Para evitar acusações de heresia ou misoginia, o complementarismo afirma a diferença entre valor e função a partir de um fundamento filosófico platônico estranho às Escrituras


Parte 2 da série “Carne da minha carne: uma crítica à ideologia complementarista”. Clique aqui para ler a parte 1.

No último artigo, aproveitei a publicação de uma defesa da submissão feminina típica do complementarismo, por um ministério com dois milhões de seguidores em suas redes sociais, para demonstrar como essa forma de teologizar as relações sociais acaba divinizando uma ordem social específica.

A partir da comparação que fiz com a teologia de Agostinho sobre as relações entre homens e mulheres, eu já tinha apontado para fundamentos filosóficos e ideológicos por trás do complementarismo. Mas achei necessário ampliar essa discussão antes de chegar na interpretação dos textos bíblicos. Por isso, no presente post, quero apresentar de forma mais detalhada a ideologia do complementarismo, que não é uma ideologia sobre a relação entre homens e mulheres, mas sim uma ideologia ampla sobre toda a ordem social. Nos artigos futuros, então, abordarei os textos bíblicos de Gênesis 1–2 e 1Coríntios 11.

Ontologia e fenomologia: complementarismo e a subordinação trinitária

Para manter uma aparência ética com apelo ao público, o complementarismo depende de uma diferenciação entre valor e função. “Homens e mulheres têm o mesmo valor diante de Deus, mas papeis diferentes nas relações sociais”. Parece bonito, mas não é. Uma das afirmações mais importantes que fiz no primeiro post sobre complementarismo foi: “Valores iguais e papeis diferentes, numa ordem sociopolítica hierarquizada e instrumentalizada, é uma forma de promover valores diferentes e relações opressivas”. A experiência humana no mundo real, com suas diversas formas de desigualdade e opressão, não possibilita a distinção entre valor e função.

A fim de manter essa distinção, o complementarismo depende de um fundamento filosófico bem específico que exploramos bastante no último post por meio do exemplo de Agostinho. Esse fundamento filosófico é o platonismo, que distingue entre a experiência concreta e a “realidade” não material. É por meio desse fundamento que o complementarismo pode diferenciar ontologia e fenomenologia, e mantê-las separadas. O valor igual de homens e mulheres diz respeito à ontologia, e as funções diferentes de homens e mulheres dizem respeito à fenomenologia. A ontologia não determina, nem mesmo influencia, a fenomenologia, e vice-versa. Para exemplificar o que quero dizer, vamos ter que voltar ao assunto da doutrina da Trindade e a subordinação.

É comum nos meios complementaristas ouvir que essa doutrina sobre o ser humano e suas relações de gênero não depende de uma doutrina subordinacionista da Trindade. O post do ministério Jesuscopy estabelecendo uma relação analógica da subordinação das mulheres aos homens e a subordinação de Deus Filho ao Deus Pai não é uma deformação da doutrina complementarista; pelo contrário, é sua reprodução exata. Não é surpreendente, portanto, que Yago Martins, defensor ferrenho do complementarismo, tenha se colocado a favor do post, apesar de tentar desvencilhar tal perspectiva daquilo que veio a ser conhecido como a heresia do subordinacionismo. Yago não está sozinho nessa. Ele simplesmente está replicando aquilo que se encontra no cerne da formulação teológica complementarista.

Na obra definitiva do complementarismo, Recovering Biblical Manhood and Womanhood,1 os autores apresentam exatamente essa relação. Em seu capítulo na obra, Raymond C. Otlund Jr. afirma que existe um paradoxo entre a igualdade de valor e a desigualdade2 de funções de homens e mulheres que reflete a própria Trindade. Ele diz:

Cristãos, entre todas as pessoas, têm motivo para viver com o paradoxo. Afinal, Deus existe como uma Divindade (inglês: Godhead) em três Pessoas, iguais em glória, mas desiguais em função. Dentro da Santa Trindade, o Pai lidera, o Filho se submete a Ele, e o Espírito se submete a ambos (a Trindade Econômica). Mas também é verdade que as três Pessoas são completamente iguais em divindade, poder, e glória (a Trindade Ontológica). Se nosso Criador existe dessa maneira, deveríamos ficar surpresos e ofendidos se Suas criaturas análogas na terra existam dessa forma paradoxal?3

