Morre, em 22 de outubro de 2024, Gustavo Gutiérrez Merino, teólogo peruano e sacerdote dominicano, destacado pela sua contribuição teológica contextual, situada na experiência da fé do povo


Eu sempre achei meio brega essa coisa de elogio fúnebre. Mas acho que junto a seu corpo morto também morre uma geração de teólogos da libertação — e, com ele vai toda a Teologia da Libertação —, e é claro que você teria problemas em ser chamado de um dos Pais fundadores desse modo de fazer teologia: a obra sempre foi além de você, mas nunca  apesar de você.

Eu me lembro da primeira vez em que ouvi sobre você, e, diferente de muitos dos meus amigos, eu o conheci por meio de um padre conservador, que expunha o que considerava serem seus erros e desvios doutrinários. Eu era apenas um adolescente atrás das telas. Muitas coisas aconteceram entre aquele dia e hoje, e no meio do caminho eu acabei me enveredando por caminhos que se cruzaram com os seus.

Eu li três das suas obras: aquele seu escrito mais famoso de 1971 e outros dois sobre espiritualidade.1 O livro La densidad del Presente foi o que me chamou mais a atenção, e sua concepção de que a fé exige uma tensão dialética Calvário-Páscoa é realmente uma das coisas mais lindas que já li. A aparente contradição da experiência de situar-se no Gólgota, mas também naquele jardim da ressurreição.

Mas o que mais me impressiona em tua história, Gutiérrez, é sua fidelidade ao fazer teológico contextual, situado em determinada experiência de fé. O que mais me impressiona, Gustavo, não são seus livros ou artigos, mas sim aquela cena que vi de você a duas semanas atrás, recebendo a unção dos enfermos. Após a cena, eu ainda me pergunto o que significa o grande Gutiérrez estar frágil, buscando no auxílio sacramental a força.

O que mais me impressiona nessa sua cena, fraco e impotente, é o paradoxo de um teólogo que tanto fez e tanta tinta gastou estar sob a confiança dos braços do Libertador Jesus. Um teólogo crente. A fraqueza, a impotência, a necessidade e a Graça. Eu imagino que você saiba, Gutiérrez, o que significa hoje a Teologia da Libertação: gabinetes teológicos, conversas de sacristia, rede conceitual mais complexa que a própria Summa do seu confrade Tomás de Aquino e a fala ressentida e histérica. Enclausurada em si mesma.

Um dia eu aprendi contigo, nos seus escritos sobre o “quefazer” teológico, como a teologia da libertação não poderia fazer perguntas que não encontrassem ecos nas perguntas do verdadeiro sujeito teológico. Você nos ensinou tudo isso, Gutiérrez. Nos ensinou sobretudo com seu percurso, e aquele seu livro, Teologia da Libertação: perspectivas, de 1971, não nasce em um gabinete teológico; seu esquema e seu rascunho são feitos em uma assessoria pastoral. Antes da escrita, Gustavo, seu laboratório era a práxis, e sua produção teológica sempre foi ato segundo enquanto seguimento a Jesus2.

Tudo o que decorre de 1971, seu envolvimento com Medellín, seu percurso de assessoria e escrita, suas idas e vindas por toda a América Latina: quanto esse corpo já percorreu e andou? Hoje não tem como fazer história da teologia na nossa América sem falar de você e sua obra, e mesmo os seus críticos não o podem ignorar. Quantos movimentos de libertação você inspirou, e quantos inclusive deram a vida por terem lido seus livros? Hoje, a sua Páscoa, na nossa ainda Sexta-feira Santa; não chegamos, mas caminhamos.

Um teólogo morto, padecente e fraco na Páscoa, com seu corpo silente. Há muito tempo, Gustavo, havíamos nos esquecido daquela opção preferencial pelos pobres, e você nos lembrou isso; hoje a práxis recuperada por ti se petrificou em conceito, e há tanta teologia gasta para explicar por que se faz essa opção que não dá tempo dos teólogos da libertação serem também libertadores. 

Mas seu corpo padecente nos últimos dias também nos ensinou muito. Seu corpo na Páscoa é seu maior tratado teológico; e agora, Gustavo, você está mais livre que nunca. Livre e, por isso, libertador.

