Há 20 anos na Congregação Cristã, o autor fala a respeito das imposições doutrinárias da igreja pelo Conselho de Anciães a fim de contextualizar sua carta de despedida em resposta à declaração sobre homossexualidade e “ideologia de gênero”


Por João A. S. Neto | Licenciado em Matemática pela Universidade de São Paulo e mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Foi professor de Matemática e, atualmente, é autor e editor de livros didáticos de Matemática. Frequentou assiduamente a Congregação Cristã no Brasil desde que nasceu e até seus 32 anos, tendo sido batizado aos 12 anos. Neste período, também teve diferentes cargos desempenhados na Congregação, como o de Auxiliar de jovens por mais de 18 anos, Músico oficializado, Instrutor de música e Auxiliar da Administração.

Circular à irmandade, 88 RGE, abril/2023

A igreja Congregação Cristã tem sua origem em 1904, em Chicago (Illinois/Estados Unidos), com um pequeno grupo de evangélicos dissidentes da Igreja Presbiteriana Italiana1, liderados por Louis Francescon (1866-1964). No Brasil, a Congregação Cristã no Brasil (CCB) teve como marco inicial o ano de 1910, com a chegada de Francescon e sua mensagem centrada no batismo por imersão e no batismo com o Espírito Santo, notadamente, o “falar de línguas”.

Estatutariamente, a CCB é uma comunidade religiosa em que não existe hierarquia, embora seja previsto o respeito à antiguidade entre os membros do Ministério, com destaque àqueles que “governam bem segundo a guia do Espírito Santo”, conforme o artigo 17 do Estatuto da igreja. O Ministério da CCB é composto pelo Conselho de Anciães, pelos Cooperadores de ofício ministerial e pelos Diáconos — em 2022, eram 4.558 Anciães, 20.815 Cooperadores e mais de 6 mil Diáconos. De modo geral, cada Ancião é responsável por um conjunto de templos que deve atender a fim de garantir unidade espiritual e doutrinária; cada Cooperador, por sua vez, pastoreia mais diretamente os fiéis que frequentam determinado templo (chamado “Comum Congregação”), e tem a responsabilidade de presidir os cultos desta “Comum”.

Sendo assim, na prática, podem ser observados diferentes tipos de hierarquia e de imposições doutrinárias. Entre os membros da CCB, é perfeitamente evidente que os Cooperadores estão subordinados aos Anciães. O Estatuto corrobora essa percepção ao indicar que os serviços de cultos são presididos tanto pelos Anciães como pelos Cooperadores, mas os “serviços sagrados de Batismo e Santa Ceia são ministrados exclusivamente pelo ofício de Ancião” (conforme Artigos 24 e 25 do Estatuto).

Para além da distinção de funções entre Anciães e Cooperadores, o Estatuto revela que entre os Anciães também há tipos de submissões interessantes de serem destacadas: os Anciães se organizam por meio do Conselho Regional de Anciães (cujas regiões estão distribuídas em cada Estado), e cada um destes Conselhos está subordinado ao Conselho de Anciães mais Antigos do Brasil2 (que se reúne em São Paulo).

O Conselho dos Anciães mais Antigos do Brasil […] poderá revisar ou substituir, soberanamente, qualquer decisão tomada pelo Conselho de Anciães em Reunião Regional ou Estadual, indicando-se nesse ato a Administração que deverá executar eventual medida para cumprimento da deliberação.3

O Estatuto também é enfático em explicitar que o Conselho de Anciães mais Antigos do Brasil tem competência exclusiva para solucionar quaisquer questões relativas a “Pontos de Doutrina”, conforme indica seu Artigo 22, no parágrafo 4º:

A criação de Reunião Regional ou Estadual, bem como a solução de questões relativas a Pontos de Doutrina, são de competência exclusiva do Conselho dos Anciães mais Antigos do Brasil.

