A submissão das mulheres em Agostinho e no complementarismo faz parte de uma ideologia que diviniza uma ordem social tipicamente imperial, em que os homens se mantêm em posições de autoridade e privilégio
Parte 1 da série “Carne da minha carne: uma crítica à ideologia complementarista”
“Garota Cigana”, mosaico romano ca. século III aEC (Montagem: Caio peres)
O complementarismo é uma doutrina que só pode ser ensinada e aceita num contexto patriarcal1 e misógino. É uma afirmação forte, eu sei. Minha intenção aqui é explicar a relação entre complementarismo, patriarcado e misoginia a partir de fundamentos filosóficos, teológicos e ideológicos. Aos que discordam da minha afirmação, por favor, tenham paciência e tentem entender a lógica que vou apresentar. Aos que concordam com minha afirmação, por favor, não se animem demais a ponto de perder o fundamento argumentativo que vou apresentar.
Já aos que não sabem do se trata o assunto, eu desejaria que você permanecesse na ignorância. No entanto, como às vezes erramos exatamente por não termos consciência do que estamos fazendo, do que cremos e por quê, vou explicar rapidamente. Complementarismo é uma doutrina a respeito do ser humano e sua relação entre gêneros, definidos de forma binária, homem e mulher, como resposta de um grupo evangélico estadunidense específico contra o “feminismo evangélico”. A definição básica, dada pelos responsáveis por essa doutrina, é a seguinte: “Ambos, Adão e Eva, foram criados à imagem de Deus, iguais diante de Deus como pessoas e distintas em sua masculinidade e feminilidade… Distinções em papeis masculinos e femininos são ordenados por Deus como parte da ordem criada, e deveriam encontrar ressonância em cada coração humano.”
A parte que falta nessa definição é a explicação da relação entre essas distinções de gênero e de papeis. Daí a importância do termo “complementarismo”, ou seja, a relação entre essas distinções é uma relação complementar. De acordo com o grupo que cunhou o termo, este foi fundamentado na palavra hebraica neged (“lado”, “frente/ oposto”) que aparece em Gênesis 2.18 numa forma composta como kenegdo (lit. “conforme o seu lado/ oposto”) quando Deus caracteriza sua nova criatura, a mulher, como “uma ajudadora que lhe seja adequada” (versão Almeida 21). O que também não é explicitado nessa definição da doutrina e do termo, por parte dos seus proponentes, é que nessa relação complementar, existe uma hierarquia que define a relação da mulher com o homem a partir da submissão. A submissão da mulher é uma caracterização básica do complementarismo em todas as suas versões, algo que pode ser comprovado ao se abrir qualquer material complementarista.2
Antes de mais nada, quero apresentar duas qualificações. Primeiro, o complementarismo, em sua elaboração sistemática, é um movimento evangélico historicamente recente e sociologicamente limitado. Trata-se de uma elaboração teológica contextualmente definida por um pressuposto histórico, sociológico e ideológico a respeito de movimentos intragrupo que são entendidos como feministas. Isso quer dizer que o complementarismo não pode reivindicar ser uma doutrina que representa alguma ortodoxia cristã histórica para além desse pequeno e limitado grupo de evangélicos estadunidenses. Sim, existem elementos de certas realidades históricas refletidas no material bíblico3 e de certos cristianismos históricos que vieram a compor o complementarismo. Mas isso não define esses elementos como complementarismo. Para tanto, seria necessária uma elaboração teológica sistemática e contextualizada sobre o ser humano e a relação entre os gêneros, definida de forma binária e em resposta a algo chamado de “feminismo evangélico”, que simplesmente não existe na história do cristianismo fora do contexto evangélico estadunidense do fim de 1980. Mesmo considerando grupos atuais que ensinam, defendem e vivem em conformidade com elementos que compõem o complementarismo, não é possível defini-los como complementaristas de forma simplista. Por exemplo, a relação de gênero nos movimentos pentecostais históricos e neopentecostais têm certo alinhamento com o complementarismo, mas não pode ser definida como tal, dado seus contextos completamente diferentes daquele do complementarismo.