Percebam a diferenciação entre Trindade econômica e Trindade ontológica. Este é o mesmo fundamento filosófico platônico por trás de valores iguais diante de Deus (ontologia) e funções diferentes nas relações sociais (fenomenologia) baseadas em sexo, gênero, raça, classe social, ou qualquer outra categoria semelhante. Usando esse fundamento filosófico para teologizar sobre relações sociais de forma geral e entre os gêneros especificamente, Ortlund Jr. se torna um exemplo perfeito do que falei no último artigo sobre a divinização da ordem social, ou seja, a transformação da ordem social em ordem divina. Ele afirma, na cara dura: “Deus não valoriza igualdade intelectual ou estética entre as pessoas. Ele não valoriza igualdade em finanças, talentos, e oportunidade. É Deus quem ordena deliberadamente as desigualdades em muitos aspectos da vida”.4 É óbvio que a intenção do autor é falar sobre diversidade humana, um fato e um fundamento que exige negociações de empatia, aprendizado, generosidade, e amor nas relações humanas, mas ele propositadamente usa o termo desigualdade a fim de marcar sua ideologia complementarista. A fim de amenizar o problema, Ortlund Jr., é claro, apela para o fundamento filosófico platônico e afirma de forma bem espiritual: “A Bíblia ensina sobre a igualdade de personalidade e valor e dignidade para toda a raça humana — homens, mulheres, e crianças — e essa deve ser a única igualdade que importa para Deus”.5 Como falei sobre Agostinho, é fácil para Ortlund Jr., um homem, branco, rico, teólogo e pastor evangélico, falar isso, porque a ordem social a partir da qual ele fala o beneficia. Esse tipo de lógica está por trás do acobertamento de pastores abusadores e silenciamento de mulheres abusadas em ambientes complementaristas, porque o que importa é o valor delas diante de Deus, e não o que elas passam debaixo da autoridade masculina “divinamente ordenada”. No entanto, seria isso uma “boa nova”, evangelho, para elas? Quem está sendo esfolado e destruído pela ordem social em que se encontra, o abusador ou o abusado? O evangelho é a defesa de uma ordem que é benéfica para mim e os que são parecidos comigo em detrimento do bem daqueles que são diferentes de mim? Isso não é evangelho, mas ideologia imperial de uma ordem hierarquizada e instrumentalizada. O complementarismo de Ortlund Jr., que é o complementarismo em sua expressão real, não é evangelho, mas ideologia imperial contra a qual o evangelho surge. É uma ideologia fatalista e, obviamente, terrível para os que se encontram em posições de vulnerabilidade, precariedade e opressão na sociedade. Igualdade ontológica, na realidade concreta da experiência humana numa ordem social desigual opressiva, é uma desigualdade ontológica.

Por falar em evangelho, é claro que a perspectiva sobre a Trindade apresentada acima tem a ver com a pessoa de Jesus em sua existência terrena (fenomenológica) e sua existência divina (ontológica). Thomas R. Schreiner, em sua contribuição para a obra citada, lida com essa questão a partir da cadeia de relações que Paulo estabelece em 1Coríntios 11.3: “Se nossa interpretação estiver correta, então Paulo está dizendo que Cristo é a autoridade sobre todo homem, o homem é a autoridade sobre a mulher, e Deus é a autoridade sobre Cristo”.6 Reconhecendo o risco dessa relação desigual dentro da Trindade, para fundamentar as relações desiguais entre homens e mulheres, Schreiner é teologicamente mais cuidadoso que Ortlund Jr., e elabora um argumento contra a conhecida “heresia” subordinacionista:

Isso somente seria heresia caso fosse afirmado que existe uma diferença ontológica (uma diferença de natureza ou ser) entre o Pai e o Filho… A diferença entre os membros da Trindade é funcional, não essencial… O Filho tem uma função ou papel diferente do Pai, não uma essência ou um ser inferior… O que a igreja condenou foi um subordinacionismo que ensinava uma diferença de essência ou ser entre Pai, Filho, e Espírito.7

