Criado em 2020, o quilombo cristão virtual promove educação antirracista e decolonialidade da fé cristã em diálogo com a espiritualidade e ancestralidade afro-brasileira evangélica


Por Nathália Montezuma e Sulamita Rosa da Silva | A primeira é teóloga, mestra em Estudos Críticos de Gênero e Teologia (Comunidad Teológica de México) e pós-graduanda em Exegese e Interpretação Bíblica (Faculdade Unida). A segunda é pedagoga, mestra em Educação pela Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).

“Tire a África da Bíblia e da memória cristã 
e você removerá muitas cenas cruciais da história da salvação.
– Thomas C. Oden

As experiências vivenciadas em espaços religiosos nos educam e corroboram na construção de nossas identidades. À vista disso, em 2020, o Améfrica bíblica foi criado com a ideia de formar uma “comunidade de aprendizado”.1  O Améfrica bíblica é um quilombo cristão virtual que “visa dialogar a respeito do evangelho de modo honesto, racializado e contextualizado. […] Nós estudamos e trazemos aquilo que compreendemos a respeito das temáticas raciais e as relações com os estudos bíblicos” para a promoção de uma educação antirracista através da espiritualidade negra cristã. 

Como um ato contra-hegemônico, o Améfrica bíblica reconhece “que pessoas de descendência africana foram persuadidas da beleza da mensagem cristã em si mesma, sem colonização”.2 Dessa forma, os integrantes são convidados a viver uma espiritualidade cristã em diálogo com a ancestralidade afro-brasileira, pois reconhecemos que “o pensamento cristão europeu não teria se desenvolvido se não fossem os argutos pensadores africanos”.3 

A promoção de saberes realizado pelo Améfrica bíblica se dá por meio da educação como ato político, permitindo que cada membro se sinta pertencente para promover processos de aprendizagens. Essa prática está baseada no pensamento de Paulo Freire4 de que os membros devem ser participantes ativos e não consumidores passivos das propostas que o quilombo oferece. Por essa razão, nos esforçamos para que os integrantes sejam escutados e se sintam responsáveis para ensinar e aprender novas epistemologias. 

 Caminhando em direção à decolonialidade da nossa fé cristã, no ano de 2023, tivemos dois momentos marcantes: O primeiro, a mudança do nome do nosso quilombo para Améfrica bíblica, por certo, quando o quilombo surgiu se chamava África bíblica decolonial. O nome “Améfrica” foi escolhido pelo motivo de “valorizar o conceito de amefricanidade trabalhado por Leila González, no qual a experiência afrodiaspórica nessa Améfrica Ladina nos perpassa, pois somos pessoas negras e irmãos em Cristo no sentido de comunidade e união”.5  

O segundo momento marcante foi a matrigestão6 da obra literária Vozes do Kilombo: devocionais afrocentrados. Nós, como organizadoras do Améfrica bíblica, identificamos “uma grande lacuna no que se refere à produção de materiais de caráter mais espiritual que relacionassem a experiência da negritude com a Bíblia, visando romper o pensamento de que todos somos iguais na lógica da branquitude cristã”.7 Esse devocional seria a possibilidade de gestar potências na vida das pessoas negras cristãs e não-cristãs. Como um quilombo existe e (re)existe por causa da coletividade, nós realizamos um convite interno para que os integrantes interessados pudessem participar do projeto. 

O Vozes do Kilombo contou com a participação de dez membros do Améfrica bíblica, o que enriqueceu muito o devocional, pois cada autora e autor escreveram os seus textos de acordo com suas escrevivências cristãs. A nossa obra é o resultado da rica pluralidade e da união de pessoas negras que encontram compatibilidade de ser sujeito negro e cristão. Como resultado, o Vozes do Kilombo foi o livro mais vendido na 40ª Bienal do livro do Rio de Janeiro pela Editora Tocando com Palavras, e ganhou o prêmio de melhor livro do ano de 2023. 

Neste ano de 2024, estamos conduzindo formações virtuais por meio do projeto de extensão em parceria com a Universidade Federal do Acre (Ufac), intitulado “Ciberquilombismo e pensamento judaico-cristão decolonial: formações para a comunidade e mapeamentos de obras cristãs antirracistas”. Este projeto visa apresentar o pensamento judaico-cristão sob uma ótica decolonial, por meio de formações virtuais e do mapeamento de materiais que abordem essa temática. Como resultado, os conteúdos das formações e os materiais mapeados serão organizados em formato de material didático, que será disponibilizado gratuitamente.

Os mapeamentos servirão como alicerce para introduzir às pessoas novas perspectivas decoloniais sobre a vivência e reflexão da espiritualidade negra cristã. Nas formações virtuais, estamos delineando estratégias para combater discriminações tanto na educação formal quanto na não formal, abordando temas como racismo, feminicídio, capacitismo e gordofobia, todos relacionados às experiências cristãs do cotidiano. Este projeto, concebido com grande dedicação, oferece certificação tanto para os participantes quanto para a equipe de voluntários, sendo realizado de forma coletiva com o intuito de promover uma transformação significativa na compreensão e prática da fé cristã.

Por fim, o Améfrica Bíblica é um quilombo cristão antirracista que reúne pessoas de diversas regiões do Brasil e de outros países. Este coletivo é composto por várias frentes, entre as quais se destacam um grupo de acolhimento para todos os membros e um grupo de orações semanais, ambos realizados via WhatsApp. Convidamos a todas as pessoas, na sua diversidade, a se aquilombar conosco! Acompanhem as novidades no Instagram do Améfrica Bíblica e juntem-se a nós nessa jornada.

Notas:

1. Bell Hooks, Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade (São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017).

2. Esau McCaulley, Uma leitura negra: Interpretação bíblica como exercício de esperança (São Paulo: Mundo Cristão, 2021), p. 99.

3. Thomas C. Oden, Quão Africano é o Cristianismo (São Paulo: Editora Quitanda, 2022), p. 9.

4. Paulo Freire, Pedagogia do oprimido (Rio de Janeiro:  Paz e Terra, 1987).

5. Sulamita Rosa da Silva & Nathália Montezuma, Vozes do Kilombo: devocionais afrocentrados (Rio de Janeiro: Tocando com Palavras, 2023), p. 7.

6. “não necessariamente está ligada à gestação físico-uterina, mas, sim, a todo um conjunto de valores e comportamentos de gestar potências. Quando partimos de uma realidade de gestar a potência, estamos definindo a luta mulherista como a possibilidade de reintegrar as vidas pretas destroçadas pelo racismo de cunho integral.” (Aza Njeri & Katiúscia Ribeiro,Mulherismo africana: práticas na diáspora brasileira”, p. 600. Currículo sem Fronteiras, v. 19, n. 2, p. 595-608, maio/ago. 2019.

7. Vozes do Kilombo, p. 7.