Segundo, o complementarismo, como qualquer coisa no evangelicalismo, não conseguiu se manter coeso. Hoje, basicamente, diferencia-se entre “complementarismo estreito” e “complementarismo amplo”. A diferença está no grau e no âmbito que definem as distinções e relação entre os gêneros. No complementarismo amplo, as distinções tendem a ser mais exacerbadas com relações mais desiguais/ opressivas de submissão e aplicáveis para todas as relações entre homens e mulheres em todos os âmbitos da convivência social. Já no complementarismo estreito, as distinções tendem a ser mais pontuais com relações mais mútuas e interdependentes, ainda preservando a submissão feminina, e aplicáveis somente ao âmbito do casamento e da igreja. Diferente do que pensam os ditos complementaristas estreitos, essa diferença não tem muita relevância quando a discussão é sobre os fundamentos teóricos do complementarismo, pois ambos compartilham dos mesmos fundamentos, especialmente de interpretações bíblicas.
Existe, é claro, uma importante diferença prática entre as duas posições, sendo o complementarismo estreito muito menos misógino e com práticas que se aproximam muito mais de uma perspectiva igualitária de mutualidade e interdependência. Aqui vale lembrar as pesquisas da escritora Sheila Gregoire. Ela afirma que muitos casais que afirmam aceitar o complementarismo vivem uma dinâmica familiar igualitarista.4 Com essa distinção, então, eu quero ainda dizer que minha afirmação sobre a relação entre complementarismo, patriarcado e misoginia não é uma afirmação de que todas as pessoas, inclusive pastores e teólogos, que aceitam, afirmam e ensinam o complementarismo são misóginos, muito menos que praticam atos de violência e abuso contra mulheres. Minha afirmação, porém, aponta para o fato de que o complementarismo depende de um contexto patriarcal e misógino para ser aceito, assim como promove e legitima, mesmo que indiretamente, experiências opressivas contra mulheres nesse contexto. O complementarista pode ser amoroso com sua esposa, respeitoso com as mulheres do seu convívio a ponto de defendê-las e protegê-las, e ainda assim contribuir com o patriarcado e a misoginia que colocam a vida de todas as mulheres em risco.
Divinização e absolutização de hierarquias: Agostinho e as mulheres
Talvez poucos exemplos que corroborem minha afirmação inicial e as duas qualificações que fiz seja tão preciso quanto o caso de Agostinho. Tomar o exemplo dele também vai ser muito útil para pensar sobre fundamentos filosóficos, teológicos e ideológicos que possam nos ajudar a evitar os erros tipicamente cometidos pelo complementarismo. Não será possível referenciar todas as citações e afirmações feitas a respeito de Agostinho aqui. Aos leitores que tiverem interesse de buscar as referências e aprofundar o estudo a partir das obras do próprio Agostinho, sugiro a obra Veiled Desire: Augustine’s Writing on Women, escrita por Kim Power, publicada em 1995.
A perspectiva de Agostinho é até bem conhecida entre aqueles que estudam teologia e questão de gênero. Geralmente, são dados exemplos claros de misoginia da parte de Agostinho em que a sexualidade feminina é associada com concupiscência e que o feminino não se iguala em valor, função e propósito ao masculino (De Opere Monachorum 32, 40). Aqui, uma afirmação famosa de Agostinho é que a criação de Eva, uma mulher, para ser a companhia de Adão, um homem, só pode ser explicada pela sua capacidade reprodutiva, porque para todos os outros propósitos o homem seria uma companhia melhor para outro homem do que uma mulher (De Genesi Litteram, 9.5). A amizade que contribui para se alcançar a Verdade, está somente na amizade entre dois homens. O feminino é um mal necessário para as questões reprodutivas, mas é no masculino que todas as virtudes se encontram, sendo o feminino uma forma inferior ou deformada do masculino. Isso pode ser visto em como Agostinho define a relação do homem com a mente e o feminino com a paixão carnal. Ou mesmo quando relaciona o feminino com o conhecimento (scientia), mas a submete a um papel auxiliar a algo mais elevado, a sabedoria (sapientia), que é uma virtude masculina (De Trinitate 12, 13, 21). O ponto de partida da perspectiva de Agostinho sobre as mulheres é o homem. A mulher é tentação e concupiscência para o homem, ela pode atrapalhar ou ajudar ao homem, ela é necessária para o processo reprodutivo do homem.
