Editorial da segunda edição da revista Zelota sobre o tema 'Adventismo e Sexualidade'


Após lutar 15 anos contra a homossexualidade – e ser derrotado –, Ronald Lawson, em meados de 1977, realizou uma façanha impensável aos adventistas de sua época: ele postou um anúncio na seção classificada do The Advocate (revista nacional de notícias gay) à procura de adventistas homossexuais. Àquela época, ele “desejava encontrar um namorado adventista”, mas suas pretensões românticas tomaram um rumo inesperado. Em retorno, ele recebeu entre 40 a 50 respostas! E a empreitada por um namoro resultou na criação do que, hoje, é a Seventh-Day Adventist Kinship International, uma comunidade que defende o direito dos LGBTQIAP+ em conexão com a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD).

Ao longo dos anos, a instituição tem se posicionado a respeito dos temas sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero. Em primeira instância, ela advoga uma “Conduta Sexual”, fortemente baseada em termos biológicos como representação do ideal bíblico na Criação. Visto que a sexualidade humana não se restringe à conduta cis-heteronormativa, ela também se posiciona a respeito da homossexualidade, e chega a algumas limitações de opinião no que diz respeito aos Transgêneros. Toda a argumentação tem como base a citação de uma quantidade razoável de textos bíblicos, do Antigo ao Novo Testamento; textos lidos de forma literal, claros o suficiente para advogar uma doutrina e uma ética abrangente às manifestações sexuais humanas.

Por isso, a iniciativa de Lawson, no final da década de 1970, é um exemplo sintomático de como a comunidade LGBTQIAP+ pode responder ao rígido tratamento que a IASD confere aos homossexuais. Até então, não parece existir outra alternativa a não ser a resistência. Há, de fato, alguns adventistas da comunidade LGBTQIAP+ que não veem necessidade de compartilhar a vida com alguém do mesmo sexo, e o fazem em respeito à leitura bíblica da IASD. Outros, autodeclarados ‘ex-gays’, e adventistas, afirmam a possibilidade do milagre em suas vidas, e advogam a convicção da “cura”. Nesse contexto, resta perguntar até que ponto um grupo deve ser utilizado como modelo à vivência de outro, já que existe uma multidão de homossexuais adventistas que não se encontram nas alternativas apresentadas.

Ao final de seu livro-reportagem Entre a Cruz e o Arco-Íris, Marília de Camargo César chega à seguinte conclusão: “constatei que a resposta que milhares de homossexuais deram àquela cruz do Calvário foi um alto e sonoro SIM. Esse ato de entrega e devoção teve consequências. Muitos abriram mão da prática homossexual e se tornaram celibatários. Outros se casaram, tiveram filhos e lutam, como todos os casais, para se adaptar a um convívio que em todos os casos exige uma atitude perdoadora e de renúncia. Outros assumiram a orientação sexual e formaram casais homoafetivos, convictos de que Deus julgará a pureza de suas intenções e sua sinceridade de culto.”

No entanto, para a IASD, a última alternativa não é bem-vinda. Para que essa população seja “encaixada”, é comum à liderança da instituição repetir os textos tradicionais ao lado de uma premissa supostamente científica que interpreta tais dissidências sexuais como “um desalinhamento nos níveis físico e/ou mental-emocional”. Com a Bíblia de um lado e a ciência de outro, está teoricamente resolvida a charada: se a Palavra de Deus abomina a prática, e a ciência a interpreta como uma anomalia reversível, a vontade divina pode ser cabalmente cumprida, e o desalinhamento sexual resolvido. Não haveria segredo, claro, não fosse desconsiderada a imensa evidência científica do contrário, e as possibilidades de interpretação que o texto bíblico oferece em abordagens mais aprofundadas. É inevitável concluir que o assunto da sexualidade na IASD, para ser resolvido – ou esquecido – precisa ser simplificado.

Quando o teólogo adventista se depara com um texto complexo, que desafia sua convicção dogmática, realiza esforços hercúleos para encontrar uma solução exegeticamente viável: discorre sobre contextos históricos; invoca etimologias semíticas desconhecidas; elabora complexas estruturas literárias; e, se necessário, apela à autoridade profética de Ellen G. White para desculpar-se do insucesso de sua empreitada. Todo esforço interpretativo é válido para defender a doutrina, e todos os estudiosos são convocados ao coro – sejam ateus, protestantes, católicos ou comunistas – caso possuam algum argumento que fortaleça suas convicções dogmáticas.