Outro detalhe relevante e interessante para compreender a manutenção da hierarquia é que, na Congregação Cristã, integrar o Ministério (seja como Ancião, Cooperador ou Diácono) não depende de uma escolha individual ou de uma vocação pessoal, mas, sim, de uma escolha do Conselho de Anciães, que observa entre os membros homens da CCB aquele que esteja mais alinhado a certos parâmetros. Em outras palavras, os Conselhos de Anciães (os Regionais ou o de Anciães mais antigos) detêm o poder de escolher os membros que estejam mais alinhados com as convicções do Conselho, garantindo, minimamente, a conservação da ordem, do status quo, e a manutenção da concentração de seu poder decisivo e soberano.

Art. 23. Os irmãos Anciães e Diáconos são ordenados (I Tim. 4:14), e os Cooperadores do Ofício Ministerial são apresentados, conforme deliberação do Conselho de Anciães, segundo a guia de Deus pela revelação do Espírito Santo, dentre os membros da CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL que apresentarem as virtudes consignadas no Santo Evangelho (I Tim. 3:1-7 e 8-13; Atos 6:6; Tito 1:5-10; I Pedro 5:2-3).
§ 1º. A apresentação e oração a Deus para confirmação de irmãos Anciães e Diáconos se farão exclusivamente na primeira das Reuniões Gerais Anuais de Ensinamentos de cada Estado, conforme lista de Reuniões Gerais Anuais a ser anualmente elaborada pelo Conselho dos Anciães mais Antigos do Brasil […].
§ 2º. A ordenação ou apresentação sempre será realizada por um Ancião, dentre os mais antigos do Ministério, de comum acordo com o Conselho de Anciães mais Antigos do Brasil.4

É importante destacar o papel do Conselho de Anciães mais antigos do Brasil na tomada de decisões de ordens práticas e/ou doutrinárias para além do Estatuto, pois, ao falar “a CCB deliberou isto…” indico, na verdade, alguma orientação deste Conselho que deveria ser, indiscutivelmente, acatada em cada templo da CCB. Contudo, apesar da pretensão de o Conselho se impor como soberano a fim de ter uma doutrina unânime, em seus mais de 20 mil templos (no Brasil e em outros países) um mesmo tema pode ser recebido e tratado de diferentes modos, em algumas localidades de maneira mais atenuada e em outras, mais acentuada. Assim, quando me refiro “a CCB adota esta interpretação…” pretendo apresentar alguma imposição do Conselho de Anciães que descreve uma regra geral, mas que, eventual e insubordinadamente, pode ser minimizada em determinadas Comuns pelo Cooperador ou Ancião que ali presidem.

A CCB sempre adotou uma postura mais reservada em relação à propagação do evangelho – não utilizava meios de comunicação ou outros que não fossem as pregações dentro de seus templos. Além disso, evitava se envolver em questões políticas ou partidárias.

Aproximadamente em 2010, a administração da CCB lançou um site oficial a fim de apenas informar que a igreja não possuía nenhum site ou meios de comunicação para divulgar informações ou discutir questões doutrinárias. Alguns anos depois, porém, o site oficial foi adquirindo forma e agregando novas funcionalidades, até que, timidamente, passaram a publicar nele alguns Esclarecimentos (de caráter político, principalmente), e, por fim, a partir de 2021, começaram a divulgar os Tópicos de Ensinamentos e as Circulares, ambos com questões práticas e/ou doutrinárias e que são veiculados em cada Comum, seja no Brasil ou em outros países.

Essa despreocupação ou desinteresse (despretensiosamente ou não) em registrar pública e oficialmente sua posição doutrinária dificulta em grande medida estudos ou críticas à CCB, pois as Circulares ou os Tópicos de Ensinamentos impressos, por exemplo, eram de acesso exclusivo do Ministério e os registros que se tinha até antes de 2021 eram obtidos praticamente apenas por meio dos sermões e comunicações orais nos cultos ou por meio de reproduções não oficiais, e nem sempre confiáveis, disponibilizadas na internet.

Como membro da CCB assíduo aos seus cultos e às reuniões de jovens, posso afirmar que o tema homossexualidade e “ideologia de gênero” sempre esteve presente nos sermões proferidos nesta igreja, ao menos a partir dos anos 2000, mesmo que fosse tratado apenas quando algum Ancião ou Cooperador se sentisse inspirado a falar sobre isso, dificilmente de maneira oficial.

