No Brasil, a chamada “teologia do domínio” é rótulo externo, não formulação interna; o que há são pastores como empreendedores e crentes buscando sentido em meio à precariedade


De tempos em tempos, um termo na mídia se torna comum sem que se saiba ao certo quem foi seu conceituador. Embora na maioria das vezes seja possível mapear o primeiro escrito que o utilizou e sua aparição na mídia, essa curiosidade histórica revela pouco sobre o conceito que se tornou comum na definição de uma coisa. Quando se trata de religião no Brasil, tudo é definido a partir da “teologia”. Então, todo o movimento religioso, com suas próprias formas organizacionais, os trabalhos com e dos seus crentes, as relações de poder internas a essas mesmas e seus trabalhos com os não convertidos, tudo fica subordinado à sua “teologia”.

Não há um bom pensador que tenha lido qualquer coisa sobre o Brasil entre os anos 1990 e 2000 que não tenha se deparado, em alguma página, com o termo “teologia da prosperidade”. É claro que esse conceito ganhou tração porque falava de um fenômeno que era instigante ou inquietante: a relação entre pastores e dinheiro nas igrejas. Já que não têm nada, esses pobres acreditam em qualquer coisa que os ajude a seguir vivos. O termo nasce daqueles que não se identificam com a fé que se quer explicar, e suas miradas são quase sempre em vias de uma crítica moral aos pastores “dominadores” e aos crentes “enganados”. A questão é, então, de teologia: eles acreditam nisso que está errado. E aí está o primeiro nó da nossa situação: a tal teologia da prosperidade se tratava de uma coisa dita por pastores, e não prescrita por teólogos. Pode-se dar todas as voltas em qualquer livraria evangélica no Brasil, e você nunca vai encontrar um teólogo que se defenda enquanto teólogo da prosperidade. Uma prática pastoral, portanto, e não uma teologia stricto sensu. Curioso que, já no período, até mesmo os laicos faziam teologia ao se contrapor aos pastores da prosperidade, definindo como deveria ser a real leitura dos textos dos evangelho, sempre em contraponto ao que essa teologia da prosperidade pregaria. 

Nos meandros das ciências sociais, as coisas foram ganhando outros tons, e o mais comum foi nomear aquela nova forma de pentecostalismo como neopentecostalismo. Mas o senso comum midiático, que nunca deixou de conduzir certa forma de ver a realidade nacional, ficou com a teologia da prosperidade, e sobre esse termo se traduzia toda a indignação contra aquilo que se via como uma máquina de roubar pobres. Mas, ao mesmo tempo, já se demonstrava a presença de um novo sujeito na cena nacional, que era caricaturizado e também recebia as mais variadas críticas teológicas, sejam de laicos ou religiosos. Todos tinham sua opinião sobre aquilo que, se perguntado aos seus próprios sujeitos, nem existia. Segundo esses críticos, a explicação era sempre a influência das igrejas norte-americanas no Brasil, e a força delas por aqui era resultado da capacidade de enganação dos malvados líderes ladrões. O termo simples, então, definia uma questão complexa. Os profundos processos de reorganização da fé cristã no Brasil que se passaram entre os anos 1980 e 2000 começaram a ser figurados por aí. As igrejas eram definidas por sua teologia.

Com o passar dos anos, sobretudo a partir de 2016, e o pleno envolvimento dos mesmos sujeitos pastorais que tinham sido nomeados de ladrões com o que havia de pior na política brasileira — a recém-nascida extrema direita —, estes líderes não só teriam a intenção de roubar os pobres, mas de tomar o poder. Essa variação foi explicada com a tradução de mais um termo do inglês americano: teologia do domínio. Nas resumidas palavras de Leonardo Boff, um dos últimos refutadores desta teologia: “Está sendo discutido entre analistas políticos a passagem, no seio de grupos neopentecostais, em grande parte bolsonaristas, da teologia da prosperidade para a teologia do domínio”. Agora o problema não é mais o discurso da prosperidade material, mas do “dominionismo”, que teria sido adotado pelos pastores malvados, influenciados por um movimento teológico que nasceu nos EUA nos anos 1970.