Schreiner continua, e elabora sobre o Concílio de Niceia e também cita Calvino, Charles Hodge e Louis Berkhof, representantes fundamentais da teologia reformada que servem de apelo para uma ortodoxia cristã histórica e confessional para sua audiência.8 Em todas essas tradições, desde o Concílio de Niceia até Louis Berkhof, a distinção e separação entre essência (ontologia) e experiência (fenomenologia) é o fundamento que lhe garante alguma validade. Para não ter dúvida de que esse também é o fundamento da perspectiva complementarista, que inclui uma forte ênfase na submissão feminina, Schreiner afirma sem sombra de dúvidas:

Mulheres são iguais aos homens em essência e em ser; não existe uma distinção ontológica, e ainda assim eles têm funções ou papeis diferentes na igreja e no domicílio. Tais diferenças não implicam, logicamente, em desigualdade ou inferioridade, assim como a submissão de Cristo ao Pai não implica em Sua inferioridade.9

Será que deveríamos entender o evento de Jesus a partir deste fundamento filosófico que implica em subordinação fenomenológica e igualdade ontológica? Teria o evangelho um fundamento que distingue a realidade divina da realidade criada para justificar relações desiguais de subordinação entre Jesus como Filho e Deus como Pai? Para confirmar sua posição de subordinacionismo fenomenológico, Schreiner apela para 1Coríntios 15.28: “Quando, porém, tudo lhe estiver sujeito, então o próprio Filho se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, a fim de que Deus seja tudo em todos” (NVI). Tão claro quanto o sol, não é mesmo? Na verdade, não.

Apesar da expressão “o próprio Filho se sujeitará”, a dinâmica entre Deus e o Jesus ressurreto aqui reflete muito melhor a ordem do Reino de Deus do que aquela defendida por Schreiner e o complementarismo, especialmente a partir da distinção entre ontologia e fenomenologia. No trecho completo, o que temos é Deus sujeitando todas as coisas ao Jesus ressurreto (1Co 15.27), que destruirá todos os poderes deste mundo — domínio, autoridade, poder (1Co 15.24) — , e que por fim sujeitará a si mesmo a Deus como parte da sujeição do reino de volta a Deus, para que Deus seja tudo em todos (1Co 15.24,28). Sim, Paulo é explícito em dizer que o próprio Deus não esteve em sujeição ao Jesus ressurreto quando sujeitou a ele todas as coisas (1Co 15.28). Contudo, a dinâmica de sujeição não é definida por hierarquia interpessoal. O propósito é estabelecer o Reino de Deus, uma ordem divina, que ocorre em oposição às ordens hierárquicas de domínio e poder, ou seja, as ordens sociais tipicamente humanas e especificamente imperiais. Para que isso ocorra, existe uma dinâmica de sujeição de autoridade e poder — lembrando que o contexto é de reino — entre Deus e o Jesus ressurreto, que é o fundamento para que, no fim, Deus seja tudo em todos. Nesse propósito final, então, todo tipo de sujeição e hierarquia interpessoal, não somente entre Deus e o Jesus ressurreto, mas entre todos, simplesmente acabará.