Os exemplos de misoginia por parte de Agostinho poderiam ser multiplicados, mas acredito que os casos acima representam bem o cerne da sua perspectiva sobre as mulheres. É necessário, porém, pensar em fundamentos filosóficos, teológicos e ideológicos que o levaram a tal perspectiva. E é aqui que podemos começar a ver a relevância de Agostinho como um modelo do que se vê no complementarismo. Agostinho faz uma importante distinção sobre a relação dos gêneros entre si a partir da relação deles com Deus. Agostinho aceita que a mulher, como ser humano (homo), seja feita à imagem de Deus, porém como um ser sexualmente biológico (femina), ela não é. De uma perspectiva eterna, em sua relação com Deus, a mulher é igual ao homem; no entanto, em sua existência temporal, em relação ao homem, ela não é. Essa é uma distinção bastante semelhante ao que temos na definição de complementarismo que vimos acima, em que homens e mulheres são iguais diante de Deus como pessoas e distintas em sua masculinidade e feminilidade.
Agostinho, como bom platonista, separa a realidade histórica e material da experiência humana, de uma realidade eterna e espiritual/ essencial. A mulher carrega algo do divino enquanto em sua “essência” como ser humano à imagem de Deus. No entanto, em sua materialidade sexual biológica ela não carrega essa essência. Isso até poderia ser uma teologia platonista ascética, do tipo de um grupo sectário cristão do segundo século chamado encratismo. Mas não é o caso, porque Agostinho nunca faz as mesmas afirmações a respeito da “essência” dos homens e da sua materialidade sexual biológica. Na verdade, Agostinho usa essa diferenciação entre mulheres e homens como explicação do motivo de somente o homem ter sido chamado de imagem e glória de Deus em 1Coríntios 11.2-16. Essa é uma leitura completamente equivocada do texto bíblico, como quero mostrar num futuro post.
A diferenciação que Agostinho faz das mulheres em sua “essência”, ou sua identidade eterna, e sua biologia, ou sua identidade temporal, é muito relevante para pensar sobre como muitos complementaristas projetam as relações de subordinação entre os gêneros para dentro da doutrina da Trindade.5 Este texto que escrevo foi motivado exatamente por esse tipo de fundamentação teológica em um post feito no Instagram de um ministério chamado Jesuscopy (que foi apagado depois de receber críticas e, de forma privada, uma das responsáveis reconheceu que o conteúdo do post tinha problemas, mas não disse quais).
Como pode ser visto na imagem, a “explicação” de um dos responsáveis pelo ministério é a negação do próprio conteúdo do post. Quando complementaristas fazem essa relação de submissão das mulheres aos homens a partir da subordinação de Deus Filho ao Deus Pai, eles buscam fugir de uma heresia cristã histórica “solucionada” no Concílio de Niceia, dizendo que a subordinação do Deus Filho não é eterna, mas temporal. Somente em sua existência terrena, como Jesus, o Deus Filho esteve subordinado ao Deus Pai. Esse argumento foi inclusive usado por alguns que quiseram defender o post do Jesuscopy mencionado acima. Essa é exatamente a manobra teológica de diferenciação entre o eterno e o temporal, ou o essencial e o material, que Agostinho usa para afirmar que a mulher é tanto feita à imagem de Deus quanto não. Vindo após o Concílio de Niceia, dificilmente Agostinho cairia no erro do subordinacionismo. No entanto, seu platonismo lhe dá o mesmo fundamento filosófico de distinção entre essência do real e experiência do real que foi usado por subordinacionistas, e que foi criticado no Concílio de Niceia, que negou essa distinção entre a existência terrena e eterna de Deus Filho. Assim, vemos como Agostinho usa um fundamento filosófico do seu tempo e estranho à tradição bíblica, e mesmo estranho a uma boa parte da tradição cristã ortodoxa, para expressar sua ideologia misógina e para interpretar o texto bíblico (1Coríntios 11). Será que esse também não é o caso do complementarismo com sua lógica de valor igual e papeis diferentes? Certamente é o caso, como veremos.
O fundamento filosófico por trás da teologia de Agostinho sobre a relação entre os gêneros tem a ver com a forma como ele aceita a ordem social do seu tempo e sua ideologia. O contexto sociopolítico greco-romano no qual Agostinho vivia, ainda que seu contexto geográfico fosse o norte da África, seguia uma estrutura ou ordem altamente hierarquizada e instrumentalizada. O que eu quero dizer com isso é que a sociedade greco-romana era ordenada de uma forma piramidal, tendo, obviamente, o imperador na ponta, e que cada membro da sociedade, em sua posição dentro dessa ordem, cumpria um papel em relação aos membros de baixo e os de cima da pirâmide. É isso que eu chamo de relações hierarquizadas e instrumentalizadas. Nessa sequência, o papel de cada indivíduo é manter a ordem, portanto, sua função tem a ver com a manutenção da autoridade e do poder do seu superior.