Aí nosso caldo engrossa, porque aqui sim é possível referenciar teólogos profissionais que teriam se imbuído de produzir uma teologia para defender a fundação da organização social do Estado nas crenças cristãs. E seu grande teólogo protestante seria Rousas John Rushdoony (1916-2001). É claro que, levando a sério essa afirmação, seria preciso retomar a tradição sobre a qual Rushdoony se desdobra para sua própria contribuição. É o que o cientista da religião Samuel Araújo tenta fazer em seus últimos ensaios.1 Essa coisa que se está chamando de teologia do domínio tem sua origem na revisão do calvinismo que foi feita na Holanda do século 19, o que se naturalizou chamar de neocalvinismo. Deste modo, a ideia de que se trata de uma novidade dos anos 1970-1980 não passa de uma resposta fácil dos que veem de fora.

O argumento é que essa produção teológica formou um modo de ser cristão aqui pelo Brasil. Seria de se esperar, é claro, que os autores dessa tradição — tanto os clássicos calvinistas quanto suas modulações estadunidenses — fossem livros com grande dispersão nas igrejas. Mas não é o caso. Se as livrarias evangélicas são das poucas que seguem sobrevivendo, especialmente em bairros periféricos e cidades pequenas, isso não tem nada a ver com a venda de obras de autores que poderiam ser categorizados como teólogos dominionistas. Os livros de Rushdoony foram, em sua maioria, publicados pela Editora Monergismos. Esta empresa, que é especializada em textos calvinistas ultraconservadores, não é nenhuma das grandes editoras que dão substância ao concorrido mercado editorial gospel. A coisa não é diferente com os textos dos pais do neocalvinismo.2 De modo geral, essas referências são quase desconhecidas no campo evangélico.

Voltando aos termos precisos do nosso cientista da religião, Samuel Araújo3, analisando a presença do neocalvinismo no evangelicalismo brasileiro, embora não se possa afirmar uma filiação direta aos grandes nomes do neocalvinismo, sua mensagem encarna, de forma sintomática, três traços fundamentais do calvinismo difuso: a exigência de um controle dos afetos, a convicção de que a fé deve produzir efeitos concretos na ordem social e a crença em um destino universal guiado pela providência divina. Esses elementos, uma vez aclimatados ao contexto brasileiro, perdem a rigidez doutrinária e ganham capilaridade ao circular entre protestantes históricos e pentecostais. É nesse trânsito que o calvinismo se difunde — no duplo sentido de se expandir e se dissolver — como linguagem compartilhada por uma comunidade evangélica que projeta sobre o país o sonho de um grande avivamento redentor. Mas não são as ideias calvinistas que formam o campo evangélico; este campo é que as acessou como arquivo para dar sustentação a seu projeto de redenção nacional, já que não existia gramática para isso na tradição pentecostal. Mas a imaginação dos que veem de fora reduz tudo a uma teologia do domínio. 

Toda essa figuração ilustrada se torna obra cinematográfica no recém-lançado Apocalipse nos Trópicos (2025), de Petra Costa. Não por acaso, o filme transita entre Brasília e a casa de Silas Malafaia, que seria o grande organizador dessa orquestra que é a relação entre a extrema direita e os evangélicos. Os evangélicos têm voz no documentário em duas ocasiões, ambas por meio de mulheres. A primeira diz que queria se matar e acabar com o sofrimento. Estava recebendo a visita de um pastor e de algumas irmãs, que tentavam ajudá-la, dizendo palavras de fortalecimento e, sobretudo, orando com ela. Trata-se da relação comunitária, propriamente formadora desse Brasil evangélico, mas que ganha poucos minutos no documentário e logo é apresentada como sobredeterminada por lideranças. É aí que nosso influenciador, Malafaia, entra de verdade no filme. Essas evangélicas desaparecem por quase uma hora, até que, no transcurso explicativo da cineasta sobre como a extrema direita venceu a eleição, surge a grande tese: fake news. Então voltamos a escutar a voz de uma brasileira cuja casa revela que vive em uma zona de tensão. Ela diz que não vai mais votar em Lula porque soube que ele era candomblecista — uma mentira, já que ele se identifica como católico. São nesses menos de oito minutos de tela que escutamos a voz de um evangélico que não é líder, político ou qualquer figura de destaque. Como nas figurações literárias, a imaginação cinematográfica da nossa esquerda ilustrada deu toda a voz às lideranças e acreditou nelas, acreditou em sua própria ilusão de influência. Os evangélicos que lotam as igrejas e dão relevância a esses líderes, por outro lado, não têm voz nem vez, aparecendo apenas como sofridos e enganados. E tudo é culpa da teologia do domínio.