Existe aqui, portanto, uma dinâmica modelo de sujeição mútua de autoridade e poder que é o fundamento de uma escatologia específica em que a ordem divina, o Reino de Deus, toma conta da ordem social a ponto de elas se confundirem. Eu usei o termo “confusão” propositadamente para marcar algo. Nessa escatologia não há divinização de uma ordem social específica, como acontece com Agostinho, o complementarismo, e qualquer teologia fundamentada na filosofia platônica de distinção e separação da ontologia e da fenomenologia. O que existe é o fim de ordens sociais marcadas pela hierarquia, instrumentalização, desigualdade e opressão, que dão lugar a uma ordem social em que Deus é tudo em todos, sem distinção entre ontologia e fenomenologia. Dessa forma, a realidade do Reino de Deus, da ordem divina, se manifesta na ordem social. A ontologia é a fenomenologia e vice versa. Aqui está, verdadeiramente, o evangelho, as boas novas, especialmente para aqueles que se encontram em vulnerabilidade, precariedade e opressão em ordens sociais hierarquizadas pela autoridade e pelo poder. Ao mesmo tempo, está aqui uma notícia desagradável aos que têm posições de autoridade e poder na ordem social em que se encontram, como Agostinho, Ortlund Jr., Schreiner e outros complementaristas. Mas o evangelho é isso mesmo. A boa notícia nunca virá aos que estão em posição de autoridade e poder, e sim aos que estão sob tal autoridade e poder (Lc 1.46–55). O Reino de Deus, exatamente por se manifestar concretamente na experiência humana que existe em ordens sociais específicas, leva em consideração essas ordens sociais ao se definir. Lembra que, para diferenciar valor de função, cria-se uma distinção e separação de ontologia de fenomenologia? Mas isso, como vimos, leva à lógica de que a ontologia igual é a ontologia desigual, porque afirma e mantém uma ordem social desigual. Pois bem, o Reino de Deus não faz essa distinção e separação. Valor e função se informam mutuamente, exatamente a fim de que aquilo que existe “diante de Deus” (ontologia) não seja diferente e até mesmo oposto ao que existe nas relações sociais concretas (fenomenologia). Para que Deus seja tudo em todos, a ordem social hierarquizada e desigual é considerada para que distinção e separação de valor e função, baseadas em categorias fundamentais, sejam eliminadas.

No próximo artigo, farei mais críticas específicas às interpretações bíblicas de Ortlund Jr. e Schreiner. Aqui, já quis mostrar a partir do texto-base complementarista a sua relação com tudo o que foi falado no último artigo sobre ideologia e fundamento filosófico. Assim, já tive a oportunidade de fazer críticas teológicas levando em consideração o que sabemos sobre o evento de Jesus e o evangelho.

Um detalhe importante aqui é que a obra fundante do complementarismo, das quais fazem partes essas citações acima, teve sua edição original em 1991 e uma segunda edição em 2006. Caso a analogia entre a subordinação dentro da Trindade e a subordinação feminina fosse um detalhe arriscado teologicamente que não contribui fundamentalmente para o complementarismo, certamente haveria uma tentativa de supressão ou omissão na segunda edição da obra. Mas, não. Essa analogia é fundamental para o complementarismo, daí a necessidade de mantê-la e justificá-la a partir dessa manobra filosófica platônica tão essencial (com o perdão do trocadilho).

É muito curioso perceber o quanto os teólogos complementaristas fazem uso desse fundamento filosófico como se este fosse um dado da realidade e, pior, como se tivesse alguma atestação bíblica para tanto. É como se, num passe de mágica proporcionado pelo platonismo, a fé cristã histórica ocidental, a doutrina da Trindade e as relações de gênero desiguais se tornassem lógicas, “naturais”, compreensíveis e acima de qualquer crítica teológica ou ética. “Diferentes funções não implica em diferentes essências”. Pronto! Quanta sofisticação. Só que não.

Apresentar um fundamento filosófico e ideológico diferente disso e mais próximo da tradição bíblica seria uma discussão longa e complexa. Além de mexer em fundamentos filosóficos enraizados na tradição cristã ocidental, que é tida como bíblica e a única forma de ortodoxia ou de fé cristã histórica, ainda esbarraria numa questão mais ampla sobre a definição de monoteísmo no judaísmo antigo — a relação entre Jesus e Deus em 1Coríntios 15, que vimos acima, já levanta essas questões. O que posso afirmar, de forma breve e aguda, é que esse fundamento filosófico foi negado por tradições cristãs históricas ortodoxas que não se submeteram (com o perdão do trocadilho) a essa formulação teológica da Trindade exatamente por depender de um fundamento filosófico estranho à tradição bíblica e à fé cristã até então.10 No pensamento hebraico, essa separação ontologia/fenomenologia ou essência ideal/espiritual e experiência material/social simplesmente não existe, como vimos ao falar do Reino de Deus a partir de 1Coríntios 15. Mesmo a distinção e separação entre divindade e criação, que poderiam fundamentar uma distinção e separação entre a divindade e a humanidade de Jesus, não existe no pensamento hebraico que dá origem às teologias apresentadas nas tradições bíblicas.11