É claro que na sociedade greco-romana o homem estava acima da mulher, o livre estava acima do escravo, o romano estava acima do bárbaro etc. A instrumentalização das relações para manutenção do poder é inevitável em uma ordem hierarquizada, já que a ordem em si é entendida como o fundamento da existência e, na maioria das culturas, é entendida como refletindo a ordem divina. A relação entre ordem sociopolítica e ordem divina é um elemento básico na Antiguidade e permeia todas as culturas do antigo Oriente Próximo, por exemplo. Muitos dos mitos do antigo Oriente Próximo ou mesmo do Mediterrâneo antigo são projeções da realidade humana para a realidade divina. As relações entre os deuses, suas disputas, suas atividades, são todas reflexo da experiência humana. Em muitos casos, são formas de refletir sobre essa experiência, apresentar propostas ou ideais dessa experiência, muitas vezes, uma forma de legitimar com um fundamento religioso a experiência humana, especialmente a ordem das relações sociais. A mesma coisa acontece no complementarismo em que as distinções de papeis masculinos e femininos são qualificados como ordenados por Deus e parte da ordem criada. Como vamos ver, porém, a definição desses papeis sempre é preenchida por uma ordem social bem contextualizada, seja no antigo Oriente Próximo, no império romano de Agostinho, ou nos Estados Unidos do complementarismo.
Esse fenômeno de projeção das realidades humanas para a realidade divina é inevitável. O exercício teológico não passa da reflexão sobre a realidade material e histórica e seu uso para falar algo sobre Deus. Não existe outra forma de falar sobre Deus, fazer teologia e organizar a religião, que não seja dessa forma. Todos fazem isso. A questão não é essa. A questão é quais aspectos da realidade humana usamos para o exercício teológico e para fazer religião, quais os propósitos e os resultados desse exercício teológico e dessa religião? Quais os fundamentos filosóficos e ideológicos que servem essa teologia e religião? Quem se beneficia disso e quem se prejudica? Agostinho não somente aceitou essa ideologia de ordem hierarquizada e instrumentalizada para manutenção de um poder imperial cujo representante máximo era o imperador romano. Ao fazer teologia a partir disso, ele divinizou essa ordem. Isso tem implicações sérias não somente para as relações de gênero com sua característica misoginia, mas todas as outras relações desiguais. O platonismo de Agostinho coloca essa ordem social, essa realidade humana, para dentro da própria divindade. Eu vou explicar isso melhor.
Agostinho afirma:
Mesmo quando eu digo o que é verdadeiro, e ele [meu interlocutor] veja o que é verdadeiro, não sou eu quem ensino. Pois ele está sendo ensinado, não por minhas palavras, mas pelas próprias realidades que são manifestas a ele pela ação iluminadora de Deus internamente (O Mestre, 12.40).
Aqui nós temos claramente a conceitualização platônica da realidade não-material. A realidade é uma Ideia desvinculada da experiência material. A experiência material não é a “essência” da realidade, pois esta se encontra fora da matéria. Mas na teologia de Agostinho, essa “essência” é definida pela relação da realidade com Deus. Lembram da distinção das mulheres em sua identidade eterna e em sua identidade temporal? A distinção está em que a primeira identidade existe em relação a Deus e a segunda não. Agostinho internaliza a realidade. Mais ainda, ele internaliza a realidade na pessoa de Deus. A realidade existe dentro de Deus. Caso essa fosse uma questão abstrata e teórica sobre a realidade, não haveria implicações problemáticas. No entanto, como já vimos, a realidade, para Agostinho, se confunde com a ordem sociopolítica de seu tempo, uma ordem hierarquizada e instrumentalizada de manutenção do poder imperial. Como essa realidade existe na mente de Deus, ela é eterna, imutável, completa, nada pode mudar. No fim, o que existe é uma divinização e absolutização dessas relações desiguais, opressivas e misóginas. Ao separar o divino da realidade concreta material e estabelecer a realidade num aspecto internalizado do próprio Deus, Agostinho divinizou, absolutizou, uma única forma de experiência com a realidade, a realidade dele determinada pela ideologia imperial greco-romana. Não há diferença entre a teologia de Agostinho sobre as relações entre os gêneros e o complementarismo fundamentado na subordinação eterna do Deus Filho, ainda que na teologia de Agostinho ele negue essa subordinação eterna. Essa é uma teologia fatalista que favorece quem está nas posições superiores, contribuindo para a manutenção do seu poder e autoridade, e prejudica os que estão em posição inferior, sujeitos e subordinados, muitas vezes oprimidos e violentados por essa ordem hierarquizada e instrumentalizada.