No já citado artigo de Leonardo Boff, com pouco mais de mil palavras, pretende-se refutar essa teologia. É, no mínimo, curioso que ele não se deu ao trabalho de citar uma referência direta dos tais teólogos que quer criticar. A argumentação básica de seu texto está em uma suposta leitura feita por esses dominionistas de Gênesis 1.26-29:

Então disse Deus: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão.” 

É claro, ele não diz que autor usa este verso, ou em que página. Uma afirmação generalista que demonstra desdém pelo adversário que julga destruir. Ao que parece, um mero grupo de desentendidos que poderiam ser argumentativamente refutados com uma bela leitura do texto bíblico, fazendo a mais atual exegese do momento. Uma vez explicado o desengano dominionista e demonstrado que, na verdade, o texto bíblico diria outra coisa, vem a chave da refutação: “As expressões ‘subjugar’ e ‘dominar’ devem ser entendidas, simplesmente, como ‘cultivar e cuidar’.” Está posto o terreno para demonstrar a falsidade dessa fé: “Essa análise, à base do hebraico, é decisiva para tirar o tapete de uma interpretação, fora do tempo, fundamentalista, a serviço de um sentido político, totalitário e excludente de domínio sobre os povos e a Terra, como sendo o projeto de Deus. Nada mais distorcido e falso.”

Feita a crítica categorial, estão destruídas as razões para acreditar nessa fé. Ao menos parece ser isso que ele entende: essa coisa chamada teologia do domínio é uma arquitetura teórica sobre a qual o crente vai produzir sua vida, e, tendo visto o erro da sua base bíblica, ele entraria numa crise de fé que o levaria a crer de outro modo, adotando assim uma visão política diferente.

O movimento argumentativo de Boff está fundamentado, mesmo sem citação direta, em João Cezar de Castro Rocha, que explicou o dominionismo exatamente a partir do versículo bíblico citado pelo teólogo. Para o professor de literatura citado indiretamente, todos os nomes evangélicos da cena pública brasileira — como Michele Bolsonaro, Silas Malafaia, Nikolas Ferreira e Damares Alves — são fiéis seguidores da tal teologia do domínio. Tudo é resultado de uma má leitura do texto bíblico, sobretudo do Antigo Testamento; para derrubá-la, basta uma leitura do hebraico bíblico a partir das produções teológicas acadêmicas contemporâneas. Voltamos, desse modo, à já citada conceituação de um tipo de imaginação religiosa como uma teologia, que teria o papel de sobredeterminar a própria ação dos sujeitos.

Nada de novo na história das ideias do nosso teólogo, que desde os anos 1970 já operava nessa inversão que dá primazia ao conteúdo teológico em relação à experiência de fé. Outros teólogos, como Hugo Assmann e Juan Luis Segundo, sabiam muito bem que a experiência religiosa popular não é resultado de uma afirmação dogmática autoritativa, mas do gesto fundamental da fé: a postulação de uma razão teológica que organiza a vida sensível daquele que crê. Esta descoberta refere-se justamente ao mecanismo de consolidação da teologia da libertação (TdL): sob as formas da própria politização que crescia na América Latina, os cristãos reorganizaram sua própria rede gramatical de sentidos, revisitando os signos da tradição cristã e preenchendo-os com novos significados que mantinham uma ligação interna com a própria vida vivida.  

