O termo fundamentalismo pode ser definido como uma ortodoxia protestante militantemente antimodernista, e deve ser utilizado com cuidado para análise de fenômenos semelhantes
(Manaus – AM, 26/11/2019) Presidente da República Jair Bolsonaro recebe do Pastor Jonatas Câmara à Bíblia Sagrada (Foto: Carolina Antunes/PR)
Por Jorge Pixley | teólogo e biblista estadunidense, doutor em Estudos Bíblicos (Universidade de Chicago), e pastor batista. Foi professor no Seminário Evangélico de Porto Rico, no Instituto Superior de Estudos Teológicos (Argentina), no Seminário Batista do México e no Instituto Teológico de Estudos Superiores (México), além do Seminário Batista de Monágua (Nicarágua). É diretor do Projeto América Latina no Centro de Estudos Processuais, da Escola de Teologia de Claremont (Estados Unidos) e colaborador do Departamento Ecumênico de Investigações (Costa Rica). Texto traduzido e adaptado do original em espanhol para a revista Zelota por Daniel José Burato.
É usual tachar de fundamentalista os grupos mais díspares, de diferentes partes do mundo. Os candidatos preferidos da imprensa são certos grupos islâmicos para os quais se usa como insinuação de que estão envolvidos em terrorismo. Para quem segue o continente asiático, o partido que tomou o poder [na Índia] depois de décadas, o Partido do Congresso, é tachado de fundamentalista. E outros pelo estilo. Os sionistas mais agressivos são chamados também por este nome. Fundamentalista, na imprensa e em alguns meios intelectuais, deixou de ser uma descrição para se converter em epíteto. Quando isto acontece com nossas palavras é conveniente nos determos e recordarmos qual é a origem da palavra. Então podemos julgar quais das suas aplicações jornalísticas são úteis e quais não são.1
O fundamentalismo como confissão de fé
Nos EUA existiram e ainda existem grupos importantes de cristãos evangélicos que se autodenominam fundamentalistas. Eles são os que deram vida a este nome, que para eles é uma bandeira que tremulam com orgulho. É com eles que devemos começar a responder à pergunta que intitula este artigo.
No século 19, surgiu na Europa um movimento na teologia universitária que buscava articular uma fé que pudesse abarcar aqueles que faziam parte do movimento ilustrado. Imediatamente vem à mente o professor Friedrich Schleiermacher da Universidade de Berlim, que editou em 1799 o Discurso aos ilustrados depreciadores da religião e que nas décadas seguintes produziu a primeira teologia dogmática liberal, Die Glaubenslehre [A Doutrina]. O ponto de partida para a sua dogmática era a experiência religiosa, na qual a revelação podia falar e dar sentido; não, como antes se pensava, a revelação como ponto de partida, externa e objetiva. É, claramente, o giro subjetivista da modernidade que foi explorado de maneira sistemática por Immanuel Kant no século 18. Sobre esta base, foi-se construindo uma investigação crítica dos textos bíblicos que pôs em dúvida os milagres, os quais foram interpretados como manifestações de uma religiosidade e não de realidades objetivas. Quando esta teologia e este estudo crítico da Bíblia que havia nascido na Europa continental se estendeu para a Inglaterra, Irlanda e os EUA, produziu-se uma reação conservadora, e é como parte desta reação que se deve entender o fundamentalismo. Porém, não nos adiantemos.