Raras manifestações do Conselho de Anciães, porém, também podem ser resgatadas da memória dos membros, ou de registros não oficiais na internet. Em 2008, por exemplo, foi emitida uma Circular intitulada Ambientes perigosos para nossa juventude.5 Nela, à sua maneira, os Anciães alertavam aos membros da CCB sobre ambientes em que, supunham, a juventude “mundana” comete ou incentiva a prática da fornicação e, por esse motivo, os jovens crentes não deveriam frequentá-los. Em seguida a essa recomendação, a Circular trazia o seguinte alerta às famílias:

[…] influente corrente de pensamento, vinda de pessoas e órgãos que conhecemos, mediante verdadeira lavagem cerebral, induz os jovens a rejeitarem o sexo oposto e colocar o homossexualismo [sic] como prática normal, quando o Senhor, por essa prática, condenou à destruição com fogo vindo de Deus, as cidades de Sodoma e Gomorra, matando seus moradores. Por essa razão, à luz da nossa doutrina, o homossexualismo é chamado ‘o pecado de sodomia’, consistindo em gravíssima abominação aos olhos do Altíssimo. […].6

Ainda a esse respeito, de maneira mais atenuada, na 84ª Reunião Anual Geral de Ensinamentos, realizada em 2019 com Anciães do Brasil e de outros países, foi deliberado o seguinte Tópico de Ensinamento:

Tópico 10: Casamento de pessoas do mesmo sexo
O Ministério esclarece à irmandade que devemos respeitar os direitos das pessoas referente à união conjugal entre pessoas do mesmo sexo pois, segundo a Constituição do Brasil, são livres para optarem sobre o modo de regerem suas vidas, em todos os aspectos, quer familiar, social, sentimental e religioso. Devemos permanecer fiéis à Palavra de Deus que condena a idolatria e depravação das pessoas, conforme escrito em Rom 1:18 ao 32. São condenados também aqueles que conhecem a justiça de Deus, mas consentem com o pecado, participando de tais atos, inclusive em festas relativas a essas uniões.7

Apesar deste posicionamento mais moderado, e com a polarização política que vem assolando o Brasil, a CCB passou, implícita e explicitamente, a orientar seus membros sobre o dever de não votar em partidos que (como julgam) promovem a “destruição das famílias”, havendo nisso referências evidentes de não concordar com políticas públicas que garantam os direitos de pessoas LGBTI+ e, mais particularmente, de que seus membros não devem votar em partidos de esquerda.

De maneira razoavelmente velada, por exemplo, emitiram em 2021 uma Carta à Irmandade com o título A defesa do evangelho de Jesus Cristo – o pecado da omissão, como ilustrado a seguir:

O conteúdo da Carta, contudo, ainda está disponível de maneira quase apagada no site oficial. Um trecho desta carta diz o seguinte:

Dizemos isso, porque há fortes tendências das pessoas em manifestarem suas preferências políticas e partidárias. Sempre fomos ensinados a cumprir nosso dever cívico como cidadãos que somos quanto ao nosso dever de votar, porém em candidatos que pertençam a partido que não sejam contrários à nossa fé e doutrina.
O que devemos observar é a qual partido pertence determinado candidato que temos interesse em votar, pois é sabido, que há alguns partidos que tem seus princípios contrários à existência de Deus e de nossa fé cristã.

Embora o discurso nesta carta ainda fosse velado, com a 86ª Reunião Anual Geral de Ensinamentos, realizada em 2022, a intencionalidade foi mais especificada, pois foi deliberado, entre outros, os seguintes Tópicos de Ensinamentos:

CASAMENTO
A palavra de Deus orienta o casamento – somente entre homem e mulher – para não serem contaminados pelo pecado (I Cor.7,9). Quando consumado, o casamento deve ser mantido até a morte de uma das partes. Quem proceder diferente disto, incorre no que está instruído a seguir, em tópico próprio para o assunto.
[…]
POLÍTICA
Não devemos votar em candidatos ou partidos políticos cujo programa de governo seja contrário aos valores e princípios cristãos ou proponham a desconstrução das famílias no modelo instruído na palavra de Deus, isto é, casamento entre homem e mulher.