As camadas populares, justamente por estarem à margem, não cessam de buscar caminhos; tentam dar forma a uma esperança marcada pela urgência e pelo desespero. A partir de uma condição marcada pelo abandono e pela exclusão, tentam vislumbrar algum espaço onde seu “não-ser”, socialmente construído, possa encontrar uma mínima possibilidade de afirmação. Lutam para permanecer vivas e alimentar a esperança, mesmo cercadas por dinâmicas de morte que invadiram seu cotidiano.

É no dia a dia marcado pela luta por sobreviver e por viver plenamente que se ultrapassa a simples demanda por bens materiais — ainda que estes lhes sejam constantemente negados. A existência negada se transforma então em ponto de partida para um movimento: um clamor por reconhecimento, por espaço e voz, tanto na igreja quanto na sociedade. A passagem da negação da vida para sua afirmação possível se realiza como uma travessia histórica, onde a matéria da luta se mistura com a dimensão do sagrado. Não se pode dissociar a resistência concreta pela vida da experiência do mistério que a atravessa, germinando-a de sentido. E é exatamente naquilo que põe em prática e anuncia a mensagem da fé, igreja concreta, que se torna possível sonhar com uma igreja abstrata, seu motor interno, sendo a própria feitura das experiências de esperança a mediação entre a vida cotidiana e as figurações do sagrado. As mudanças entre esses dois pontos são vistas, é claro, em novas formas que essa mediação vai assumir, só sendo possível discernir essa mediação enquanto se vê nela o reflexo da vida negada como anúncio da sua positivação em esperança. 

Na travessia entre a TdL e o movimento evangélico, o fio que as costura é o chão da vivência popular, onde a fé, em sua urgência, organiza sentidos e ergue esperança. A distinção está no modo como essa vivência se reorganiza individualmente na virada dos anos 1980, marcada por uma destituição do sentido comum. Cada um por si e Deus por todos. Com a virada de tempo, marcada pelo “salve-se quem puder”, aquele horizonte produzido pelo próprio ato de organização popular se desmancha. Torna-se mais crível ver-se enquanto lutador de si:

Me pergunto: é possível escapar de uma reconsideração séria e profunda da imagem de Deus que apoia esse tipo de micro-histórias individuais de salvação? Esse Deus-coringa simula a história, mas induz a negar a história social coletiva. Faz o jogo ideológico do poder dominador e ampara esse poder na medida em que sempre é “possível” sua intervenção solucionadora dos problemas. A TdL pretende revelar a lógica das funções alienantes atribuídas a esse Deus, mas desmascará-lo fará tremer as colunas das catedrais e de todas as estruturas de poder fetichizado. Querer acabar com esse Deus interventor é um atentado muito forte, não só para o poder dominador. É querer acabar com todo o circo das simulações enganosas. Pedir aos pobres que saltem diretamente para esperanças históricas e coletivas é, talvez, pedir demais. A TdL trabalha com uma demanda dura demais para os deslocados, desalojados, excluídos. Os fundamentalistas são mais realistas: respeitam o senso comum dos inseguros individualizados, dando segurança individualizada, mostrando um caminho fácil para o quase impossível (mas que é tudo para os desesperados), condenando a esperança impossível que quebraria o senso comum dos marginalizados. Existe uma coerência na lógica fundamentalista que trabalha sobre as microssintonias disponíveis com o senso comum do pobre oprimido enquanto indivíduo.4

É claro que as pontuações de Assmann apresentam um programa que ele mesmo não seguirá a cumprir, seja lá por quais razões. É voltando para esse autor, trabalho que fiz no meu mestrado, que encontramos uma referência formativa de uma reflexão sobre religião propriamente latino-americana, e quiçá brasileira. Um modo de dar prosseguimento ao impulso crítico que nasce na TdL sem perder aquilo que lhe era mais relevante, a sua vinculação interior com a vida realizada das classes populares, e não com as variações críticas que dela se poderiam desprender academicamente. Não por acaso, entre os primeiros teólogos que começaram a falar da TdL, estavam sacerdotes engajados, ligados à vida do povo sobre o qual eles pensavam sua fé, produzindo argumentos em sua defesa.