Por fim, uma palavra sobre seu corpo que entra carregado por seus confrades dominicanos na sua missa exequial, o último ato antes que você repouse. Como te custaram as incompreensões e perseguições às suas obras! Quantas vezes você teve que se explicar e sentar naquela cadeira magisterial do Santo Ofício, em defesa da fé que se fazia política na vida do povo de Deus que você servia? Quantas vezes o boicote, e quantas vezes a sua obra foi  mal compreendida? Mas a fidelidade à teologia como ato segundo sempre o manteve na comunhão eclesial; como te custou, Gustavo, mas quão fiel você foi.

Durante os tempos de críticas e questionamentos por parte de Roma, quando um jornalista expressou compaixão por seu sofrimento, você o respondeu com aquilo que tantos teólogos e teólogas da libertação hoje esquecem: você preferia “caminhar com sua Igreja do que andar sozinho com sua teologia”. 

Que coisa linda aquele dito de que a sua produção teológica era uma carta de amor ao povo pobre que você tanto amava, uma carta ao mundo dividido e uma carta à tua Igreja. Hoje o seu corpo pascal é essa carta a todos nós, a última e definitiva carta.

Eu hoje, na aula de cristologia, rezei por você e por sua Páscoa. Ontem eu chorei como se meu avô tivesse morrido, e rezei como os antigos aquele artigo de fé: Creio na Comunhão dos Santos.

Um dia, Gutiérrez, eu ainda espero te encontrar no Livre e Libertador Jesus. Até lá, estou por aqui.

Gracias, Gustavo.

Notas:

1. Uma das obras germinais do que viria a ser conhecido como Teologia da Libertação é a obra Teologia da Libertação: perspectivas, publicada no ano de 1971; pouco antes do início do encontro do CELAM II em Medellín, o teólogo Gustavo Gutiérrez realizou, em Chimbote, no Peru, uma palestra que plantaria as sementes do movimento conhecido como Teologia da Libertação. Desse evento, surgiu o texto intitulado Hacia una Teología de la Liberación, considerado um marco de esboço para a obra fundamental Teología de la Liberación: Perspectivas, que consolidou os princípios e as reflexões centrais do movimento posterior. Já a obra de Teologia Espiritual  Beber no próprio Poço é, em certo sentido, uma obra-resposta a uma série de críticas que se fazia ao movimento teológico emergente, que era acusado de ser pouco espiritual e por demais pragmatista. A obra La Densidad del tempo presente é uma série de artigos e ensaios de Gutiérrez que, a partir da categoria teológica-escatológica do Kairós, analisa a qualidade do tempo presente e como a vida plena se desenrola nele. Recomendamos como porta de entrada à obra de Gutiérrez a sua obra de 1971.

2. É interessante notar que, para Gutiérrez, a visão da teologia como “ato segundo” e o entendimento de que ela não deve ser uma reflexão solta e desconectada da realidade não são meras questões metodológicas ou secundárias, mas elementos fundamentais de seguimento. Para ele, fazer teologia é, antes de tudo, seguir Jesus: “Assim considerada, a distinção entre ato primeiro e ato segundo (ademais, fortemente tradicional) não se situa, somente, no que comumente se entende por uma perspectiva de metodologia teológica. Antes de mais nada, trata-se de uma maneira de vivermos a fé, uma questão de seguimento de Jesus. Para dizer a verdade, a nossa metodologia é a nossa espiritualidade” (GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber no próprio poço. Vozes, 1984, p. 150). Embora parta do pensamento de Hugo Asmann, um outro germinal fundador da TdL, recomendamos a discussão iniciada por Castro sobre a Atualidade da Teologia; o valor da teologia reside em uma experiência comunitária de fé que produz sentido para a vida real das pessoas. O teólogo, e a vida de Gutiérrez foi testemunho disso, o fazer teológico deve observar e interpretar a esperança e os símbolos de fé dos marginalizados, em vez de criar teorias desconectadas da prática: https://revistazelota.com/a-atualidade-da-teologia/