A ideia do estupro marital e casos de assédio sexual são implicações lógicas da cultura da pureza feminina e da submissão do corpo da mulher à figura masculina do marido


Por Lindsey Abston Painter | Artigo traduzido e adaptado à revista Zelota da Adventist Today.

Se você tem acompanhado o Adventist Today ou qualquer outra fonte de notícias adventista, mídia social ou mesmo o Washington Post, ouviu a saga de Burnett Robinson, até semana passada pastor da igreja Grand Concourse, no Bronx. Mas caso você esteja se escondendo em uma caverna esta semana: Robinson foi filmado alguns sábados atrás pregando sobre a subjugação das mulheres aos maridos. “Senhoras”, disse ele, “depois que vocês se casam, não são mais suas. Vocês são dos seus maridos.” 

Isso já é ruim o bastante. Mas a próxima frase foi muito, muito pior. Referindo-se à notícia de uma mulher que processou o marido por estupro, ele disse: “Eu diria a vocês, senhores, que a melhor pessoa para estuprar é sua esposa.” 

Quando seus comentários se tornaram públicos, as pessoas ficaram indignadas. Robinson foi colocado em licença e, mais tarde, entregou a credencial. E com razão. Que coisa horrível de se dizer e acreditar! O consentimento importa, seja você casado ou não. Uma pessoa que prega isso não deve ser permitida em um púlpito nunca mais. 

Ainda assim, fico insatisfeita com a forma como essa controvérsia terminou. Isso porque Burnett Robinson não é um estranho aqui. Ele não é um cara aleatório cujas crenças caíram como raio em um céu azul. Suas opiniões representam as implicações da cultura da pureza e da teologia da liderança masculina, ambas defendidas oficialmente pela Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD). 

Cultura da pureza

Como uma mulher criada nessa cultura da pureza, fui ensinada que ser casada significava pertencer ao meu marido. Meu corpo não é meu. Aprendi, explícita ou implicitamente, que se meu marido tivesse um caso ou se perdesse na pornografia, a culpa era minha — porque é meu trabalho como esposa mantê-lo sexualmente satisfeito, e a única razão para ele usar pornografia ou ter um caso é ele não estar sexualmente satisfeito comigo. Aprendi que o sexo era para o prazer dos homens e que o prazer das mulheres era um objetivo secundário e opcional. Aprendi que o sexo começa quando um pênis entra na vagina e termina com o orgasmo masculino. Todo o resto são preliminares, o que é opcional. 

Peço desculpas por ser tão explícita em minhas descrições — mas estamos falando sobre sexo aqui, e esse ensino é sexualmente prejudicial para as mulheres em casamentos cristãos. As mulheres aprendem que sua virgindade é um “presente” para dar aos maridos. Se perderam a virgindade, não têm mais nada de valor para oferecer a ele. Elas se tornam como um pedaço de chiclete mascado, um trapo sujo, um lenço que foi soprado pelo nariz — algo que costumava ter valor, mas agora só serve para o lixo. 

Isso se aplica, ao que parece, quer a mulher tenha perdido a virgindade consensualmente ou não. Uma mulher estuprada, uma filha abusada, ainda é uma coisa inútil e gasta, como a analogia do chiclete mastigado sugere explicitamente. 

Duas medidas

E se um homem perdeu a virgindade? O que dizer de seu presente para sua esposa? 

Isso não importa tanto. Afinal, meninos são assim mesmo. Em essência, um homem tem valor mesmo que tenha cometido o “erro” de perder a virgindade. Na verdade, não é desconhecido nas culturas cristãs que muitos pais se orgulham de seus filhos por levarem mulheres jovens para a cama — “Esse é o meu garoto!” Na cultura da pureza, os homens têm um valor inerente que não pode ser retirado independentemente de sua condição sexual, enquanto as mulheres não têm valor inerente além de possuir uma vagina não penetrada. 

Uma vez explicado nestes termos, quão ridículo parece este ensino! Os homens realmente se casam com uma mulher pelo prêmio de tirar sua virgindade na noite de núpcias? Espero que não! Eu espero que, mesmo em uma cultura de pureza tóxica, os homens reconheçam que suas esposas trazem muito mais para o relacionamento do que a virgindade.

No entanto, não é de admirar que tantos homens subestimem a mente e as habilidades das mulheres! Não é de admirar que alguns confiem em seu papel bíblico de “liderança” no relacionamento com as mulheres, em vez de tratá-las como parceiras no casamento, na igreja ou no local de trabalho!

Teologia da liderança masculina

A teologia da liderança masculina diz que o marido é o chefe da família. (Em algumas formulações ela chega a dizer que todo homem é sempre o “cabeça” de toda mulher, em todas as situações, seja em casa ou no mundo.) A ideia se baseia, entre outras passagens, em 1Coríntios 11.3: “Quero, porém, que saibam que Cristo é o cabeça de todo homem, e o homem é o cabeça da mulher, e Deus é o cabeça de Cristo.”

O argumento para a teologia da liderança masculina é que Deus fez homens e mulheres diferentes, embora seus papéis sejam igualmente importantes. 