Na experiência evangélica que hoje se coaduna com o que há de pior na política nacional, não se eleva uma reflexão à consciência de si, mesmo que alguns de seus pastores atuem como teólogos orgânicos. Empreendedores da fé que refletem a própria fé no empreendimento individual, esperança da ontologia neoliberal.5 É mais bonito e talvez cativante pensar as saídas desse lamaçal. Se lembrarmos que essas figurações têm sua raiz na própria prática, não é nenhuma formulação crítica que vai transformar os rumos do monstro. Talvez esteja aí o lugar da teologia enquanto experimento interpretativo, que não aceita nenhuma saída proscrita do alto do escritório acadêmico, mas que tenha sua própria forma de reflexão organizada pela experiência de fé dos esquecidos, mesmo que ela se contorne em fascismo, não para validá-la, mas para entendê-la. Elevar o texto teológico à altura do seu tempo histórico a partir dos significados que se solidificaram na linguagem dos testemunhos da fé, mesmo que isso signifique detalhar a variação de verbos que dizem a mesma coisa: matar para ser proprietário.

Matança esta, literal ou espiritual, que se organiza sob a insígnia de uma guerra espiritual. E o crente deve levantar suas armas. Entre o arsenal que eles professam carregar, talvez a que mais lhe seja cara é a Bíblia.  Cresci aprendendo que a Bíblia é um livro vivo. E não só isso: ela é a palavra fiel, necessária e completa de Deus para os seus. “Vocês têm certeza de que acreditam fielmente na inerrância e literalidade da Bíblia? Sem essa certeza não há fé cristã”, me dizia uma professora da Escola Bíblica Dominical (EBD). 

Sempre me dava preguiça ir para o culto no domingo de manhã. Para os batistas, a EBD é no domingo; no caso da igreja em que cresci, era antes do culto, o que me fazia ter que despertar mais cedo. Não foram poucas as vezes em que, obrigado, fui ainda dormindo, só com as roupas que eram socialmente recomendadas para a igreja: calça, camisa e tênis. Ao chegar na sala, encontrava pessoas da minha faixa etária — afinal, as aulas eram pensadas especificamente para os grupos que fazem parte da igreja. Crianças em salas com crianças escutando as “verdades bíblicas” numa pedagogia para os pequenos; no caso dos adolescentes, que sempre recebiam a formação mais atual, as revistas que guiavam as aulas sempre tocavam naquilo que se presumia serem temas atuais: ateísmo, sexo fora/antes do casamento, homossexualidade, criacionismo e afins. Todos esses temas, é claro, sendo interpretados “a partir da Bíblia”. 

Era aí que o texto era vivo; ele respondia tudo. Não havia nada que não pudesse ser respondido com uma leitura piedosa e cuidadosa da Palavra. E os meus companheiros de aula sempre tinham grandes exemplos disso: o mesmo texto bíblico falou duas coisas diferentes em dois momentos diferentes para a mesma pessoa. É claro que isso aconteceu devido ao que se passava no interior da pessoa que lia o texto em busca de respostas para os dilemas da sua vida; ela fazia conexões dos signos do texto com os significantes da sua vida, iluminando-a com aquilo que nele lhe parecia ser orientado. Mudando-se os próprios anseios e questões, a luz que o texto oferece também parece mudar de cor. A devoção ao texto bíblico é a máquina de subjetivação evangélica.6 

