) e de suas publicações.
Naturalmente, não é objetivo ou prioridade da instituição adventista, na América Latina, conhecer sua população LGBTQIAP+. Como no passado, é preferível, por questões de doutrina, mantê-la silenciada e, assim, inexistente no contexto da membresia. Exceções podem ser aplicadas à categoria da comunidade que se considera “curada” da homossexuliadade, ou que, por meio da fé e da perseverança, conseguiram dedicar-se ao celibato. Em outras palavras, infelizmente, a instituição prefere dar ouvidos ou palanque a LGBTQIAP+ que advogam “cura” ou “reversão” de sua sexualidade, e principalmente àqueles que se afirmam ex-gays ou ex-lésbicas.
Em vista dessa dificuldade, a revista Zelota preparou, em 2020 (antes de seu lançamento oficial), um formulário que pretendia conhecer o perfil da comunidade LGBTQIAP+ adventista brasileira. Trata-se de um formulário simples, com perguntas objetivas, que mensuraram, de forma ainda superficial, a relação dessa comunidade com a realidade institucional da IASD. A seguir, publicamos alguns dos resultados para fins informativos, embora não exista a pretensão de oferecer qualquer interpretação mais complexa aos dados apresentados.
Sobre a população LGBTQIAP+ adventista no Brasil
Quando divulgada, em 2020, a pesquisa recebeu o total de 499 respostas. Dentre os critérios essenciais para o preenchimento do formulário estava a necessidade de fazer parte da comunidade LGBTQIAP+ e, ao mesmo tempo, possuir algum vínculo (oficial ou emocional) com a IASD, seja no passado ou no presente. Todas as informações foram coletadas de maneira anônima, e poucos se disponibilizaram a oferecer dados pessoais ao projeto de revista, que ainda não existia.
Dos respondentes, o total de 46,3% afirmaram ser membros ativos na IASD, e 31% alegaram não possuir mais vínculo oficial por motivos variados, sejam disciplinares ou pessoais (ver gráfico 1). Um dado interessante da pesquisa são os 4,2% que fazem parte da comunidade LGBTQIAP+ e são simpatizantes da fé adventista, alguns deles, inclusive, interessados em conhecer a instituição. O restante, aproximadamente 20% dos pesquisados, encontra-se em categorias mais complexas, como recém-chegados, estudantes da Bíblia, membros que, embora oficiais, frequentam raramente a congregação, desigrejados, entre outros. Daqueles que responderam ser membros ativos, 53,7% estão ligados à instituição há mais de 20 anos.
Dos membros desligados, isto é, ex-adventistas, 80,8% afirmaram ter abandonado a instituição por conta de sua orientação sexual, entre outras questões pessoais, contra 19,3% que não se desligaram por conta da sexualidade. O afastamento da comunidade LGBTQIAP+ do adventismo, contudo, representa uma tendência recente: do grupo de desligados, 65,5% abandonaram a instituição há um ou cinco anos (levando em consideração que os dados foram coletados em 2020).
Gráfico 1: População por vínculo institucional (%)
Além disso, a faixa etária dos respondentes corresponde, em sua maioria, à população jovem-adulta (ver gráfico 2):
Gráfico 2: Respostas por faixa etária (%)
Em termos de localização geográfica, 50,5% dos respondentes afirmaram viver na região sudeste do Brasil; 12,2% vivem na região centro-oeste; 11,8% na região sul; 18,8% na região nordeste; e 3,6% no norte. Existe ainda a quantidade de 3% que, embora brasileiros, afirmaram viver fora do país. Além disso, no que diz respeito à raça e cor, 49,5% da população pesquisada se considera branca; 16% se considera negra; 30,5% se considera parda; 1,6% amarela; e 0,8% indígena — alguns dos pesquisados preferiram não responder à questão.
Não menos importante do que as informações acima são as questões relacionadas ao gênero, identidade e expressão de gênero, além de orientação sexual, entre os LGBTQIAP+ adventistas e ex-adventistas. De todos os respondentes, a maioria (59,3%) afirmou se considerar homem cis (que se identifica com o gênero imposto ao sexo biológico). Em segundo lugar, com 34,7% das respostas, encontram-se os respondentes que se afirmavam mulher cis (que se identifica com o gênero imposto ao sexo biológico). Além disso, o formulário identificou a quantia de 1% de pessoas que se afirmavam como homen trans (que se identifica com o gênero diferente ao imposto ao sexo biológico) e outra de 1,4% de mulheres trans (que se identifica com o gênero diferente ao imposto ao sexo biológico).