Imperialismo e a desigualdade de gênero

Essa diferença entre o texto bíblico e hermenêuticas cristãs dependentes de uma filosofia platônica ficará evidente na minha exegese nos próximos artigos, assim como a fraqueza exegética das leituras complementaristas. Não há dúvida de que os textos bíblicos fundantes para as relações de gênero se encontram em Gênesis 1–2, nos dois relatos da criação da humanidade, em Gênesis 1.26–28 e em Gênesis 2.7,18–25. Como vimos no primeiro artigo sobre o assunto, o complementarismo assume sua fundamentação de forma ainda mais específica na expressão de Gênesis 2.18: “alguém que o auxilie e lhe corresponda” (NVI). Seus proponentes afirmam que o neologismo, complementarismo, se fundamenta no termo hebraico traduzido por “lhe corresponda” (kenegdo), entendido como apontando para “complementaridade”.12 No último artigo também vimos que a perspectiva de Agostinho sobre as relações entre os gêneros apontava para Gênesis 1–2 em combinação com aquilo que o próprio Paulo faz 1Coríntios 11.2–16, estabelecendo aquela cadeia de relações que os complementaristas, como Schreiner, usam para estabelecer hierarquias e submissões. O texto principal de 1Coríntios 11 para a formulação do complementarismo e sua fundamentação em Gênesis 1–2, está nos vs. 3 e 7–9: “Quero, porém, que entendam que o cabeça de todo homem é Cristo, e o cabeça da mulher é o homem, e o cabeça de Cristo é Deus… O homem não deve cobrir a cabeça, visto que ele é imagem e glória de Deus; mas a mulher é glória do homem. Pois o homem não se originou da mulher, mas a mulher do homem; além disso, o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do homem” (NVI). Como Paulo trabalha a partir de Gênesis 1–2, e o complementarismo assume total e completa dependência desses textos bíblicos, começaremos por eles no próximo artigo. Quando chegarmos em 1Coríntios 11, veremos que Paulo está respondendo a questões muito particulares do contexto de Corinto e que isso tem pouco a ver com as questões sendo respondidas por Gênesis 1–2. Isso significa que não podemos simplesmente harmonizar os dois textos. De qualquer forma, ficará claro que, sem um fundamento platônico e uma interpretação enviesada pela ideologia patriarcal e misógina, Gênesis 1–2 não fundamenta o complementarismo com sua exigência por submissão feminina, e nem suporta essa mesma leitura hierárquica de 1Coríntios 11. Sem esse fundamento, portanto, o complementarismo fica somente com o platonismo agostianiano e, consequentemente, a ideologia patriarcal e misógina da divinização da ordem social do imperialismo romano, ou do fundamentalismo religioso e político da Maioria Moral estadunidense de meados do século passado.

Antes de avançar para a exegese dos textos bíblicos nos próximos artigos, quero concluir este, reforçando e exemplificando essa última afirmação que combina com a afirmação com a qual eu iniciei o último artigo: “O complementarismo é uma doutrina que só pode ser ensinada e aceita num contexto patriarcal e misógino”. Numa monografia sobre a ordem social de uma população tribal no norte da Índia, antes e depois da chegada do cristianismo imperial britânico, a estudiosa Chingboi Guite Phaipi traça algumas conclusões importantes sobre as relações entre homens e mulheres. Phaipi afirma que as relações entre homens e mulheres na tribo Paite, antes da chegada do cristianismo, era desigual, mas essa desigualdade se intensificou com a sua chegada. O motivo para isso é a relação de homens e mulheres com a ordem social. Apesar da desigualdade das relações entre homens e mulheres na tribo Paite, o que inclui subordinação feminina, liderança masculina exclusiva e limitação de participação na vida pública, a ordem social não era tão hierarquizada, já que a religião nativa tinha divindades femininas e a economia era comunitária, contemplando até a possibilidade de uma prática de transmissão matrilinear de patrimônio.13