Em alguns círculos evangélicos dos EUA houve um alarde frente ao avanço do modernismo, como foi chamado o liberalismo em círculos teológicos estadunidenses. Parecia que o chão da fé fora aberto, com o consentimento e a cumplicidade de professores da Bíblia e executivos das principais igrejas protestantes. Um movimento começou a se estruturar em torno das conferências de verão no Acampamento Bíblico Niágara, entre os anos 1880 e 1900. Via-se a crise como muito mais ampla do que somente uma questão teológica. O país estava sendo inundado por imigrantes italianos, irlandeses e alemães, muitos dos quais eram católicos e/ou socialistas. O projeto de uma nação evangélica ameaçava ruir. Era preciso, pensavam, buscar a orientação da Palavra de Deus, a Bíblia. E acreditavam que nas profecias da Bíblia encontrariam o plano de Deus para estes tempos. Foram apresentados vários esquemas para entender as falas obscuras de Ezequiel, Daniel, Zacarias, Apocalipse de João, etc. A suposição desses acampamentos sobre a profecia era de que a Bíblia é uma revelação sobre coisas que não se poderia conhecer de outra forma. Vinha de Deus, diretamente. A verdade é algo objetivo, e encontrada nos textos dos profetas (e outros textos bíblicos também). Percebe-se que no início estava sendo negada a nova filosofia moderna que reconhecia na subjetividade humana boa parte do conhecimento.
Durante as investigações desta época, realizadas em sua maioria por pastores que provinham de diversas igrejas protestantes, foi surgindo um consenso em torno de uma grandiosa visão da história dividida em diferentes “dispensações” de Deus, que procedia de diferentes formas com os humanos em diferentes períodos históricos. As mais relevantes são a dispensação da lei, a partir de Moisés, a dispensação da graça, a partir de Jesus, e o retorno iminente de Jesus para inaugurar o novo mundo onde não haveria mais o mal. Entre o tempo da graça e este novo mundo, haveria um julgamento mais terrível que qualquer coisa conhecida no passado, a chamada Grande Tribulação. A maioria acreditava que os crentes seriam “arrebatados” aos céus por Jesus antes da tribulação; que esta recairia sobre os pecadores empedernidos. Em algum momento o povo de Israel seria restaurado à sua terra e seus inimigos destruídos. Um dos pastores do movimento, Cyrus I. Scofield, pastor de uma igreja Congregacional em Dallas (Texas), editou em 1908 uma versão da Bíblia com notas que fez história no protestantismo. As notas da Bíblia Scofield às diversas passagens da Bíblia sintetizam a visão profética que fora assumida nos anos de Niágara. Foi traduzida em espanhol e outros idiomas.
Entre 1910 e 1915 foram editados doze volumes finos de capa dura de uma obra coletiva que se chamou The Fundamentals, “As coisas fundamentais”. O projeto editorial foi financiado por um petroleiro texano, Lyman Stewart, e distribuído gratuitamente a todos os pastores da nação estadunidense, uns duzentos e cinquenta mil exemplares de cada volume. Era um manifesto antimodernista com noventa artigos de sessenta e cinco escritores, produto de anos de estudo bíblico motivado pelo alarde da ameaça que viam pairar sobre a nação e suas igrejas. Foi esta obra que deu nome ao movimento, o “fundamentalismo”.2 Afirmavam cinco pontos não negociáveis para uma fé ortodoxa: a primeira, a inerrância da Bíblia, era a base de tudo. Era uma formulação nova, antimodernista, da confissão protestante da Bíblia como norma de fé e prática. Os outros fundamentos eram o nascimento virginal do Salvador, com o qual se pensava preservar a divindade de Cristo, o sacrifício vicário na cruz no lugar de nós pecadores (uma teoria da substituição), a ressurreição física de Jesus Cristo e o retorno iminente de Jesus para julgar os pecadores e levar os seus à glória sem fim. Estes pontos eram concebidos como verdades objetivas reveladas na Bíblia e não suscetíveis de discussão.
Com este breve relato, estamos prontos para dar uma definição de fundamentalismo: é uma ortodoxia protestante militantemente antimodernista.