Mas você está delirando se pensa que o papel atribuído às mulheres (tarefas domésticas, criar filhos, cuidar da casa) tem o mesmo nível de importância na sociedade que o papel dos homens (trabalhar para sustentar uma família, tomar decisões, liderança, liberdade no mundo mais geral). Em qualquer estrutura autoritária, não importa o nível, o líder detém mais poder, e, portanto, tem mais importância. Este é um cenário perfeito para comportamento abusivo.

Além disso, essas funções nem sempre se encaixam bem. Algumas mulheres são melhores líderes que seus maridos. Alguns homens não são adequados para liderar — e de fato, nem o desejam. É por isso que um modelo melhor é aquele em que homens e mulheres compartilham responsabilidades e a tomada de decisões, com base em fatores como capacidade, disponibilidade e interesse. 

A promoção feita por Burnett Robinson do estupro conjugal segue a teologia da liderança masculina. O homem é o cabeça. Ele toma as decisões, e sua autoridade sobre sua esposa (ou talvez sobre todas as mulheres) é absoluta. Uma mulher pertence a seu marido — ela é sua propriedade. Ele pode fazer com sua propriedade o que quiser, quando quiser. Os pensamentos da mulher sobre o assunto não fazem diferença. 

Portanto, embora o discurso de Burnett Robinson não seja ensinado pela igreja, não é um grande desvio da teologia da liderança masculina dizer, como faz Burnett Robinson, que por estar casada você deu os direitos de seu corpo a seu marido. E alguns homens inseguros, então, avançam um próximo passo: sexo forçado não é estupro, porque essa propriedade (não “ela”) pertence a você. Se o consentimento é teologicamente exigido no casamento, então, de acordo com essa linha de pensamento, só estando casada você já deu seu consentimento a seu marido, para que ele faça o que quiser com você.

Burnett Robinson está muito, muito errado. Mas ele está apenas levando a uma conclusão lógica o que a IASD já ensina, e expressando em voz alta suas implicações desagradáveis. 

Não, ele não é uma exceção

Não lamento que Burnett Robinson tenha renunciado. As pessoas não deveriam ser lideradas por ele. Ele não deveria estar pregando. Em sua biografia no site da igreja, ele se autodenominou “conselheiro matrimonial”; mas ninguém deve ser aconselhado por este homem. 

No entanto, remover Burnett Robinson do púlpito não é o suficiente. Precisamos erradicar essas ideias horríveis de dentro da própria igreja. 

Eu fico ressentida com o discurso, propagado mesmo pelos veículos oficiais da IASD, de que Robinson não reflete o que a IASD ensina. Não, nossa igreja não promove o estupro conjugal. Mas, na verdade, a conclusão deste homem sobre o direito de estuprar a própria esposa é o resultado da cultura da pureza e da teologia da liderança masculina, ambas ensinadas pela IASD. 

Mulheres estão me dizendo que dói quando as pessoas dizem: “Este homem não representa minha igreja!” Porque, de certa forma, ele reflete o que a Igreja pensa das mulheres. Quantas mulheres você conhece que viram seus maridos abusivos serem elogiados pela igreja enquanto a mulher era rejeitada por pedir o divórcio? Quantas de nós sabemos de um pastor que tinha conduta inapropriada com os membros, ou mesmo crianças, mas não foi processado ou demitido, sendo simplesmente transferido para uma nova associação? Quantas de nós procuramos nosso pastor para receber conselhos quando nossos maridos estavam abusando de nós e fomos orientados a ser mais submissas? Para apenas oferecer mais sexo? Quantas mulheres lutaram, sem apoio, para criar os filhos sozinhas, enquanto pais negligentes eram totalmente aceitos como líderes na comunidade de sua igreja? As mulheres constituem a maioria das congregações da igreja. Elas pagam a maior parte do dízimo. Elas ocupam a maioria das posições de liderança (geralmente as menos importantes, como liderar as escolas sabatinas para crianças). E ainda assim as mulheres são continuamente despedidas, degradadas, negadas e desvalorizadas pela IASD, desde a Associação Geral até as congregações locais.

Claro, nem todo adventista tem os preconceitos odiosos de Robinson! A maioria não. E aqueles que acreditam no que Burnett Robinson acredita não deixam isso tão óbvio. Eles são mais sutis. O que Robinson disse está apenas implícito, mas não é dito em voz alta. 

Mas, enquanto a IASD continuar a endossar a cultura da pureza e a teologia da liderança masculina, pessoas como Burnett Robinson surgirão entre nós. 

Então, sim, estou feliz que Burnett Robinson renunciou. Mas a misoginia, a falta de respeito pelas mulheres como seres humanos e por sua autonomia corporal, e a vergonha e repressão da sexualidade feminina que ele representa, não acabaram. E nunca terão ido embora até que sejam arrastadas para a luz do dia. Por favor, Igreja. Comece a pensar nisso com mais cuidado. É para cá que sua teologia de gênero nos traz, e é por isso que não deveria nos surpreender ver pessoas como Burnett Robinson dizendo o que ele disse.