O padre guerrilheiro colombiano, assassinado há 56 anos, lutou pela construção de um projeto popular que mantivesse a unidade na diversidade


Por Lilia Solano1 | Artigo publicado originalmente em: SOLANO, Lilia. “Lecciones de la acción sentipensante de Camilo Torres”. Em: Revista Pasos, Departamento Ecuménico de Investigaciones, 2016, v. 1, n. 169, pp. 37-44.

“Camilo Torres” (Foto: Autor[a] desconhecido[a]).

“O que é capaz de pensar sentindo e sentir pensando”

Estamos celebrando a vida de Camilo Torres Restrepo, que nasceu em Bogotá, em 3 de fevereiro de 1929, e morreu em Patio Cemento/Santander, em 15 de fevereiro de 1966, aos 37 anos de vida. Camilo desenvolveu seu trabalho em um contexto de esmagamento do sujeito, de conflito e de pobreza. Entendeu que para estar vivo tinha que pensar e sentir ao mesmo tempo, conectado com a realidade, com o mundo, com a história e, por sua vez, com os corpos. Aguçando a mente e a percepção, mas também com o coração.

O pensamento e a ação de Camilo têm hoje um valor enorme, porque estiveram cimentados sobre valores fundantes e com um método de análise contextual, acompanhados de uma prática sentipensante; por isso, Camilo continua inspirando nossa época.

Gostaria de colocar nesse texto a importância de duas das lições sentipensantes que Camilo nos deixou para o momento que vivemos na América Latina e na Colômbia, em particular.

A primeira foi a da unidade na diversidade, em torno da qual constituiu a base da Frente Unida. Nunca aceitou uma vanguarda exclusiva, com posse de toda a verdade. Para ele, a realidade era plural e a ação revolucionária deveria reunir os diversos componentes da esquerda.

A segunda foi a construção de uma base popular; Camilo valorizou o exercício intelectual e conseguiu pô-lo em diálogo com o compromisso com os setores populares, tanto urbanos como rurais, para a construção de uma ação política eficaz. Essa prática da ação coletiva e eficaz coincide com a articulação da ideia no pensamento político moderno. Hannah Arendt formula em teoria o que Camilo já havia incorporado em sua ação política ao afirmar que “o poder surge da capacidade que os homens têm não apenas para atuar ou fazer coisa, mas também para combinar com os outros e atuar com eles em acordo com eles”.

Com respeito à primeira lição

Em 1965 cresce com força o grupo de protesto de uma geração até então forçada à marginalidade do poder, uma geração que, com seu avanço organizacional, apresenta uma ameaça real à hegemonia dos grupos oligárquicos e às elites tradicionais. É nesse contexto que Camilo Torres Restrepo, professor e cofundador da Faculdade de Sociologia da Universidade Nacional, criou a Frente Unida como uma força política que ele denominou “pluralista”. E conseguiu convocar uma nova utopia para o país. Essa utopia tinha características particulares, como as derivadas das convicções espirituais, do exame da realidade nacional e das revoluções latino-americanas, em especial a cubana. A utopia pluralista de Camilo Torres tinha um caráter universal ao transcender a realidade e passar ao plano da prática; sua abordagem transformou profundamente a ordem estabelecida, produzindo crises sociais e pessoais, empurrando o exame crítico da sociedade e impulsionando as mudanças transcendentais tão amplamente negadas.

Na “Plataforma para um Movimento de Unidade Popular”, formada em março de 1965, Camilo preparou uma reflexão simples para compartilhar com os setores populares, declarou que um dos objetivos do movimento da Frente Unida “é a estruturação de um aparato político pluralista, não um novo partido, mas uma frente capaz de tomar o poder”. Nessa declaração, fica evidente uma renúncia à ideia de lideranças exclusivas e patriarcais, e o compromisso de promover a participação de forças revolucionárias plurais. Ele elaborou sua proposta da seguinte maneira: a força política que deve ser organizada deve ser de caráter pluralista, aproveitando ao máximo o apoio dos novos partidos, dos setores inconformados e dos partidos tradicionais, das organizações não políticas e, em geral, dos movimentos sociais e de outros setores.

O pluralismo de Camilo Torres, poderíamos dizer, é um dos elementos essenciais de seu pensamento e tem consequências profundas para os primeiros passos do movimento da Frente Unida. Para entendê-lo, inicialmente temos que vê-lo dentro do contexto político, social e religioso a partir do qual Camilo exerce sua liderança. Isso não seria possível sem a prática sentipensante de ampliar a vida com um olhar integral de nosso lugar no mundo, que não pode ser dado como certo vindo somente de contextos religiosos. A concepção de Camilo é dinâmica; portanto, o pluralismo não deve ser concebido como um adorno à ordem estabelecida, nem deve seguir as regras do jogo político tradicional, mas como uma ferramenta para a convergência de grupos de diversas vertentes e um convite aos movimentos para avançar na mesma direção. Apresenta-se como uma estratégia que busca mudar as regras do jogo e que, ao fazê-lo, promove a mudança da ordem social e política em que se desenvolve. Mas sua meta final é uma mudança socioeconômica profunda, e isso é proposto para ter, como horizonte, outro mundo melhor, como agora é o lema do Foro Social Mundial.