O ponto culminante do movimento fundamentalista foi o julgamento de um professor secundário em Kentucky, John T. Scopes. A acusação feita foi de que ele ensinava como verdade a teoria moderna da evolução e descartava como superado o ensino bíblico da criação em sete dias. O advogado acusador foi o famosíssimo William Jennings Bryan, um político popular que havia perdido duas vezes de forma apertada a eleição à presidência da nação. O professor Scopes foi declarado culpado e condenado a pagar uma multa de cem dólares. Isto foi em 1925. Para os fundamentalistas isso foi motivo de grande celebração, e eles imediatamente se dedicaram a capitalizá-la, buscando ganhar o controle das igrejas. Isso, no entanto, resultou em uma vitória inútil que não lhes deu resultados. Perderam em todas as igrejas, embora, deva-se dizer, ganharam o apoio de muitíssimos fiéis em todas elas. Foi na década de 1980 que tomaram as rédeas na Convenção Batista do Sul, a única vitória real, e uma vitória muito importante para o tamanho desta igreja, a igreja protestante mais numerosa dos EUA.
Pelo que foi dito, nota-se que o fundamentalismo queria restaurar um passado ideal onde a autoridade não era questionada. Dentro das igrejas e da família, é a autoridade do varão, do pai. Na política, é o governo central capaz de impor normas de conduta moral que excluam graves pecados como o aborto, a homossexualidade, o feminismo e, em geral, a secularização das escolas públicas e as cerimônias nacionais. Nas relações internacionais o movimento fundamentalista apoia a imposição da ordem por meios militares e o apoio incondicional ao Estado de Israel. Isto revela que ele não é um movimento apolítico. É em sua essência direitista, pois se opõe à igualdade e apoia soluções autoritárias que defendam “a verdade” que concebe como absoluta, revelada por Deus. Deus quer que as mulheres se submetam a seus maridos e que os maus sejam destruídos fisicamente.
Uso polêmico do termo
Vimos que o fundamentalismo é o nome de um movimento evangélico nos EUA. O uso próprio do termo é para designar este movimento. Não obstante, com o avanço desenfreado da modernidade em todo o mundo, reações próprias de defesa têm surgido em várias culturas, e o termo se estendeu para designar estas reações beligerantes antimodernas. Pode-se considerar um uso metafórico da linguagem quando, em vez de se dizer “O Gush Emunim em Israel parece fundamentalismo”, diz-se “O Gush Emunim é um movimento fundamentalista israelense”. Não é incorreto usar a expressão dessa forma, porém convém saber o que se está fazendo. O Gush Emunim não chama a si mesmo de fundamentalista, e quando representantes da modernidade o chamam deste modo, fazem-no para desqualificá-lo. O movimento logicamente resistirá em ser chamado desta forma.
Contudo, como a modernidade se estende por toda parte e as reações surgem contra ela em todas as culturas, há de fato movimentos análogos ao fundamentalismo em outras regiões do mundo. Não é equivocado aplicar-lhes um termo tomado do protestantismo estadunidense que no princípio é uma metáfora, porém com o uso repetido o termo adquire um sentido mais amplo que já não é metafórico. Hoje, o termo fundamentalismo já está consagrado como o nome comum de fenômenos antimodernos combativos que aparecem em diversos lugares do planeta.
Mencionamos o Gush Emunim, um exemplo perfeito. Não somente defende a cultura judaica, mas sobretudo o seu direito à terra da Palestina. Dizia Zvi Yehuda Kook, seu líder indiscutível até sua morte em 1962: “A terra foi escolhida ainda antes do povo”, em uma referência à promessa a Abraão de dar-lhe uma terra, estando, todavia, em Ur dos Caldeus. E expressa a consigna do movimento: “A terra de Israel para o povo de Israel, segundo a Torá.” Temos aqui dois elementos básicos do fundamentalismo: sua lealdade às Escrituras e seu esforço por restaurar o passado ideal desejado por Deus, neste caso o tempo quando o Israel bíblico possuía a terra de Canaã. Seu particularismo militante que não reconhece direitos aos palestinos autóctones, que não os considera como tais, é uma manifestação antimodernista, outro elemento indispensável para chamar de fundamentalista um movimento. A modernidade afirma a igualdade dos humanos, com seus direitos humanos; os fundamentalismos não reconhecem este universalismo.