Com a chegada do domínio imperial britânico, a ordem social muda completamente e a religião, no caso o cristianismo, faz parte dessa nova ordem social. As mesmas dinâmicas de subordinação feminina indígenas à cultura Paite permanecem, mas agora fundamentadas na ordem social imperial britânica e cristã.14 Tal mudança de ordem social, de uma ordem tribal para uma imperial, agrava e muito a condição das mulheres em relação aos homens. A ordem social agora é extremamente hierarquizada e instrumentalizada para favorecer os interesses do império. Toda a população indígena perde sua autonomia em sujeição ao poder imperial, e a economia é transformada de comunitária para capitalista.15 Nesta nova ordem social, a sujeição das mulheres é agravada, pois elas perdem ainda mais acesso à vida pública, aos centros de decisão e aos recursos materiais determinantes para a vida delas e da comunidade, especialmente a propriedade de terra. É claro que o que o cristianismo imperial britânico traz não é o complementarismo, que ainda não existia, mas sim uma perspectiva hierarquizada e instrumentalizada das relações entre homens e mulheres. De qualquer forma, além da sujeição feminina, esse cristianismo introduzido na tribo Paite também reflete um tipo de subordinação benevolente típica da ideologia imperial e do complementarismo. Para demonstrar que o cristianismo melhorou as condições das mulheres nativas, aponta-se para o fato de os maridos cristãos, diferentes dos maridos hindus, contribuírem nas tarefas domésticas. Mas isso nada diz sobre a posição social das mulheres e somente serve para parabenizar os homens por sua “grande” bondade.16 A ideologia imperial precisa justificar seu poder, exploração e opressão ao indicar que isso é benéfico para os que estão debaixo da sua autoridade e poder. Pequenas demonstrações de bondade são necessárias para mascarar uma ordem social que beneficia o império em detrimento dos subjugados. O mesmo acontece nas relações desiguais entre homens e mulheres no cristianismo de forma geral e no complementarismo mais especificamente.

Este exemplo da tribo Paite mostra que o complementarismo depende de uma ordem social hierarquizada e instrumentalizada para ser aceito como parte da fé cristã. O exemplo também mostra que ordens sociais diferentes, não importa o que se diga sobre valores ontológicos, implicam em diferentes valores ontológicos por causa das diferentes funções fenomenológicas. Quanto mais hierarquizada e instrumentalizada uma ordem social, mais se faz necessário estabelecer igualdade de funções, ou possibilidades iguais do exercício de funções sociais independente de categorias fundamentais, para subvertê-la. Manter uma distinção e separação entre ontologia e fenomenologia só contribui para a manutenção dessa ordem social que, então, é divinizada, se torna parte da “ordem natural”, da “ordem divina”, do “reino de deus”. Desta forma, as diferentes funções entre homens e mulheres faz parte de uma ideologia imperial bem mais ampla, que envolve especialmente política e economia, sendo que a religião é instrumentalizada para avançá-la. Como Phaipi demonstra, textos bíblicos, especialmente Gênesis 1–3, se tornam fundamentos ideológicos de manutenção dessa ordem imperial.17 Por isso, no próximo artigo, trataremos cuidadosamente das duas narrativas de criação da humanidade, Gênesis 1.26–28 e Gênesis 2.7,18–25. Como sempre, as coisas nunca são como as ideologias imperiais querem nos fazer acreditar.

Notas:

1. A obra foi publicada em português num formato resumido que inclui somente alguns poucos capítulos da obra original em inglês. A edição brasileira, aparentemente, está fora de catálogo, felizmente. Ver John Piper e Wayne Grudem, Homem e Mulher: Seu Papel Bíblico no Lar, na Igreja, e na Sociedade (São José dos Campos: Editora Fiel, 1996).

2. Como o complementarismo é reacionário ao feminismo e sua perspectiva de igualdade dos gêneros, o autor faz uso intencional do termo “desigualdade” em seu capítulo.

3. Raymond C. Ortlund Jr. “Male-Female Equality and Male Headship: Genesis 1–3”. In: Recovering Biblical Manhood and Womanhood: A Response to Evangelical Feminism, editado por John Piper e Wayne Grudem (Wheaton: Crossway, 1991, 2006), 129.