A partir da visão histórica de Camilo, o resultado que deve surgir desse pluralismo é o estabelecimento de uma verdadeira democracia que tenha por objetivo o bem comum. Essa concepção da ação política a serviço do bem comum é uma ideia viva dos ancestrais, aprofundada em nosso tempo pelo professor François Houtart, em sua obra Buen común de la humanidad.

Tudo isso permite uma ampla avenida de apostas ideológicas que estendem as alternativas para escolher as rotas de ação. A proposta pluralista de Camilo, com um aparato político heterogêneo para avançar, tem como desafio o elemento religioso. O próprio conceito de pluralismo foi recorrente em alguns círculos eclesiásticos, assim como na posterior Teologia da Libertação. Camilo toma essas lições a partir de sua etapa como estudante na Universidade de Lovaina, na Bélgica, onde encontra elementos novos do pensamento católico e, também, de seu contato acadêmico, que tornou possível organizar na Europa experiências como a dos sacerdotes operários.

A concepção pluralista, cristã, política e socialista, por sua vez, foi fundamento inicial da ação pessoal de Camilo Torres, e se encontra no documento datado de 24 de junho de 1965, quando solicita ao arcebispo a liberação de suas obrigações clericais. Camilo sustenta nesse momento que “a suprema medida das decisões humanas deve ser a caridade, deve ser o amor sobrenatural”, e, portanto, dedica-se a promover uma revolução transformadora.

Conceitos centrais como o da dignidade, baseada nos valores do humanismo, e da rebelião justa, que se apoia na força dos fins coletivos, também vêm de sua prática sentipensante. Além do mais, foi enfático na necessidade da independência dos interesses oligárquicos que mantêm o país subordinado aos Estados Unidos da América. Por isso, o pluralismo é necessariamente anti-intervencionista, e condena a agenda entreguista das elites nacionais, que se mantém hoje apesar das mudanças de governos. As ferramentas acadêmicas são também enfatizadas por Camilo, especialmente em seu desejo de criar a unidade de forças políticas novas por meio da aplicação das ciências sociais e econômicas, traduzidas à realidade colombiana.

Com respeito à segunda lição

Camilo conseguiu comunicar, no trabalho com setores populares, que como seres humanos não estamos separados do entorno no qual vivemos, e a ideia de esmagar para sobreviver, portanto, corresponde a uma força de exercer o poder em um mundo onde é preciso competir, enfrentar, dominar e submeter, para impor e salvar a vida. Essa ideia do darwinismo social, de que apenas sobrevivem os melhores e que chegou a justificar o desconhecimento do outro que está em permanente conexão com o entorno e com os fios da história, foi rechaçada na ação sentipensante de Camilo. Segundo o pensamento camilista, essa desconexão é o que faz com que a luta social e política seja vista como separada ou alheia à maioria.

Camilo confiava que poderia transformar o mundo e transformar as estruturas de opressão por meio de ideias, pensamentos e ações, em diálogo com a realidade concreta da vida das pessoas oprimidas.

Camilo Torres dá uma dimensão decisiva ao trabalho de organização popular com a ideia da validade moral da rebelião. Essa foi uma tarefa urgente que o levou, para impulsionar a luta do povo contra a oligarquia tradicional, a desenvolver seu pensamento em quatro de suas mensagens: aos cristãos, aos camponeses, à oligarquia e aos presos políticos. Afirmou que “a oligarquia tem uma dupla moral da qual se vale, entre outras coisas, para condenar a violência revolucionária enquanto ela mesma assassina e encarcera os defensores e representantes da classe popular”; ou divide o povo em grupos para que lutem entre si. Essa velha estratégia ainda nos mantém desunidos.

Afirma Camilo que a revolução pode ser pacífica se as minorias da elite não fizerem resistência violenta. E como essa revolução busca a justiça, ela é “não apenas permitida, mas uma obrigação aos cristãos”. Palavras tão contundentes que denotam a profundidade de um Camilo comprometido e sentipensante.

Esses elementos principais da ação que Camilo Torres apresentou ao povo, como meta para adotar “um sistema orientado pelo amor ao próximo”, sintetizam e reiteram ideais socialistas anteriores. Recordemos que Camilo foi forçado pela hierarquia da Igreja católica a abandonar o sacerdócio como modo de condenação pela promoção de uma Igreja comprometida com os pobres da terra. Seu pensamento não podia se encaixar no contexto das ideias dos partidos políticos tradicionais, porque a dinâmica política de seu tempo havia superado o marco ideológico em que funcionavam aquelas forças, às quais nunca pertenceu. Ao contrário, Camilo representa a visão de uma sociedade aberta e justa, com bem estar para todos.