Pensando nas relações de gênero, então, não há esperança para mulheres subordinadas, oprimidas, abusadas, violentadas, de lutarem por uma ordem que lhes favoreça em relação aos homens. Elas devem aceitar tal ordem como sendo a realidade última. Pior ainda, é uma teologia que ao distinguir entre a identidade eterna e a identidade temporal das mulheres a fim de afirmar seu valor ontológico diante de Deus como sendo igual ao valor ontológico dos homens diante de Deus, acaba por negar exatamente isso. É comum no complementarismo afirmar a igualdade de valor dos gêneros, mas negar que isso implique em igualdade de papeis. Muitos complementaristas veem nessa distinção uma prova de que o complementarismo não é opressivo para mulheres e não implica em submissão opressiva feminina.
Isso vale especialmente para quando essa relação distinta, mas complementar entre os papeis, é definida a partir de relações de amor, cuidado e proteção por parte dos homens e amor, respeito e submissão por parte das mulheres. No entanto, essa distinção, sempre preenchida por uma ordem social específica, firmada como uma realidade ontológica que define a identidade de homens e mulheres tem o seu reflexo nas relações de raça no famoso “igual, mas diferente”, que marca a ideologia segregacionista, profundamente religiosa, tipicamente evangélica, nos Estados Unidos em meados do século passado. Valores iguais e papeis diferentes, numa ordem sociopolítica hierarquizada e instrumentalizada, é uma forma de promover valores diferentes e relações opressivas.
Num contexto religioso fortemente platônico, com distinção entre o que é eterno/essencial e temporal/material, é estabelecer valores ontológicos, divinos e absolutos exatamente para os diferentes papeis entre os gêneros que é contextualmente determinado. Nesse caso, qualquer desvio dessa ordem social e dos papeis de gênero nela, que são entendidos como os papeis ontológicos de homens e mulheres, se torna um desvio da realidade divina. Mulheres que precisam trabalhar a fim de sustentar sua família se colocam contra essa realidade divina, contra Deus, porque estão saindo do papel ontológico da mulher em relação ao homem, um papel, obviamente, contextualmente definido. É por isso que minha afirmação inicial de que o complementarismo só é aceito e só funciona num contexto patriarcal e misógino tem fundamento e encontra em Agostinho um excelente modelo.
Quero ainda estabelecer mais um ponto de contato entre Agostinho e o complementarismo. Como eu disse no início, em uma das duas qualificações, nem todo complementarista é misógino e pratica atos de violência e abuso contra mulheres. A relação entre complementarismo, patriarcado e misoginia pode ser, como na maioria das vezes é, indireta, inconsciente, não intencional. Mais uma vez, Agostinho é o modelo. Uma das marcas da obra e da vida de Agostinho é sua relação com sua mãe, Mônica. Os elogios extravagantes que ele dedica a sua mãe são notáveis e confirmam que Agostinho reconhece a dependência que teve dela para se tornar quem se tornou, pensar o que pensou e escrever o que escreveu. A relação dele com sua mãe deveria ser caracterizada como uma relação de amizade que leva ao caminho da Verdade.
Como explicar essa relação de Agostinho com sua mãe e tudo o que ele fala sobre as mulheres? Acredito que a melhor opção aqui é que a relação de Agostinho com sua mãe era determinada não pelo gênero mas pela filiação, ou seja, a relação mãe-filho é superior à relação mulher-homem na experiência concreta de Agostinho. Isso já aponta para como, na experiência “material”, Agostinho não sustentou sua teologia “essencial”. No fim, lembrando que o exercício teológico é necessariamente uma projeção da realidade humana para a realidade divina, se Agostinho formulasse teologicamente as relações de gênero a partir da sua relação com sua mãe e não da ordem sociopolítica greco-romana, teríamos algo completamente diferente. Existem até lampejos dessa possibilidade em Agostinho. Ele afirma que na ressurreição o corpo das mulheres permanecerá feminino, uma forma de afirmar que a realidade última ainda contempla o feminino e que o feminino reflete algo da realidade última em Deus. Mas, como esses lampejos estão submetidos à filosofia platônica e à ideologia greco-romana imperial, fica fácil para Agostinho, um homem rico e de grande status, falar que a realidade histórica e material é transitória e deveríamos nos focar na realidade “eterna e essencial”. Essa realidade “eterna e essencial” não passa da realidade que favorece homens ricos e de grande status, ou seja, o próprio Agostinho. Mas, e as mulheres? Por que elas devem suportar essa realidade material e histórica e focar na realidade última? No fim, a teologia de Agostinho sobre a relação dos gêneros só pode ser aceita num contexto patriarcal e misógino, porque contribui para a promoção e preservação de relações opressivas que colocam as mulheres em risco, inclusive sua própria mãe.