4. Ortlund Jr. “Male-Female Equality and Male Headship: Genesis 1–3”, 125.

5. Ortlund Jr. “Male-Female Equality and Male Headship: Genesis 1–3”, 125.

6. Thomas R. Schreiner, “Head Coverings, Prophecies, and the Trinity: 1 Corinthians 11:2–16”. In: Recovering Biblical Manhood and Womanhood: A Response to Evangelical Feminism, editado por John Piper e Wayne Grudem (Wheaton: Crossway, 1991, 2006), 162.

7. Schreiner, “Head Coverings, Prophecies, and the Trinity”, 162–63.

8. Schreiner, “Head Coverings, Prophecies, and the Trinity”, 164–65.

9. Schreiner, “Head Coverings, Prophecies, and the Trinity”, 163. É muito significativa a omissão do termo “sociedade” como uma sequência lógica, depois de “igreja e domicílio”.

10. Para uma excelente apresentação dessa questão, apesar de aplicada ao posterior Concílio de Calcedônia, ver Vince L. Bantu, A Multitude of All Peoples: Engaging Ancient Christianity’s Global Identity (Downers Grove: IVP Academic, 2020), 9–71.

11. É difícil apontar para referências acadêmicas que lidem com isso de forma pungente, portanto é necessário fazer uma combinação de referências que lidam com questões diferentes. Para a relação entre divindade e criação, ver Esther J. Hamori, “When Gods Were Men”: The Embodied God in Biblical and Near Eastern Literature (Berlin: De Gruyter, 2008); Daniel O. McClellan, YHWH’s Images: A Cognitive Approach (Atlanta: SBL Press, 2022); Benjamin D. Sommer, The Bodies of God and the World of Ancient Israel. Para a relação entre a divindade e outros seres criados no pensamento hebraico e seu fundamento para a divindade de Jesus, ver Crispin H. T. Fletcher-Louis, The Divine Heartset: Paul’s Phillipians Christ Hymn, Metaphysical Affections, and Civic Virtue (Camelot: Whymanity, 2023); idemJesus Monotheism. Volume 1. Christological Origins: The Emerging Consensus and Beyond (Eugene: Cascade Books, 2015); idem, “‘The Being that Is in a Manner Equal with God’ (Phil. 2:6C): A Self-transforming, Incarnational, Divine Ontology”, The Journal of Theological Studies 71.2 (2020): 581–627. Para duas abordagens bem diferentes, mas fundamentais sobre o pensamento hebraico e filosofia, ver Dru Johnson, Biblical Philosophy: A Hebraic Approach to the Old and New Testaments (Cambridge: Cambridge University Press, 2021) [publicado no Brasil por Thomas Nelson, sob o título Filosofia Hebraica: A Origem e os Aspectos Distintivos da Abordagem Filosófica Hebraica]. Para uma proposta de exercício teológico independente de fundamentos platônicos e mais próxima do pensamento hebraico, ver Caio Peres, “Experiências de Fé em Comunidade: Os Horizontes de Estudos Bíblicos, Teologia Bíblica e Teologia Sistemática”. In: Bíblia e Doutrina: Conciliando Teologia Bíblica e Teologia Sistemática, editado por Joel B. Green e Max Turner (Maceió: Sal Cultural, 2024), 233–66; John Sanders, Theology in the Flesh: How Embodiment and Culture Shape the Way We Think about Truth, Morality, and God (Minneapolis: Fortress, 2017).

12. Ver https://cbmw.org/2019/11/20/mere-complementarianism/#_ftn11

13. Chingboi Guite Phaipi, The Bible and Patriarchy in Traditional Tribal Society: Rereading the Bible’s Creation Stories (London: T&T Clark, 2023), 8–10.

14. Phaipi, The Bible and Patriarchy in Traditional Tribal Society, 31.

15. Phaipi, The Bible and Patriarchy in Traditional Tribal Society, 42–43.

16. Phaipi, The Bible and Patriarchy in Traditional Tribal Society, 30.

17. Phaipi, The Bible and Patriarchy in Traditional Tribal Society, 48–107.