Os moldes de interpretação que o sujeito vai levar ao texto são informados pela tradição de fé da qual ele participa, mas é na sua “vida devocional” que as formulações teológicas propostas por essa tradição serão revistas, analisadas e aplicadas à sua própria história. O texto é o mediador que dá validade à tradição; mas se é o texto que dá sustentação argumentativa à tradição, esta é crível ou não no nível da sua capacidade de contornar os rumos daquilo que se organiza na vida sensível. É a tradição de fé que dá os contornos da imaginação religiosa, mas é lendo o texto bíblico que o sujeito vai dar corpo a essa tradição com sua vida. A conversão, que não deixa de ser uma tomada de posição em relação a essa forma de organizar sentido dentro da tradição de fé — sendo cada tradição de fé uma forma própria de proferir essa organização de sentido de totalidade —, ao mesmo tempo não está dissociada do próprio conteúdo da imaginação religiosa em si. 

Por isso se anda com a Bíblia debaixo do braço e se cita versículo bíblico para defender um argumento; o que se cita ao falar de um texto bíblico não é o texto em si, mas a forma própria de organizar esses símbolos, chamados de Palavra de Deus, dentro do universo de significados da vida concreta daqueles que dão tudo o que têm e são para que algo aconteça no virar da esquina, sendo esse acontecer nomeado com algum versículo bíblico: redenção. Esta nunca deixou de ser o nosso objeto, mas agora revela em si mesma a contradição fundamental relegada a nós por essa forma social fetichista: redenção de si e destruição do mundo, último capítulo daquele ato despótico originário.

Mas não sem ver no seu próprio ato a chama acesa da transformação do mundo. Se a fé é a postulação de uma imaginação religiosa na qual a experiência do crente constrói sentido, situando sua vida dentro dessa própria estruturação teológica e teleológica, essa formação de sentido se dá concretamente dentro de instituições que foram criadas e são geridas por pastores.  A senha do cofre fica facilmente discernível quando vemos com atenção a forma organizativa das Assembleias de Deus no Brasil, que, como muito bem demonstram Gedeon Alencar7 e Marina Correa8, são propriamente brasileiras. E sua brasilidade, ou a acepção brasileira do termo na formulação clara da Tradição Crítica Brasileira, está na figura do pastor-presidente, conforme deixam claro os próprios cientistas da religião supracitados. A coisa é tão séria que, nas teses de doutorado dos dois pesquisadores, faltam palavras. As referências clássicas a modos organizativos da igreja são insuficientes. Alencar apela à ironia e usa o termo “episcopalismo eterno”. 

É claro que a definição conceitual tem segunda relevância face à própria descrição do objeto, mas a falta de gramática teórica para gerenciar a interpretação dessa forma organizativa demonstra a particularidade da coisa. E o que estes trabalhos também demonstram é que o assembleianismo é a matriz do pentecostalismo brasileiro. O que a figura do pastor-presidente guarda é um modo de gerir uma igreja que, na verdade, é um empreendimento. No mais radical sentido da palavra: uma tentativa de se fazer algo a partir daquilo que se tem. No caso, quem faz esse algo chamado igreja é o pastor. É o pastor que vai na frente e abre a congregação, sem nenhuma garantia de que aquilo vai funcionar. Uma aposta, de fato, mas que se nutre de uma tentativa de criar algo que parte do próprio sujeito pastor. Se foi ele que empreendeu a formação da igreja, também é ele que vai ter tudo em suas mãos. Não é nenhuma novidade sociológica afirmar a centralidade que a figura do pastor tem na experiência de fé evangélica brasileira. Mas talvez não se tenha visto mais propriamente que estava exatamente nesse empreendimento pastoral a raiz da proliferação ad infinitum das igrejas pentecostais nas periferias.