Com a mudança do Governo Federal, de 2022 para 2023, e a retomada da esquerda política no Executivo, a CCB foi ainda mais enfática em seu discurso e, como orientar politicamente seus membros já não bastaria, explicitou o que julga inconveniente no tocante à homossexualidade e à “ideologia de gênero”: em abril de 2023, na 88ª Assembleia Geral Anual de Ensinamentos, emitiram a Circular 151, Homossexualidade e Ideologia de Gênero à luz da palavra de Deus.

Como membro da CCB por muito tempo que fui, e como homossexual cristão que ainda sou, escrevi uma carta-resposta a essa Circular, publicado originalmente em meu blog, “Também sou cristão”, e que está reproduzida a seguir.

Carta-resposta à Circular “Homossexualidade e Ideologia de Gênero [sic] à luz da palavra de Deus”8

Meu amor, recebi sua última carta já há quase três meses, e não pude te responder sem sentir cada uma de suas palavras e relembrar tudo que passamos juntos.

Eu te amo desde minha infância, crescemos juntos e valorizamos tanto tudo o que tínhamos e tudo o que éramos um para o outro.

Percebi que você respondeu minhas últimas cartas, veladamente, como se quisesse quebrar o silêncio ou como se percebesse que muitos tomam partido meu agora.

É verdade, nós nos amamos, mas cada vez mais percebo o quanto você usa os fatos a seu favor apenas, e o quanto você nega que eu existo.

Você me diz: “os vínculos de amor são estreitados pelo bom convívio… por pessoas unidas por relações de afeto e de sangue”. Fala-me isto como se apenas o afeto não fosse suficiente para estreitar o amor, como se apenas em relações “de sangue” houvesse o amor. Como se apenas entre um pai e um filho, gerado de suas entranhas, pudesse haver amor, afeto e paternidade. Esquece, porém, que nosso próprio Amado foi adotado e cresceu sem esse vínculo sanguíneo com seu pai terreno. Ignora que há tantos e tantos exemplos de desamor entre famílias, sejam as do livro sagrado sejam as da atualidade! Se quisesse me amar de fato, poderia conhecer tantos que hoje eu conheço e que são muito mais amados em seus laços não consanguíneos do que em seus lares de origem.

Aliás, muitos “afetos de sangue” são desfeitos por você, minha amada, pois insistentemente você incita pais a não demonstrarem quaisquer carinhos e, menos ainda, aceitação por seus filhos “de sangue” que se desviam dos trilhos ditados por você.

Amada minha, você não cessa e me escreve que “o modelo patriarcal estabelecido por Deus… é a melhor organização para o ser humano”; mais uma vez, olha apenas para si e quer fazer-me acreditar que o modelo patriarcal é o modelo que hoje tu pregas como válido, como se aquele modelo patriarcal bíblico não fosse, hoje em dia, horroroso aos teus próprios olhos: homens com direito a mais de uma esposa, irmão sendo obrigado a casar-se com a cunhada ou sobrinha enviuvadas…

Você me afirma que “resultante das uniões conjugais é que foram gerados os povos… tendo em vista que pessoas do mesmo sexo não podem gerar filhos…” – no que há verdades, mas me parece que você vive em uma fantasia. Sabendo tudo o que sei sobre você, minha amada, e o quanto você ignora atrocidades de personagens para criar seus heróis platônicos, presumo que você queira me fazer concordar que a humanidade foi constituída por uniões conjugais apenas, um homem e uma mulher, esposo e esposa legítimos, com seus lindos filhos disciplinados, com seu matrimônio impecável e patriarcal.

