A primeira ordenação feminina ocorreu em um contexto de parcial aceitação de mulheres no ministério, e foi protagonizada por uma pastora, uma teóloga e uma capelã. O evento é referência para experiências similares até hoje
Por Penny Shell | se aposentou e foi para o noroeste dos EUA em 2006 para estar próximo de suas amigas e amigos, e desde então é membra da Igreja da Universidade Walla Walla, em Washington. Texto traduzido e adaptado do original em inglês por Jonathan Monteiro para a revista Zelota.
Penny Shell é ordenada ao ministério ma Igreja Adventista do Sétimo dia de Siglo, EUA (Fonte: Ordination – Herstories: Norma e Kendra)
Cerca de 10 anos atrás, duas Uniões na América do Norte começaram a ordenar mulheres ao ministério, contra o conselho da Associação Geral. Esta foi a primeira vez na memória recente em que uma União, encarregada de decidir quem ordenar em sua região, deu permissão para que as mulheres fossem oficialmente ordenadas e reconhecidas. Mas o que muitos não percebem é que mulheres pastoras foram ordenadas quase duas décadas antes, em 23 de setembro de 1995, na Igreja Adventista do Sétimo Dia de Sligo [Sligo Seventh-day Adventist Church, no inglês], em Maryland. Eu fui uma das mulheres ordenadas lá, e esta é minha história de como a vida me levou até aquele dia.
Antes
Depois de 14 anos ensinando inglês em internatos adventistas, decidi que era hora de mudar de carreira, e me matriculei no curso de Jornalismo Religioso da Andrews University. O programa nunca desenvolveu o aspecto jornalístico, então acabei fazendo aulas de religião no seminário. Em 1979 completei o mestrado em Religião.
Nessa época, ouvi Valerie Phillips, capelã do Sanatório de Battle Creek, em Michigan, falar sobre seu trabalho. Eu havia perdido meus pais recentemente por causa do câncer: minha mãe em 1976 e meu pai em 1977. A experiência com a doença e as hospitalizações de meus pais me deram uma compreensão interna do ambiente hospitalar e do valor de ouvir as pessoas. Senti uma forte conexão com o ministério que ela descreveu. Um dia, notei um anúncio em um quadro de avisos para Educação Pastoral Clínica (CPE) na Universidade Loma Linda (LLU), na Califórnia. Candidatei-me e fui aceita.
Após os três meses de treinamento básico na LLU, minha atração pela capelania aumentou. No entanto, a certificação exigiria três trimestres adicionais de CPE. Assim, depois de terminar o doutorado em educação na Andrews, completei um programa de CPE de nove meses no Abington Memorial Hospital, na Pensilvânia, e comecei a procurar um lugar para praticar meu novo ministério.
Ordenação
A década de 1970 viu um impulso para a igualdade das mulheres nos Estados Unidos e em todo o mundo. Quando os adventistas pensavam sobre a ordenação de mulheres, alguns a viam como uma honra, mas outros a consideravam apenas parte de uma “agenda feminista” secular. Mas a ideia de ordenar mulheres ao ministério não surgiu do nada. As mulheres cristãs protestantes foram ordenadas ao ministério por décadas. A igualdade de gênero no ministério adventista havia sido discutida e recomendada à Associação Geral já em 1881, com uma resolução de “ordenar mulheres” que nunca foi implementada.
Apoiadores e detratores da ordenação de mulheres continuaram a discordar pelo menos desde aquela época. No entanto, os adventistas ofereceram muito apoio inicial para mulheres ministras, em grande parte por causa do chamado profético de Ellen G. White. As primeiras publicações adventistas apresentavam apoio bíblico às mulheres de forma positiva.1
Na década de 1980, quando fui atraída para a capelania, eu não estava pensando em ordenação para mim mesma, embora achasse doloroso reconhecer a negatividade contínua em relação à ordenação de mulheres em minha igreja. Em minha vida o tema foi discutido e rediscutido, estudado e reestudado, debatido e redebatido. Embora a maioria desses estudos concordasse que a igreja deveria fornecer apoio igual para homens e mulheres no ministério por meio da ordenação, a mudança oficial na política não ocorria.
Em 1984, depois que terminei meu CPE, procurei emprego como capelã. Minha falta de ordenação foi um impedimento imediato. Um administrador de capelania me disse: “Precisamos ter todos os nossos capelães completamente qualificados. Já abrimos uma exceção para uma capelã que não é ordenada. Não podemos ter mais.” Outro hospital me disse: “Gostaríamos de contratá-la. Você é bem qualificada. Mas por que a contrataríamos quando podemos obter uma pessoa ordenada?”
Agora eu estava sentindo as consequências de não ser ordenada em minha própria carreira. Por fim, encontrei um emprego no centro de Chicago, no Thorek Hospital, que era propriedade dos adventistas.