Não importa que seja uma pentecostal autônoma ou filial de um grande ministério; de todo modo, a forma de gestão da igreja vai ser centralizada no pastor. E o fiel, ao se converter — ou seja, ao fazer sua própria constituição daquela imaginação religiosa — vai fazê-lo tendo como mediação essa organização institucional. Convertido à racionalidade teológica da empresa eclesial, ele encontra nela, e, no caso brasileiro, no pastor, a mediação que faz daquela ideia, que lhe brilha aos olhos, direções práticas e efetivas para sua vida. Forma-se um compromisso, que também é um acerto de contas sob a submissão que o fiel vai ter à autoridade pastoral, ao mesmo tempo em que essa autoridade se dispõe a se dedicar o máximo que pode para que sua ovelha siga os passos sobre os quais sua mensagem dominical anuncia. E aí está aquela imagem luminosa que faz a fé do crente ver sua própria efetivação sócio-histórica no empreendimento pastoral que comentamos acima. As opções que o pastor-empreendedor decide para o bem do seu projeto, então, se tornam parte da própria produção de esperança para o fiel. Tudo isso, é claro, embalado em uma identidade muito bem definida: crente, que é o nome que os que estão fora dessa comunidade imaginada dão para aqueles que se entendem enquanto pertencentes à igreja. Igreja que, dentro das figurações da razão teológica cristã, sempre está em guerra contra o mundo. Se na experiência evangélica brasileira o conflito entre igreja e mundo se converteu em uma guerra política, é porque essa comunidade de fé, gerenciada por seus líderes, forjou uma imagem de Brasil pela qual vale a pena lutar. Para quem busca compreender a nação que emerge desse projeto, não mais sob a égide do desenvolvimento, mas da normalização do “salve-se quem puder”, a matéria não está em alguma teologia abstrata. Ela reside no mundaréu de produtos culturais que a cultura gospel oferece, pois é ali, naquilo que esses brasileiros falam, cantam e vivem, que sua imaginação religiosa se decanta. Crítica teológica imanente.9

Notas:

1. Referencio dois de seus textos, dois que estão em J. D.Passos (Org) Teologia do Domínio e Usos de Deus na Política (São Paulo: Ideias e Letras, 2025). “Ameaça fantasma: vetores formativos para teologias de domínio contemporâneas”; “O ataque dos clones: expansões e transformações nas teologias de domínio”. Nos textos ele apresenta uma considerável genealogia do dominionismo e suas variações com o passar do tempo, sobretudo no que tange a experiência norte-americana.

2. Vide as publicações de Abraham Kuyper e Herman Dooyeweerd, considerados peças chave no pensamento neocalvinista que vão abrir as chaves para o dominionismo americano. No Brasil, somente uma obra de Kuyper foi publicada por grandes editoras, mas sempre obras laterais. No que concerne ao fundamental da teologia de ambos segue sem tradução.

3. Samuel Araújo, “Calvinismo mínimo evangélico Brasileiro”. in: João Marcos Duarte; André Castro; Jayder Roger (org.), O Apocalipse na acepção brasileira do termo: formação do movimento evangélico (São Paulo: Autonomia Literária, no prelo).

4. Hugo Assmann, La Iglesia electrónica y su impacto en América Latina (San José, DEI, 1987), p. 87. 

5. Douglas Barros, O que é identitarismo? (São Paulo: Boitempo, 2024).

6. Essa formulação não seria possível sem as conversas e debates com Samuel Araújo em torno da sua tese de doutorado na PUC-SP em Ciências da Religião, que ainda está sendo escrita, mas que já rendeu diversas novidades sobre a forma de pensar o lugar da religião na produção de subjetividades.

7. Gedeon Freire de Alencar, Assembleias brasileiras de Deus: teorização, história e tipologia – 1911-2011 (PUC-SP: Tese de doutorado, 2012).

8. Marina A. O. S. Correa, A operação do carisma e o exercício do poder: a lógica dos ministérios das igrejas das Assembleias de Deus no Brasil (PUC-SP: Tese de doutorado, 2012).

9. Agradeço a Jayder Roger, João Marcos Duartes, Ruan Gomes e Samuel Araújo pela leitura cuidadosa e comentários preciosos para que o texto se elevasse ao modo que está agora. Além, é claro, da sempre precisa revisão do editor desta revista, André Kanasiro.