Digo que é uma fantasia, pois o próprio nosso Amado teve sua geração cheio de escape desse modelo, dito divino, de maneira que sua ascendência inclui filho de prostituta, filho de nora com sogro, filho de adultério de rei idolatrado… 

É verdade, contudo, e fato inegável também, que pessoas do mesmo sexo não gerem filhos. Isso, todavia, não deveria ser argumento para dizer que não possam ser amadas do divino Amor. Se você acredita de fato que sexo seja abençoado apenas para gerar filhos, deveria instar seus fiéis seguidores heterossexuais a isto também.

Ao mesmo tempo que pessoas do mesmo sexo não geram filhos (tanto como os e as estéreis tão citadas e, às vezes, justificadas no livro sagrado), pessoas do mesmo sexo também não abandonam filhos, antes, muitos desejam até adotar filhos rejeitados por um pai e por uma mãe, por exemplo. Também são um pai e uma mãe crentes que, muitas vezes, são ardilosamente incitados a uma rejeição de sua geração sanguínea caso seus filhos homossexuais assumam ser quem são.

Não comentarei sobre sua incoerência e sua incapacidade de perceber que a própria história de sua constituição, no Amado, tem base em uma adoção; pois não éramos filhos legítimos, mas fomos adotados por laços não de “sangue”, não de “direito legítimo”, mas de afeto, de graça; e essa adoção é de um Pai só, sem a figura de uma Mãe. Fomos adotados por um Pai! A ilustração da família perfeita não é por laços legítimos “de sangue” e sequer tem a figura de uma mãe.

Por homossexuais e LGBTIA+ sofrerem essa rejeição, tal como as estéreis dos tempos bíblicos (em que gerar era ainda mais esperado), por sofrermos essa rejeição sua, amada minha, e de nossos familiares (incitados por você), nós aprendemos a amar as pessoas mesmo quando não temos laços “de sangue” com elas! Acredito que seja isso que te irrite tanto, formosa minha, mas você precisa aceitar que nosso amor, gerado por ou pela nossa homoafetividade, é tão autêntico quanto aquele dos que amam porque estão ligados por um seio familiar “de sangue”. Se não mais, amamos igualmente aos que amam por estarem estreitados em laços sanguíneos! Tal como o símbolo da Adoção e da Graça, somos capazes de adotar e amar filhos, ainda que não tenham sido gerados “das nossas entranhas”.

Depois disso, você se confunde completamente. Levou sua fantasia para um nível de ficção científica. É verdade, de alguma maneira, que “homens e mulheres têm informações genéticas diferentes em seus cromossomos” e isso não determina qualquer tipo de afetividade, seja heteroafetividade (como em sua ficção você supôs) ou homoafetividade. Você indicou que cromossomos definiriam a heteroafetividade, e nunca a homoafetividade; isso é completamente sem sentido! Essa diferença cromossômica, no pouco conhecimento genético que possuo, determina os órgãos sexuais; agora, pasme, há uma diversidade enorme de gênero, maior do que essa que você dicotomiza: você deveria pesquisar sobre as pessoas intersexuais!

Você diz que “inclinações homoafetivas são enaltecidas pela mídia” e que, contudo, aqueles que te seguem não devem entender a homoafetividade como “experiência saudável”. É bem do seu feitio ignorar as experiências não saudáveis que você mesma me proporcionou, dileta minha. E não só a mim, e não só àqueles como eu, homossexuais. Mesmo casais heterossexuais, que você diz valorizar, passam por tantas experiências não saudáveis, traumáticas, geradas por você e a fim de manterem as aparências ditadas por você, e você ignora isso.

Já conversamos sobre o fato de Romanos 1 não se tratar de mim. Há desvirtudes demais lá que, de maneira alguma e em momento algum, jamais poderiam ser associadas a mim. Não vou me alongar nisso, pois você se recusa olhar para frente ou para os lados, se recusa a pensar como um todo, se recusa a reconhecer a diversidade da criação divina, se recusa a olhar qualquer um que não seja si mesma.