Quando respondiam a respeito de sua sexualidade, 57,1% se identificavam como homossexuais (gays e lésbicas). Do grupo, 33,5% falam de sua orientação sexual publicamente, ao passo que 23,6% não falam de sua orientação sexual publicamente. Dessa quantidade, 9% afirmou não ser praticante: dos homossexuais que declaram sua orientação sexual publicamente, apenas 2% não é praticante; e dos que não falam, 7% também afirmam não praticar. Por outro lado, 16,6% dos que não se declararam homossexuais afirmaram ser praticantes.
Outra população representada na pesquisa é a de bissexuais (pessoas atraídas por dois ou mais gêneros), que corresponderam a 42,8% dos respondentes. Dessa população, 35,8% afirmou não ser bissexual publicamente declarado: deles, 17,6% são praticantes e 18,2% afirmou não ser praticante. Ademais, 7% responderam ser bissexuais publicamente declarados: deles, 5,2% é praticante e 1,8% não praticante.
Gráfico 4: População por sexualidade (%)
Gênero, identidade e teologia dos adventistas LGBTQIAP+ brasileiros
Quando questionados sobre sua sexualidade em termos mais pessoais e interpretativos, os respondentes puderam versar sobre questões de gênero, identidade e religião. Dos dados coletados, por exemplo, 83,7% afirmou que a homossexualidade é uma condição que não pode ser alterada; 9,4% entendem que ela é uma condição, mas que pode ser reversível; e 6,9% disseram que ela é uma escolha consciente e pode ser revertida. Esse quadro representa uma variedade de opiniões na comunidade LGBTQIAP+ adventista em relação à reversão de sua sexualidade.
A despeito dessa divergência, 83,7% tentou “vencer” a homossexualidade por meio de uma variedade de práticas estipuladas pela comunidade ou sugeridas pela instituição (ver gráfico 5). No formulário publicado, foi oferecida uma lista que pretendia generalizar as principais atividades religiosas para esse fim, das quais sobressaíram a prática da oração (com 88,1%), a abstinência sexual (com 70,9%) e o estudo da Bíblia (com 69,7%) como as mais utilizadas para a “cura” ou “reversão” da sexulidade.
Gráfico 5: Práticas para “cura” ou “reversão” da sexualidade
Ainda assim, apenas 7,6% da população pesquisada espera, no futuro, “vencer” ou “reverter” sua sexualidade para ser inteiramente aceita por sua comunidade adventista; 5,6% desejam optar pelo celibato e, assim, ser membro de sua congregação; e 33,7% espera ser aceito como LGBTQIAP+ e adventista em suas comunidades, a despeito das tensões teológicas existentes entre a doutrina e seu estilo de vida. Dos respondentes, existem ainda aqueles (35%) que desejam unir-se a grupos específicos que congreguem LGBTQIAP+ adventistas e, ao mesmo tempo, lutem pelo direito de expressar sua sexualidade livremente no contexto adventista.
No que diz respeito à teologia adventista a respeito da sexualidade humana (isto é, de que a prática da homossexualidade e suas variantes são pecaminosas), 38,5% afirmou discordar totalmente do que é defendido pela denominação, contra o número de 15% que afirmou concordar plenamente com o que é ensinado pelo adventismo. O restante dos respondentes encontram-se em categorias mais tênue, de quem concorda ou discorda em partes, possuem dúvidas ou apenas ressalvas. Um resultado semelhante foi obtido quando questionados a respeito da Bíblia, em geral, quando trata do tema: 27,3% concordam plenamente que as Escrituras são contra a prática da homossexualidade, contra 15,3% que discorda plenamente dessa afirmação.