Passos Adicionais
Enquanto trabalhava em Chicago, fui ordenada anciã na Igreja Adventista do Centro-Oeste [West Central Adventist Church, no inglês], a primeira mulher assim ordenada lá. Minha agenda de 3 de janeiro de 1987 diz: “Centro-Oeste – 1ª vez para ajudar na santa ceia” como anciã ordenada.
Passei em minha certificação para capelania, tornei-me membra ativa dos Ministérios de Capelania Adventista e mais tarde serviria como sua primeira mulher presidenta. No entanto, em meu ministério diário, alguém ocasionalmente me perguntava se eu era uma “ministra de verdade”. A falta de ordenação às vezes desviava de minha capacidade de ministrar.
Quando me dei conta do pouco contato que muitas de minhas irmãs, capelãs e pastoras adventistas tinham com informações sobre mulheres no ministério, comecei um boletim caseiro para mulheres adventistas no ministério. Eu solicitava histórias pessoais de mulheres adventistas no ministério, ou, quando obtinha permissão, copiava e distribuía artigos sobre o assunto.
Depois de quatro anos (1984–1988) no Thorek Hospital, juntei-me à equipe de capelania do Hospital Adventista Shady Grove, em Rockville, Maryland. Em 1990, grande esperança cresceu entre os adventistas que viam valor e justiça na ordenação de mulheres e homens. Sentimos que a política da denominação sobre a ordenação de mulheres logo mudaria. Na Assembleia Geral em Indiana naquele ano [1990], os delegados concordaram que, onde fosse aprovado, as mulheres que fossem anciãs poderiam realizar casamentos e realizar batismos. Mas a própria ordenação ainda era negada.
Na Assembleia Geral de 1995, em Utrecht, Holanda, foi feita uma moção para permitir a ordenação pastoral de mulheres em todas as divisões mundiais onde a prática fosse aceita. Doeu em mim ouvir meus irmãos adventistas de todo o mundo falarem incisivamente, e às vezes com raiva, contra a ordenação de mulheres. A moção falhou. Eu queria pertencer a uma igreja – minha igreja, a Igreja Adventista – que afirmasse o ministério de homens e mulheres igualmente. Pertencer a uma igreja inclusiva era mais importante para mim do que ser ordenada.
Capelães adventistas na década de 1990 votaram seu apoio à ordenação de mulheres no ministério. Um ano, quando eu era presidenta da organização de capelania, o grupo me encarregou de entregar um apelo para a ordenação de mulheres ao presidente da Associação Geral. Meu capelão-chefe, um homem, foi comigo ao gabinete do presidente, onde meu colega (que não tinha doutorado) foi chamado de “doutor”, e eu, que tinha doutorado, fui amplamente ignorada.
A ordenação na igreja de Sligo
Após a Assembleia Geral realizada em Utrecht em 1995, a igreja de Sligo procurou prosseguir com uma ordenação de mulheres representando três áreas do ministério: pastora de igreja, professora/pastora de teologia da faculdade, e capelã de hospital – a saber, Norma Osborn, Kendra Haloviak e eu. Todas nós éramos membras da igreja de Sligo.
Para a maioria dos pastores homens, a ordenação é esperada e é um momento de celebração. Mas, para as mulheres, considerar a ordenação – mesmo que em reconhecimento de dons, experiência e chamado – significava ser colocada no centro das atenções, ser vista como participante de um ato político. Eu estava despedaçada. Claro que eu simpatizava com a sensação de ser vítima de uma política excludente. No entanto, eu sofri por fazer parte de algo que parecia tão certo, mas que podia ser visto como rebelde. A notoriedade poderia custar meu lugar no ministério? Os artigos que escrevia para publicações da igreja não seriam mais aceitos?
Embora eu não soubesse se teria forças para participar, finalmente decidi que não seria certo recusar e, assim, concordei. Então a carta de Sligo, pedindo à Associação Potomac [Potomac Conference, no inglês] que aprovasse as três mulheres para a ordenação, não recebeu uma resposta positiva. Em 27 de agosto de 1995, a Associação se recusou (11 a 8) a participar da cerimônia ou a recomendar as candidatas à União Columbia [Columbia Union Conference, no inglês] para credenciais de ordenação.2
Antes de sermos aprovadas, nós três nos reunimos separadamente com colegas e ministros para revisar nossas qualificações. Apreciei a presença de um líder sênior da capelania que veio falar em meu nome. Depois, perguntei se ele iria ao culto de ordenação. Ele respondeu: “Bem, eu não sei. Temos visita neste fim de semana.” Assegurei a ele que eu compreendia. Eu me perguntei (presumindo que ele aparecesse) se ele usaria um boné de beisebol e óculos escuros e se sentaria na última fileira!
Ele não era o único pastor ou líder homem, eu acho, que apoiava a ordenação de mulheres, mas se sentia encurralado. Seu próprio ministério pode ser prejudicado, então eles preferem decepcionar os outros por não comparecer. Alguns encontraram razões para estar fora da cidade.