Também é uma ilusão sua acreditar que os heterossexuais se reprimam tanto sexualmente; muito, sim, infelizmente para eles. Porém, pior do que isso, é colocar esse suposto peso deles em nós e dizer que “assim como os heterossexuais se reprimem, os homossexuais também devem se reprimir”. Heterossexuais não se reprimem, tanto que com 16 anos já estão insanamente na busca de um casamento para poder se satisfazerem sexualmente (não só por isso, claro, mas principalmente). Eles mortificam seus corpos ou antecipam uma decisão que deveriam tomar com mais maturidade? E, ainda que isso fosse uma mortificação de fato, como se compara um heterossexual viver os 18 primeiros anos da vida sem sexo e com afetividade (pois podem namorar e se sentirem amados por um/uma moço/moça) com sua interpretação de que o homossexual deve viver a vida toda sem afetividade alguma (para além da sexualidade)?

Dois pesos, duas medidas, abominação é!

Você me diz que “toda tentação tem um limite… respeitando a capacidade de resistência de cada fiel”, possivelmente citando o verso que fala algo como “não há tentação sem que haja um escape”. Respeito sua crença, mas não se trata do divino e sim de você se colocar como o próprio divino e pesar nossos atos, estreitar nossos limites enquanto os dos demais são alargados.

Coam um mosquito, e engolem camelos inteiros!

Mais versos e versos você cita a mim, como se eu não os conhecesse. Como se eu já não tivesse falado deles para você; como se cada um deles estivesse no melhor contexto interpretativo, só porque tal contexto está dentro das suas limitações cognitivas! Não falarei deles novamente.

Li e reli, às vezes considerando um avanço, algo positivo; li e reli e apreciei seu incentivo aos seus fieis seguidores não praticarem homofobia nem desprezo de homossexual algum. Pareceu-me bom, afinal, você sequer conseguiria dizer isso antigamente. Porém, é triste que, antes de dizer isso, na mesma carta você me qualificou: como incapaz de ter afeto genuíno; como sem caráter ou como incapaz de educar filhos que tenham caráter, moral, emocional, psicológico e social desenvolvidos; como não natural; como não saudável; como desenfreado; como portador de uma desordem espiritual…

Obrigado, dileta minha e pomba minha, por incentivar os teus a não me odiarem. Muito obrigado! É o mínimo que você deveria fazer, mas te agradeço. Agradeço-te também por reafirmar a si mesma como um abrigo para todos e para todas sem distinção, apesar de você me distinguir com os adjetivos que destaquei há pouco.

Conhecendo-te bem, e esclarecido tudo o que pensa sobre mim, compreendo cada vez mais que, em verdade, em verdade, seu “amor” é obsessão, é paixão que ofusca a razão, é sentimento que te incapacita aos laços afetivos profundos, é ego extremo que lhe impede aprender com a experiência.

Preciso te dizer, no entanto, que eu te amo, mas…

Adeus.

Com amor,

um teu filho “amado”.

Notas:

1. Conforme o livreto “Histórico da obra de Deus, revelada pelo Espírito Santo no século passado” disponibilizado aos membros apenas nos templos da Congregação Cristã.

2. Popularmente, os membros da CCB chamam o Conselho de Anciães mais Antigos do Brasil de “O Brás” (devido à sede das reuniões desse Conselho ser no bairro do Brás, em São Paulo/SP).

3. Parágrafo 2º do Artigo 22 do Estatuto da Congregação Cristã.

4. Parágrafos 1º e 2º do Artigo 23 do Estatuto da Congregação Cristã.

5. Ambientes perigosos para nossa juventude, Circular de 2008, não publicada.

6. Tanto as Circulares como os Tópicos de Ensinamentos, até 2020, eram materiais disponibilizados impressos apenas aos irmãos do Ministério, que os liam durante os cultos aos demais membros da CCB. Assim, o trecho desta Circular de 2008 foi transcrito aqui com base na comparação de fontes não oficiais (um grupo de Facebook e um Blog). Também foram consultadas pessoas que frequentavam a CCB em 2008 a fim de verificar se elas tinham lembrança da Circular.

7. Reunião Geral Anual de Ensinamentos. 86ª Assembleia — 2019, não publicada.

8. Texto originalmente publicado no blog Também sou cristão (Disponível em: www.tambemsoucristao.com. Acesso em: 6 jul. 2023).