Por Amanda Ferreira Santos | é espírito-santense e psicóloga com estudos focados em sexualidade e teologia queer.

Não é de hoje que se dedica ênfase à sexualidade humana. A história do cristianismo explora desde a total renúncia aos instintos sexuais ditos heteronormativos, como uma forma de santidade a ser alcançada, até a repreensão de qualquer comportamento sexual que fuja dos padrões instituídos pela igreja. 

O imaginário do que são família, corpos, sexualidade e gênero dentro da sociedade brasileira foi imposto pelo cristianismo, originário da colonização portuguesa e institucionalização das normas e morais católicas.1 A vida religiosa, como uma  instituição, constitui um conjunto de regras, tradições, asseios, proibições e normativas que ultrapassam os séculos. Entretanto, existem vidas que desejam estar ali, mas não são aceitas ou bem vistas no ambiente. O que fazer quando adeptos deste cristianismo apresentam comportamentos e desejos sexuais que fogem da apropriação do matrimônio designado pela religião enquanto instituição? Quais atitudes a igreja reserva aos  membros e membras  LGBTQIAP+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros Queers, Intersexos, Assexuais e outres)? Qual tem sido a reação da igreja  ao  cenário LGBTfóbico?

De acordo com o IBGE, no Censo de 2010, os adeptos da religião cristã são a maioria no Brasil, sendo 64,6% dos brasileiros católicos e 22,2% evangélicos, enquanto 8,0% se declaram sem religião; 2,0% espíritas e 0,3 adeptos da umbanda e do candomblé, evidenciando que o cristianismo é predominante no território nacional. No mesmo ano, o IBGE também divulgou que 47,4% dos casais homossexuais se dizem católicos; 20,4% não têm religião. Possivelmente,  muitas dessas pessoas dizem não ter religião por medo e/ou por acreditarem que não são dignas de pertencimento.  Tais crenças, geralmente,  baseiam-se nas palavras proferidas por uma autoridade religiosa, ou algum praticante da religião, causando o afastamento parcial ou total dos indivíduos membros, ou dos que gostariam de fazer parte da comunidade. 

A discriminação nos ambientes religiosos é uma violência presente no cotidiano das pessoas LGBTQIAP+. Projetos de “cura gay”, tornam-se impulsores diários para a marginalização dos corpos LGBTQIAP+. O cristianismo construiu uma cultura e padrões normativos para os papéis de gênero, e tudo aquilo que foge dessa ordem estabelecida torna-se passivo de exposição e exclusão, possibilitando, assim, um domínio sobre os corpos presentes dentro da religião. 

Uma das dificuldades para reverter esse quadro, para Minayo2, seria a relutância a mudanças verdadeiras entre pesquisadores e instituições; o medo do desconhecido; o ambiente seguro do conservadorismo; ou o comodismo nas instituições tradicionais governadas por padrões muito rígidos de organização de produção do saber. Quando o assunto são as instituições religiosas, responder às provocações atuais da Ciência e da Tecnologia pode acabar despertando o instinto de autopreservação sobre o medo de passar por mudanças necessárias. Minayo3 ainda afirma: “Grupos e pessoas estão sob a mira de um desafio: ou experimentam voos de águias ou se contentam com o conservadorismo que corrói a energia das instituições”.

As relações de poder no cristianismo têm originado comportamentos que ultrapassam as condições de bem-estar para pessoas que possuem uma orientação sexual diferente do que é imposto como correto, causando um silêncio sobre as circunstâncias, uma falta de diálogo entre as partes. Muito se fala sobre o comportamento negativo da instituição mediante as pessoas LGBTQIAP+, mas pouco é feito para reverter esse quadro, que lhe é censurado e negado violentamente pela força do que já está instituído. Ao colocar a cis-heterossexualidade como única forma correta de se pertencer ao cristianismo, fica notável a discriminação sofrida por outras orientações sexuais. 

Esse tipo de exclusão pode desencadear uma série de consequências para a saúde mental e bem-estar do indivíduo que a compete, colocando, assim, à prova o cuidado do cristianismo para com seus membros. Existe aí uma segregação, tendo em vista que a sexualidade não cis-heteronormativa é tida como um modelo que não corresponde ao ideal para a família cristã.

Em Foucault4 veremos a aparição do termo chamado “biopolítica”, usado para designar uma ação de governo sobre a vida biológica dos indivíduos, um domínio sobre a vida. Danner5 diz que “A biopolítica vai se ocupar com os processos biológicos relacionados ao homem-espécie, estabelecendo sobre os mesmos uma espécie de regulamentação”. O cristianismo apresenta-se da mesma maneira com um padrão instituído e, se você não faz parte dele, nem se submete às suas normas, você não se torna cristão. 