Como parece evidente, a comunidade LGBTQIAP+ adventista não é homogênea, e pode divergir em opiniões a respeito de sua sexualidade ou teologia. No que diz respeito às iniciativas da instituição, isto é, programas de apoio ou outros inclinados à “cura gay”, as opiniões também divergem, mas não de forma radical. Dos respondentes, 80,6% entendem que os LGBTQIAP+ precisam, principalmente, de aceitação e espaço para atuar em suas congregações. Por outro lado, a quantidade de 10,3% acredita que a instituição deve aplicar cuidados e esforços coletivos para que a homossexualidade seja “vencida” no contexto adventista. Foi constatado também, a esse respeito, que 55,1% deseja que as iniciativas oficiais de apoio aos LGBTQIAP+ acolham a comunidade queer sem a pretensão de superação ou mesmo aceitação de sua sexualidade. Outros 34,2% gostariam de alternativas espirituais para a aceitação.
Um dado digno de atenção, independentemente das opiniões sobre gênero ou de teologia entre membres da comunidade LGBTQIAP+ adventista, é aquele que fala a respeito de sua relação com as comunidades religiosas. Dos respondentes, 91,2% afirmou que existe algum tipo de sofrimento em ser LGBTQIAP+ e, ao mesmo tempo, fazer parte de uma instituição adventista. Esse dado deve ser considerado com seriedade, visto que a instituição adventista não prescreve, em nenhum momento, ações de rejeição ou marginalização dos LGBTQIAP+. Outro dado alarmante, e que também não diz respeito às práticas oficiais da IASD, é o fato de 97,1% respondentes afirmarem que foram “convidados” a se retirar de um culto por questões relacionadas à sexualidade.
Em todo caso, foi possível mensurar o tipo de receptividade e abertura que a comunidade LGBTQIAP+ possui no contexto adventista. 32,7% dos respondentes afirmaram que, em suas congregações, a relação é pautada por ações negativas, pejorativas e julgadoras. 23,8% responderam que não existe qualquer relação possível entre a IASD e a comunidade, seja positiva ou negativa; 22,9% entendem que existe um relacionamento pacífico com suas comunidades, embora existam restrições; 12,7% afirmam que a relação é negativa, mas não ao ponto de ser pejorativa; e apenas 7,9% alegaram que a relação da comunidade com a congregação é pacífica, acolhedora e sem julgamentos.
Outra consideração urgente diz respeito à violência verbal e física direcionada à comunidade LGBTQIAP+ no contexto adventista. Embora, felizmente, os números não sejam alarmantes, a simples existência de atitudes dessa natureza é preocupante em um contexto religioso. Segundo os dados coletados, 7,3% dos respondentes afirmaram sofrer ou ter sofrido com frequência algum tipo de violência verbal de um membro adventista; 22,3% assumem sofrer ou ter sofrido da mesma causa em algumas ocasiões; e 19,7% raramente. Ao mesmo tempo, 1,3% afirmaram ter sofrido ou ainda sofrer violência física por conta de sua sexualidade; 3,9% afirmou sofrer ou ter sofrido em alguma ocasião; e 2,1% raramente. Em ambos os casos, felizmente, a maioria das respostas é negativa, isto é, nega ter sofrido violências dessa natureza. Num sentido semelhante, outro dado merece atenção: dos respondentes, 2,3% afirmaram sofrer ou ter sofrido assédio sexual por parte de um membro da IASD; 12,1% informaram sofrer ou ter sofrido em alguma ocasião; e 15,2% raramente.
Quem são os LGBTQIAP+ adventistas?
A despeito dos dados explorados até aqui, a pergunta foi respondida de forma muito superficial neste breve texto. Há, naturalmente, muitas questões a serem feitas a respeito dos dados apresentados e coletados; e muitas possíveis conclusões possíveis a partir destes. Na verdade, ainda existe um espaço imenso inexplorado pela instituição adventista, que infelizmente não possui um interesse legítimo pelos seus LGBTQIAP+ e, de forma semelhante, não tem disposição para encarar a complexidade e as verdadeiras demandas dessa população.
Por falta de tempo e de expertise, alguns dados coletados na pesquisa não puderam ser apresentados, pois não seriam abordados de forma justa. É nosso desejo, com mais tempo, recurso e dedicação, conferir mais atenção a eles e apresentá-los dentro de suas respectivas complexidades. Fica aqui expressa, através dessa exposição introdutória do LGBTQIAP+ adventista brasileiro, não apenas a constatação de sua existência, mas a verificação de sua complexidade e pluralidade no contexto adventista.