Da mesma forma, pastores e teólogos complementaristas, estreitos ou amplos, que fundamentam seu complementarismo em relações de subordinação dentro da Trindade ou não, que amam suas mães, filhas, irmãs e outras mulheres a sua volta, só têm sua teologia aceita por causa de um contexto sociopolítico bem mais amplo que é patriarcal e misógino. Eles, querendo ou não, conscientes ou não, intencionalmente ou não, contribuem para a promoção e a preservação de relações opressivas contra as mulheres e que favorecem os homens, colocando a vida das mulheres que eles amam em risco. Mesmo que em suas relações diretas com mulheres haja de fato amor, cuidado e proteção, no fim eles promovem relações opressivas contra as mulheres. As recentes revelações de milhares de abusos, nos EUA e no Brasil, e de como eram acobertados em ambientes evangélicos complementaristas, são prova disso.
É por isso que não posso considerar nenhum complementarista como um aliado para a promoção da segurança e do bem-estar das mulheres. Não importa o quanto um complementarista escreva, faça ministério, dê cursos, sobre a responsabilidade dos homens de amar e cuidar das mulheres, o quanto se coloque como crítico de pastores, ministérios e instituições abusadores de mulheres. O compromisso final do complementarista não está com o bem das mulheres, mas sim com a sua própria doutrina de submissão feminina a partir da distinção complementar de papeis sociais. Se ele precisar escolher entre o bem das mulheres e o complementarismo, ele fica com o complementarismo. Não adianta mostrar o quanto o complementarismo é prejudicial para as mulheres e que sua aceitação depende do patriarcado e da misoginia prevalecente na maior parte dos contextos históricos e contemporâneos. Como o seu compromisso é com a doutrina, ele, necessariamente, vai entender sua doutrina como a mais benéfica para as mulheres.
A divinização da submissão feminina no complementarismo
O recente caso do post do ministério Jesuscopy é prova desse compromisso elevado ao complementarismo acima do cuidado, proteção e dignidade das mulheres. A submissão feminina é tão primordial e fundamental que eles acabaram defendendo o subordinacionismo trinitário sem nem perceber que era isso que estavam fazendo. A doutrina complementarista é tão elevada no compromisso de fé dos seus proponentes, que eles até mesmo estão dispostos a desculpar erros em doutrinas centrais da ortodoxia cristã histórica que eles subscrevem para poder promover e manter o complementarismo. Isso aconteceu de forma explícita e transparente nesse episódio do post do Jesuscopy citado acima.
Talvez a figura evangélica mais vocal em defesa do complementarismo e que, ao mesmo tempo, tenha se levantado no último ano, até com publicação de um recente livro, como porta-voz contra o abuso de mulheres no meio evangélico, seja Yago Martins. Nesse episódio do post do Jesuscopy, onde a submissão feminina foi fundamentada pela subordinação de Deus Filho ao Deus Pai, divinizando tal subordinação à moda de Agostinho, ele se levantou em defesa do conteúdo do post. O motivo para Yago ter reagido em defesa do post que claramente refletia uma doutrina da Trindade que ele discorda completamente é porque as críticas ao post estavam sendo direcionadas à submissão feminina conforme sua definição no complementarismo.
O compromisso de Yago com o complementarismo, o que inclui a submissão das mulheres aos homens (mesmo que limitada a certos graus de submissão e certos ambientes, já que ele parece se identificar com um complementarismo estreito e não amplo), é maior do que seu compromisso com a ortodoxia da Trindade do Concílio de Niceia. Eu, obviamente, não estou afirmando que ele tenha feito isso de forma consciente e intencional. É até muito possível que ele não tenha percebido o subordinacionismo do post. De acordo com a reação dele, acusando aos críticos do post, como eu, de ter visto subordinacionismo ali por causa de “inferência de hater”, e depois falar que existe uma “guerra contra o complementarismo”, me leva a pensar que ele elevou tanto o complementarismo em sua hierarquia de compromisso de fé, que isso o cegou ou o impediu de ver o que estava claro como a água no post. Tão claro que os próprios responsáveis pelo ministério Jesuscopy apagaram o post e, depois, responderam privadamente a mim e a outros críticos confirmando que o post tinha problemas.