Na Índia, o partido Rastriya Swayamsevak Sangh (RSS) é a expressão do fundamentalismo hindu, no mesmo sentido estendido de aplicação do termo. Pretende fazer do subcontinente o domínio de uma sociedade hindu, onde as Escrituras hindus tenham valor de lei (dharma) e onde, certamente, a hierarquização do sistema de castas seja plenamente reconhecida. Temos aqui, além do antimodernismo, a base escriturística, o movimento político restauracionista e o autoritarismo típico do fundamentalismo em seu sentido restrito.
O nacionalismo Sikh, no estado de Punjab, é outro exemplo de fundamentalismo. E se observarmos o Islã, uma tradição religiosa que se estende do Oceano Atlântico pelo norte africano (o Magreb), Egito e o Oriente Médio, Ásia meridional (Irã, Paquistão e Bangladesh) e o Pacífico (Indonésia, Filipinas), cada uma dessas regiões têm movimentos restauracionistas que pretendem, contra a humilhação da dominação moderna, restaurar suas nações para que sejam sociedades governadas pela lei islâmica, a shari’a. Em geral exaltam a autoridade absoluta do sheik ou Imam e impõem um severo patriarcalismo que “controle” as mulheres – o autoritarismo característico dos movimentos fundamentalistas.
Conclusão
Quero concluir este ensaio sobre o fundamentalismo com algumas observações:
1. Convém distinguir entre o uso mais restrito do termo para fazer referência ao grupo estadunidense que se autodenomina fundamentalista e os grupos em outras regiões, que podem ser chamados de fundamentalistas por analogia. Aqui o termo deixa de ser um nome para se tornar uma categoria analítica. É importante não confundir os dois usos do termo.
2. Quando usamos o termo como mecanismo analítico é preciso não estender tanto o seu uso a ponto de extinguir sua utilidade. Proponho que ele seja usado unicamente para movimentos religiosos que sejam a) escriturísticos, b) virulentamente antimodernistas, c) autoritários e patriarcais, e d) tenham projetos políticos restauracionistas.
3. Teremos que pensar, parece-me, que enquanto a modernidade se impor pelo imperialismo e um mercado total, teremos permanentemente o surgimento de movimentos antimodernistas sediados nas culturas agredidas pela globalização. De maneira que os fundamentalismos estarão conosco por muito tempo.
4. É evidente que estes movimentos, por seu autoritarismo que busca impor suas propostas como verdade de Deus, serão de direita. Não obstante, seu anti-imperialismo e suas suspeitas do mercado total são elementos que têm em comum conosco, que buscamos soluções populares, de esquerda. Não podemos, então, descartar que por vezes teremos coincidências que devemos aprender a aproveitar. O perigo pode ser que, agora que os movimentos de esquerda estão apenas aprendendo a necessidade da democracia interna, o autoritarismo dos fundamentalismos tente nos fazer voltar atrás. O feminismo, a defesa da natureza, o reconhecimento da pluralidade de culturas com direitos próprios, são coisas que não podemos perder e que exigem uma democracia pluralista.
Notas:
1.↑ Uma discussão ampla deste tópico encontra-se em COHEN, J. N. The Fundamentalist Phenomenon. Grand Rapids, Eerdmans, 1990. Ainda mais completa e metodologicamente séria é a série The Fundamentalism Project, da Universidade de Chicago, presidida por Martin Marty.
2.↑ Os melhores estudos sobre o fundamentalismo são: SANDEEN, Robert Ernest. The Roots of fundamentalism: British and American Milleniarism, 1800-1930. Chicago: University of Chicago Press, 1970; e MARSDEN, George M. Fundamentalism and American Culture: The Shaping of Twentieth-Century Evangelicalism. New York: Oxford University Press, 1980. Dependo destes livros para a informação histórica deste ensaio.