O culto de ordenação em Sligo
Embora muitos adventistas se opusessem ao que estava acontecendo, ficamos emocionadas com a assistência, bem como com as felicitações daquelas pessoas de todo o país que nos apoiaram. Um grupo de apoio formado por mulheres adventistas arrecadou dinheiro para levar outras mulheres no ministério adventista para o evento na igreja de Sligo. O sermão de ordenação do pastor Rudy Torres foi aplaudido de pé.
Meu colega que havia expressado sua incerteza compareceu. Ele veio à plataforma para a oração de dedicação quando as mãos foram impostas sobre nós. Lembro-me de ver as lágrimas rolando pelo rosto de Ron Wisbey, ex-presidente da União Columbia, que obviamente apoiava, mas achava que precisava ficar em seu banco.
Foi um tempo alegre, cheio de amor e esperança e, creio eu, do Espírito Santo. Para aqueles que experimentaram turbulência interior, como eu, também foi exaustivo. Reunimo-nos novamente naquela noite para comes e bebes. As pessoas não conseguiam parar de falar, e isso durou quatro horas até que – como alguns disseram – Êutico caiu da janela (At 20.9).
Apoio surpreendente
Posteriormente, The Washington Post entrevistou nós três.3 O Washington Times, conservador, fez uma revisão mais crítica. Uma revista chamada Working Women incluiu nossos nomes em uma edição chamada “Mulheres que Mudaram o Mundo” [Women Who Changed the World, no inglês]. Isso talvez tenha sido um exagero, mas a ordenação em Sligo foi seguida por ordenações semelhantes (de Madelynn Haldeman, Hallie Wilson e Sheryll Prinz-McMillan) na Califórnia no final daquele ano.
Quando a Associação de Clero de Gaithersburg [Gaithersburg Clergy Association, no inglês] mais tarde me convidou para participar da ordenação de uma colega ministra, conheci a reverenda Jane Holmes Dixon, bispa sufragânea da Igreja Episcopal na região de Washington, DC. Ela me convidou para visitá-la.
Seu escritório ficava atrás de uma porta vermelha na bela e imponente Catedral Nacional. Ela foi acolhedora, compreensiva, afirmativa e encorajadora. Sua ordenação como bispa sufragânea, disse ela, foi especialmente difícil por causa da oposição de um padre conservador e sua congregação. Seu arcebispo, apoiando seu ministério ordenado, a enviou para pregar naquela mesma igreja! Seu obituário no The Washington Post falaria de sua pregação na quadra de basquete da igreja, porque uma igreja não a permitira entrar no santuário.
O conselho do hospital e a União Columbia
Não muito depois de minha ordenação, eu estava programada para passar o devocional no conselho do Hospital Adventista de Shady Grove. Este era um grupo poderoso e um tanto intimidador. Depois, eu estava saindo silenciosamente da sala quando o presidente do conselho, Ron Wisbey, disse: “Só um minuto, Penny”. Ele explicou ao grupo que eu havia sido ordenada recentemente.
Um médico falou em voz alta: “Esta situação precisa ser abordada!” Pensei, “Lá vem!”, e minhas preocupações de perder o emprego imediatamente se reativaram. O médico continuou: “Acho que precisamos votar reconhecendo este evento e confirmando nosso apoio.” A ata mostra isso como um voto registrado.
Depois que Kendra voltou para a pós-graduação, Norma e eu fomos convidadas para ir ao escritório da União Columbia. Lá, dois colegas falaram de nossos ministérios e da ordenação em Sligo. Fomos convidadas a nos ajoelhar enquanto administradores e ministros, secretários e visitantes colocavam as mãos sobre nós e oravam por nós.
Comentários de apoio e depreciativos sobre a ordenação em Sligo, registrados em muitas publicações, e-mails e artigos ao longo das décadas seguintes, podem ser encontrados ainda hoje.
Notas:
1.↑ Beverly Beem e Ginger Hanks Harwood, “Your Daughters Shall Prophesy,” Andrews University Seminary Studies, vol. 43, no. 1 (Spring 2005), pp. 41-58; Harwood and Beem, “It Was Mary That First Preached a Risen Jesus,” Andrews University Seminary Studies, vol. 45, no. 2 (Autumn 2007), pp. 221-245; Harwood and Beem, “Not a Hand Bound; Not a Voice Hushed,” Andrews University Seminary Studies, vol. 52, no. 2 (Autumn 2014), pp. 235-273.
2.↑ “Sligo Makes Historic Decision for Adventist Women in Ministry,” The Adventist Woman, vol. 14, no. 5 (October 1995), p. 1.
3.↑ Debbi Wilgoren, “Three Women’s Act of Devotion and Defiance,” The Washington Post (Nov. 4, 1995). Note que, embora “desobediência” fosse uma palavra de destaque na manchete, ela não refletia nossas atitudes.