Assim como Agostinho, o compromisso complementarista tem fundamentos filosóficos e ideológicos estranhos ao material bíblico e a diversas ortodoxias cristãs históricas. Como afirmei no início desse texto, o complementarismo é um fenômeno historicamente recente e sociologicamente limitado. Existe um contexto específico para seu surgimento e esse contexto é o evangelicalismo conservador e fundamentalista branco de classe média dos Estados Unidos. Felizmente ou infelizmente, por causa da relevância política desse grupo, que ganha um corpo mais definido a partir da década de 1970 com o surgimento da “Maioria Moral”, hoje há pesquisas históricas e sociológicas que investigam seus ensinos e doutrinas como parte dos processos históricos. Em outras palavras, existem pesquisas que revelam que aquilo que esse grupo considera como doutrina bíblica de verdades divinas não passa de divinização e absolutização de uma ordem social específica que, não por coincidência, favorece os privilégios, status e posições de poder do próprio grupo.
Ser ignorante quanto a isso, hoje, já não é uma escolha para quem se propõe a estudar complementarismo, mesmo aos que somente leem em português. A publicação de Jesus e John Wayne, de Kristin Kobes DuMez, e A Construção da Feminilidade Bíblica, de Beth Allison Barr, é um marco para essa discussão. Diferente do que gente ignorante, sem formação acadêmica robusta e reconhecida em teologia ou história, diz, os dois livros não são um ataque ao complementarismo. Trata-se de estudos históricos que buscam traçar as origens ideológicas e sociológicas por trás do que veio a ser conhecido como masculinidade bíblica, no caso de Kristin DuMez, e como feminilidade bíblica, no caso de Beth Barr. Até uma leitura superficial das duas obras é capaz de revelar os pontos de contato entre o complementarismo e aquilo que apresentei sobre Agostinho.
O ponto de partida, especialmente para a subordinação, opressão, abuso e violência contra as mulheres é a perspectiva masculina. Um exemplo basta para explicar o que quero dizer. As regras de modéstia feminina não têm nas mulheres o seu foco central, mas sim nos homens, tanto as suas tentações sexuais quanto a proteção da sua “santidade”. A modéstia feminina do complementarismo não existe para proteger o corpo e a vida das mulheres, mas para proteger o status e os privilégios dos homens. Assim como em Agostinho, o corpo feminino está atrelado à concupiscência e o corpo masculino é o critério para as virtudes mais elevadas. É a perspectiva masculina, dentro de uma ordem social de relações desiguais, hierarquizadas e instrumentalizdas, que favorecem os homens, que se torna o padrão da moralidade e mesmo da teologia da “santidade”. A perspectiva masculina se torna a perspectiva divina. A ordem social patriarcal e misógina que foi bem formulada pelo movimento da “Maioria Moral” estadunidense na década de 1970, a partir de filosofias, ideologias e experiências dos EUA no pós Segunda Grande Guerra, se torna divinizada e absolutizada pelo complementarismo no fim da década de 1980. São as distinções de gênero desse contexto que, no complementarismo, se tornam a ordem de Deus, a ordem criada. E, para evitar que isso se torne tão explícito e transparente, o complementarismo faz o que Agostinho faz, distingue entre a realidade essencial/ eterna e a realidade material/ histórica, sendo o primeiro algo que afirma o valor de homens e mulheres como imagem de Deus, e o segundo algo que afirma a distinção de papeis entre homens e mulheres. Mas, assim como no caso de Agostinho, isso acaba firmando o valor ontológico de homens e mulheres exatamente em seus papeis distintos e não em sua relação com Deus, porque os papeis se tornam divinizados como parte da ordem divina.
Assim como Agostinho acabou lendo Gênesis 1–2 e 1Coríntios 11 a partir da divinização e absolutização da ordem social imperial romana, o complementarismo faz o mesmo com esses textos e todo o material bíblico e a história da igreja a partir da divinização e absolutização da ordem social conservadora e fundamentalista dos EUA de meados do século passado. O complementarismo não passa de uma teologia contextual ou identitária desse grupo específico de evangélicos que se tornou “verdade bíblica” para muito além da sua contingência.