A moral cristã trouxe novos discursos e novas técnicas de controle das práticas sexuais e, por extensão, de controle dos indivíduos. O primórdio excludente heterossexual que atravessa a sociedade brasileira, fundamentalmente amparado pela moral cristã, foi inserido através de um violento processo de colonização da América-Latina, processo este descrito por Lugones como uma colonialidade de gênero, apresentando a heterossexualidade como uma construção cristã europeia, que idealiza um sujeito que deve ser o parâmetro para todos os corpos, desejos, relações e sexualidades. O resultado: sujeitos que não se enquadrarem nessa construção de sexualidade serão identificados como “não-sujeitos”, aquilo que Butler6 chama de “corpos abjetos”; logo, um codinome para corpos colocados à margem da sociedade e da dignidade humana.

Foucault7 diz que: “O pastorado no cristianismo deu lugar para toda uma arte de conduzir, de dirigir, de levar, de guiar, de controlar, de manipular os homens, uma arte de segui-los e de empurrá-los passo a passo, uma arte que tem a função de encarregar-se dos homens coletiva e individualmente ao longo de toda a vida deles e a cada passo de sua existência.’’ Existe um fenômeno chamado homofobia cordial, que, ao invés de discriminar e segregar indivíduos marcados como diferentes, visa a aproximação. Um exemplo seria o acolhimento na perspectiva evangélica aos homossexuais, sustentada por certas iniciativas religiosas, que insere pessoas LGBTQIAP+ nos cultos, objetivando seu engajamento a uma ideia de renovação moral, para a libertação do homossexualismo. Uma maneira capciosa de homofobia pastoral poderia ser descrita com esse discurso de acolhida, em que se encobre estratégias de dominação com intuito de uma remodelação da subjetividade dos sujeitos, onde as pessoas homossexuais são acolhidas para serem transformadas.

Em Busin8, foi exposto que os maiores níveis de suicídios correspondem ao estigma social sofrido pela população homossexual em uma sociedade onde se predomina o cristianismo, fruto de um discurso que prega a clandestinidade da homossexualidade e atravessa todo campo social e subjetivo. Logo, deixando as pessoas que estão inseridas nesta condição expostas a partir dessas conceituações, e dificulta igualdade de direitos para esta população. Assim, a Igreja ainda exerce seu poder sobre o imaginário social no que se refere à sexualidade humana, sendo favorecida de estruturas próprias de biopoder e grande influência no contexto biopolítico social. 

A comunidade religiosa obtém um papel significativo no impacto do bem estar de um indivíduo, pois, ao ser inserido em um grupo, o senso de pertencimento promovido por esse grupo pode fortalecer a socialização. Assim, ao se sentir pertencente a algo, o indivíduo passa a compartilhar ativos sociais que o apoiam e o protegem.

Durkheim pontua que para existir o bem-estar e a felicidade do indivíduo, é necessário um equilíbrio que precisa existir entre suas exigências, expectativas e os meios socialmente acordados. Sem esse equilíbrio, os indivíduos passam a se desarmonizar e apresentar insatisfação na vida social. A realidade na qual nos deparamos mostra que existe uma separação de quem deve ser cuidado ou não dentro da igreja. Quem possui características e uma sexualidade considerada correta para a moral cristã e que se submete a uma espécie de controle moral do comportamento recebe uma legitimidade para esse cuidado. Mas e quem não? O que tem sido feito? 

Salzman e Lawler9 propõem uma revisão da homossexualidade, expondo que a orientação homossexual não se constitui tão diferentemente da orientação heterossexual. Assim, não há justificativas para ser classificada como imoral. A orientação sexual não é uma questão de escolha, não sendo passível de modificação, ela simplesmente é. Logo, ela não pode ser descrita como moral, nem imoral. “Cada nova geração é educada pela que precede; é preciso, pois, que esta última se corrija para corrigir a que segue. Giramos em círculo.”10 

Notas:

1. LUGONES, María. Colonialidade e gênero. Tabula Rasa. Bogotá.Nº 9: 73-101, jul-dez,2008. Disponível em: https://www.revistatabularasa.org/numero-9/05lugones.pdf.

2. MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2010.

3. Ibidem, p. 29.

4. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976), (trad. de Maria Ermantina Galvão). São Paulo: Martins Fontes, 2000.

5. DANNER, Fernando. O sentido da biopolítica em Michel Foucault. 2010. Disponível em: http://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistaestudosfilosoficos/art9-rev4.pdf.

6. BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo. O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: 2000.

7. FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

8. BUSIN, Valéria Melki. Homossexualidade, religião e gênero: a influência do catolicismo na construção da auto-imagem de gays e lésbicas. 2008. 187 f. Dissertação (Mestrado em Ciencias da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.

9. SALZMAN, T. A.; LAWLER, M. G. A pessoal sexual – Por uma antropologia católica renovada. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2012.

10. DURKHEIM, E. O suicídio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.