O mesmo não ocorre com textos relacionados à prática homossexual. Para a interpretação deles, a afirmação “a Bíblia é clara” basta. Não importa se o texto fere a dignidade da população LGBTQIAP+; se induz nela o sentimento de rejeição divina; se conduz o homossexual a intermináveis autoflagelações; se cria um ambiente igrejeiro de desconfiança e preconceito; se empurra a população às margens da membresia e da sociedade; se priva os homossexuais “não recuperados” de qualquer relacionamento amoroso; se alimenta desavenças familiares; se os proíbe das atividades oficiais da comunidade; ou se nega a eles a possibilidade de se chamarem adventistas.

A “letra que mata”, como expressa o apóstolo Paulo (2Co 3:6; ver Rm 2:26-29; 7:6), é experimentada em sua inteireza aqui; ao estabelecer que um traço intrínseco e involuntário como o da orientação sexual é suficiente para afastar um ser humano definitivamente de Deus, a igreja nega aos LGBTQIAP+ o direito de existência, escolhendo abominar “pecadores” com identidades específicas. A decadência dessa situação não é suficiente para que os teólogos adventistas considerem, minimamente, a possibilidade de aprofundar sua leitura. Na verdade, qualquer tentativa exegética com essas pretensões – e que apresente algum sinal de incompatibilidade com sua doutrina –, é imediatamente desconsiderada, e categorizada como “forçação de barra”; uma afronta ao “assim diz o Senhor”; uma leitura “progressista” ou “liberal”; uma tentativa de adaptar a Bíblia à cultura mundana; uma heresia.

Infelizmente, essa atitude é característica de um adventismo que se afirma esclarecido; ou seja, que dispensa o aprendizado, que alcançou o nível máximo da revelação divina. Ele é composto por mestres que, embora piedosos, não admitem a possibilidade de sentar à mesa do diálogo sem obter a palavra final. Para eles o diálogo é, na verdade, um engodo: uma oportunidade de fingir receptividade à diferença, com o objetivo de incutir uma opinião unilateral e inflexível. Apelando ao exemplo de Cristo, esse adventismo parte do pressuposto de que sempre entrará e sairá de um diálogo com razão. Não importa a complexidade do problema, o sofrimento do próximo, a plausibilidade do argumento; a solução é simples: lê-se um punhado de textos e está tudo resolvido “em nome de Deus”, conforme o “assim diz o Pastor”.

A revista Zelota organiza, neste segundo semestre de 2021, um dossiê de publicações que gira em torno do tema da sexualidade. Trata-se de uma tentativa de oferecer à membresia três perspectivas fundamentais à vida sexual prática: (1) o entendimento sobre a complexidade e as diversificadas nuances da sexualidade humana, em suas manifestações plurais; (2) o desenvolvimento histórico dos posicionamentos oficiais da IASD sobre o tema; e (3) reflexões bíblico-teológicas capazes de fazer jus à obscuridade do assunto, em respeito aos irmãos que são vítimas de leituras simplistas do texto bíblico.

É bom esclarecer neste editorial – para a alegria de poucos e tristeza de muitos – que a presente edição da revista Zelota não pretende ensinar outro credo, outra doutrina, ou uma opção ao Nisto Cremos sobre o tema da sexualidade. Como previsto em nossa linha editorial, a revista afirma todas as 28 crenças fundamentais adventistas. Mas essa afirmação não é unilateral em nosso estudo da Bíblia: ela é nutrida por reflexão, aprofundamento, crítica, questionamento e revisitação histórica. Louvamos a Deus por fazer parte de uma igreja que, em seus postulados oficiais, afirma não possuir um credo e, assim, estar sempre aberta ao conflito de ideias e à possibilidade de mudança.

O objetivo desta edição, como está claro, é demonstrar a complexidade do assunto a fim de constranger aqueles que pretendem resolvê-lo de maneira superficial, em flagrante desrespeito à profundidade das Escrituras e à pluralidade de manifestações da sexualidade humana. O conhecido escritor cristão Philip Yancey, em seu livro Decepcionado com Deus, nos oferece uma afirmação digna de sumário para este editorial: “Com mais frequência, os cristãos reagem à injustiça da vida não por negá-la totalmente, mas por minimizá-la.”

Os editores.