Podemos afirmar com as palavras do professor Eduardo Umaña que a vida de Camilo girava em torno de uma aposta: “O Estado a serviço da comunidade e não a comunidade à disposição do Estado.” Essa convicção outorgou a liberdade de Camilo para enfrentar os abusos cometidos pelo poder.

A vigência de Camilo hoje

Ao revisitar o pensamento de Camilo Torres, pode facilmente ser advertida a vigência de suas ideias, particularmente nos desafios da construção da paz. A unidade das esquerdas depende, entre outras coisas, da capacidade de incorporar seu legado unitário e pluralista da Frente Unida. Hoje temos a vantagem adicional da perspectiva histórica, que permite decantar esse extraordinário projeto político. A morte prematura de Camilo nas montanhas impediu que o padre guerrilheiro enriquecesse ainda mais o avançado e interessante ideário do Exército de Libertação Nacional (ELN). Destaca-se a força vital do Camilo que pensa e que sente, e a unidade de seu pensamento e de sua vida para os atuais movimentos políticos no continente e na Colômbia. De fato, o próprio elemento utópico que é inspirado em sua trajetória de luta política está presente nos movimentos revolucionários como os que surgiram depois de sua morte. As forças sociais insistem que vamos “para uma Frente Unida dos Povos”, e que seu propósito é iniciar uma tarefa pluralista de pedagogia política. Essa é sem dúvida a Frente Unida dos Povos concebida por Camilo.

É redundante dizer que a paz é construída sobre a justiça. Não há paz sem transformações estruturais profundas como a reforma agrária, sem acabar com a desigualdade social e abrir o acesso de todos à riqueza nacional; sem pôr fim ao poder dos paramilitares na vida política, econômica e social; sem um controle sobre o sistema financeiro hegemônico e alimentado pelo narcotráfico; sem um limite ao capital estrangeiro e nacional, que destrói o meio ambiente; sem garantir salários dignos e sem reconhecer os direitos dos povos indígenas e afrodescendentes.

A história se repete uma e outra vez; por essa razão o pensamento camilista está tão vivo como nos dias da Frente Unida. A luta social na Colômbia se desenvolve em meio a uma longa história de violências. As classes dominantes nunca perderam seu controle sobre a sociedade; adaptaram-se de modo muito inteligente às circunstâncias históricas e utilizaram a força quando foi necessário; para a maioria dos países latino-americanos, a independência foi realizada de acordo com seu projeto de sociedade, apesar da ampla participação popular nas lutas pela emancipação. As oligarquias foram capazes de absorver a revolução liberal e lideraram a industrialização, evitando o perigo de uma classe trabalhadora bem organizada.

As demandas em favor de uma solução negociada do conflito armado, que foram produzidas a partir dos âmbitos locais e internacionais, facilitaram o avanço de um processo de paz entre as FARC-EP e o governo da Colômbia. Também é adiantada uma mesa de diálogo e negociação com a guerrilha do ELN. Contudo, não se deve confundir o fim do conflito armado com o fim da luta social.

Não podemos pensar em um processo de paz na Colômbia fora do globo. Esse ponto de vista também foi uma contribuição de Camilo que inclui duas dimensões importantes: o continente latino-americano e a alternativa ao sistema capitalista mundial. A Colômbia é fundamental no contexto latino-americano. Sua posição geográfica entre a América Central e a América do Sul permite que seja utilizada como base para o controle militar e o trabalho de inteligência estadunidense em todo o subcontinente. A disposição de instalar sete bases no país por parte do exército dos Estados Unidos tem claramente uma agenda geoestratégica, a qual põe um obstáculo para os processos de integração latino-americana sem submissão ao norte.

Por sorte, hoje tem aparecido na Colômbia uma geração ativa e sentipensante que, com grande vitalidade, trabalha com gosto com as bases populares, como nos tempos de Camilo. Há maior aproximação com diversas comunidades, tanto para acompanhá-las como para aprender a investigar a realidade com elas, recorrendo aos métodos da investigação-ação participativa (IAP) que são, também, uma contribuição de Camilo Torres, que ele mesmo começou a aplicar no bairro Tunjuelito, de Bogotá. Essa geração ativa e sentipensante está melhor preparada, tem mais consciência dos erros das lideranças tradicionais e conseguiu acumular uma maior experiência, e, em conjunto com as ideias de Camilo, podem contribuir enormemente com a construção de uma sociedade mais justa. Camilo seria, com toda segurança, um dos porta-bandeiras dos processos de paz.

Camilo é a inspiração, a alegria e a esperança de novas gerações, que, como Dom Quixote, têm que viver entre a realidade e os sonhos. Temos que lutar para recuperar o sentido da humanidade incorporando as lições de Camilo, de viver sendo sentipensantes.

Nota:
  1. Filósofa, politóloga e militante dos direitos humanos colombiana, é diretora do Proyecto Justicia y Vida com atuação internacionalmente reconhecida, em especial por seu trabalho na organização dos encontros do Foro Social Mundial e, em 2007, como juíza do Tribunal Permanente dos Povos em Haya, Holanda, no julgamento realizado contra o governo de Gloria M. Arroyo, nas Filipinas.