Se todas as formas de fazer teologia são inevitavelmente contextualizadas e limitadas, partindo das experiências humanas materiais e históricas, estamos fadados aos mesmos erros de Agostinho e do complementarismo? A resposta, obviamente, é não. Não porque seja possível fazer teologia sem subjetividade e contingência, mas porque é possível partir de outras experiências humanas, outras formas de relação social, e outros valores que não fundamentem, promovam e reforcem desigualdades, abusos e violência. Agostinho poderia ter trabalhado a relação de gêneros a partir da sua relação com sua mãe. O evangelicalismo estadunidense de meados do século passado poderia ter trabalhado a relação de gêneros a partir das novas formas de relação racial em busca de justiça e igualdade que se desenvolviam naquele contexto. Para tanto, o fundamento material, concreto e real do exercício teológico não deve ser uma noção abstrata da revelação divina ou das doutrinas da igreja, que nos cegam para as necessidades reais das pessoas a nossa volta. É a vida delas, a proteção delas em sua experiência real e concreta, e não numa abstração sobre como seguir o “padrão de Deus”, que deve contar.
No próximo post, quero dar um exemplo, a partir de Gênesis 1.26-28; 2.18 e 1Coríntios 11.2-16, sobre como Agostinho e o complementarismo leem esses textos ideologicamente, e uma forma melhor de interpretá-los para, concretamente, estabelecer relações de gênero que não sejam desiguais, opressivas e violentas.
Notas:
1.↑ Uso o termo aqui não em seu significado teórico, mas como uma caracterização de relações de gênero marcadas pela hierarquia em que a figura masculina é estabelecida acima da figura feminina. O conceito teórico do patriarcado, como um domínio completo dos homens em todas as áreas da sociedade, é derivado de estudos antropológicos do século XIX a respeito de sociedades clássicas da Grécia e Roma, a partir da análise de fontes legais latinas. Nas últimas três décadas, porém, o conceito se mostrou inadequado para caracterizar a experiência social real das pessoas nessas sociedades. Para um bom resumo, ver Carol L. Meyers, “Was Ancient Israel a Patriarchal Society?” Journal of Biblical Literature 133.1 (2014): 16–18.
2.↑ Isso pode ser exemplificado por este texto publicado no site oficial da instituição representativa do complementarismo, O Conselho sobre Masculinidade e Feminilidade Bíblica (em inglês, CBMW), em que a pergunta não é se o complementarismo envolve submissão feminina, mas se os complementaristas estão enfatizando demais a submissão feminina: https://cbmw.org/2016/09/26/have-we-made-too-much-of-submission/
3.↑ Muito se fala da sociedade do antigo Israel ou do judaísmo primitivo como caracterizada pelo patriarcado. Mas as relações de gênero na Antiguidade, de forma geral, eram muito mais complexas do que um simples domínio masculino em todas as áreas da vida social. Carol Meyers, possivelmente a maior especialista no assunto aplicado à realidade do antigo Israel, prefere caracterizar essa relação com o conceito heterarquia. Esse modelo das ciências sociais concede a existência de hierarquias nas relações de gênero, mas não as situa todas num padrão linear. Em vez disso, o modelo reconhece que diferentes estruturas de poder podem existir simultaneamente em qualquer sociedade, com cada estrutura tendo seus próprios arranjos hierárquicos que podem interferir nas outras estruturas lateralmente. Para uma aplicação desse modelo ao caso do antigo Israel, ver Carol L. Meyers, “Procreation, Production, and Protection: Male-Female Balance in Early Israel”, Journal of the American Academy of Religion 51.4 (1983): 569–593; Carol L. Meyers, “Having Their Space and Eating There Too: Bread Production and Female Power in Ancient Israelite Households,” Nashim 5 (2002), 14–44.
4.↑ Essa constatação é um exemplo contemporâneo da inadequação do uso do conceito teórico do patriarcado para caracterizar as relações de gênero na experiência real das pessoas na sociedade. Para um bom resumo da opinião e das estatísticas que comprovam essa afirmação, ver https://baremarriage.com/2023/09/nancy-pearcey-toxic-war-masculinity-wrong-about-complementarianism/
5.↑ Caso haja dúvidas sobre isso, a própria diferenciação que alguns complementaristas se viram obrigados a fazer entre complementarismo estreito e amplo tem a ver com o fato de muitos complementaristas amplos usarem a subordinação eterna de Deus Filho ao Deus Pai, como fundamento teológico para seu complementarismo. Ver aqui: https://voltemosaoevangelho.com/blog/2020/02/complementarismo-um-momento-de-acerto-de-contas-parte-1-5/