Processo de editora adventista contra Boitempo alega violação de direitos autorais na obra “Quem tem medo do gênero?”, de Judith Butler, exigindo indenização e recolhimento dos livros


Recentemente, a editora Boitempo foi surpreendida por uma ação judicial da Casa Publicadora Brasileira (CPB) que exigia o recolhimento de todos exemplares distribuídos do livro Quem tem medo do gênero?, da filósofa estadunidense queer e feminista Judith Butler. 

O livro, publicado originalmente em março de 2024 nos EUA pela Farrar, Straus and Giroux, um selo da Macmillan Publishing, oferece uma “análise de batalhas contemporâneas políticas e culturais a respeito da mutabilidade e do potencial para mudança social radical contidos na categoria de gênero, juntamente com o direito de mulheres, e de todas as pessoas queer, trans e de gênero não conformista, a viver com liberdade e segurança no mundo.”1

Criada há cerca de 20 anos, a editora Boitempo recebeu seu nome em referência ao título de um livro de poesias de Carlos Drummond de Andrade. De acordo com a Aliança Internacional de Editoras Independentes, a “Boitempo deixou sua marca como editora de qualidade, tanto em sua seleção de publicações quanto na impressão e apresentação de suas obras. Ela é focada em ciências sociais, literatura, e ensaios históricos e contemporâneos. Com um foco em marxismo, a Boitempo recebeu financiamento da Fundação Ford. Por exemplo, há cerca de dez anos, ela recebeu US$ 90.000 para trabalhar ‘numa atualização da Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe, e traduzi-la para inglês e espanhol’”.

O motivo central para o processo iniciado pela CPB foi a utilização — na capa interna do livro, e ampliada, em preto-e-branco, e com baixo contraste na capa externa — da imagem do personagem “Quico”, da Turma do Nosso Amiguinho. A CPB é a editora oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) no Brasil.

A associação do personagem à temática do livro seria, de acordo com a CPB, “totalmente alheia à filosofia original do personagem Quico”.

A “Turma do Nosso Amiguinho”, com o Quico circulado em vermelho. Captura de tela do website do Nosso Amiguinho.

A Boitempo informou à Zelota que os prejuízos ainda não foram contabilizados, mas já somam 461 exemplares apreendidos na sede, e aproximadamente 1.500 recolhidos de livrarias. “Além da perda de vendas em plena campanha, tivemos de arcar com fretes de devolução, alterações no site e redes sociais, reimprimimos o livro e teremos os custos com o processo, que pelo visto será longo.” A editora também afirmou que “o problema era apenas na capa, mas a CPB exigiu apreensão do livro todo”.

Em nota pública, a Boitempo lamentou a iniciativa da editora adventista, que “poderia ter entrado em contato conosco pedindo a retirada do personagem da capa […] o que teríamos atendido de pronto”.

A imagem contenciosa é a replicação de uma foto com direitos livres de uma manifestação contra Judith Butler em sua visita ao Brasil em novembro de 2017; um cartaz segurado por uma manifestante que continha um compilado de imagens e dizeres “antigênero”, na qual figurava um recorte do personagem Quico. A foto “ilustrou inúmeras matérias à época, de veículos da grande imprensa e alternativos, sem que houvesse, ao que saibamos, qualquer ação da editora”, explicou a Boitempo à revista.

A Boitempo explicou que, já na ação inicial, a CPB alegou não haver a possibilidade de comunicação entre as editoras. Além do recolhimento do material, ela também exige indenização por parte da Boitempo. O processo segue tramitando em um tribunal de Tatuí, cidade em que está localizada a editora adventista. 

São Paulo – Manifestantes protestam contra e a favor da participação da filósofa Judith Butler no seminário Os Fins da Democracia realizado pelo Sesc Pompéia, em parceria com a Universidade da Califórnia (Rovena Rosa/Agência Brasil)
Esquerda: primeira versão da capa do livro Quem tem medo do gênero?, de Judith Butler. Direita: segunda versão. Fonte: Boitempo

Ao ser procurada pela Folha de S.Paulo, a assessoria da CPB afirmou que a ação foi movida apenas por questões de direito autoral e marca registrada: “O processo está sendo conduzido em segredo de justiça, conforme determinação judicial. Qualquer informação além disso poderá comprometer o sigilo das informações”. E complementou: “A editora solicita a compreensão de todos os envolvidos e a mídia para que se respeite essa condição legal durante o andamento do caso.”

Por baixo das supostas preocupações com direitos autorais, há indicações de um objetivo mais amplo. Michelson Borges, editor da CPB, publica opiniões que associam a “ideologia de gênero”, conspiração que tem Judith Butler como um de seus principais alvos, a um projeto para confundir a sexualidade das crianças. Ele defende um modelo “bíblico” de divisão binária dos sexos, e aponta a agenda feminista como responsável pela articulação da ideologia de gênero. Ele também cita materiais científicos para defender a heterossexualidade como padrão divino para concepções de gênero. O conteúdo de Borges está alinhado à filosofia da editora, que confere a ele liberdade para expor opiniões de dentro de seus escritórios.

Em suas mídias oficiais, a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) também possui uma agenda de publicações que criticam ou demonizam a ideologia de gênero, colocando-a como oposta aos ensinos bíblicos. No site de notícias adventistas, Judith Butler já foi citada como referência teórica para a promoção de ideologias que “invertem” o pensamento das crianças a respeito da sexualidade. Ela também foi citada por Rodrigo Silva, curador do Museu de Arqueologia Bíblica (MAB), do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), como quem “quer eliminar qualquer divisão de papéis das mulheres”. 

De acordo com o Gerente da Assessoria de Comunicação da Divisão Sul-Americana (DSA) dos adventistas, Felipe Lemos, a afirmação pública de crenças da denominação faz parte de uma estratégia de gestão de imagem e reputação. Trata-se de uma estratégia de evangelismo que proclama o “que a igreja é e realiza”, na tentativa de conferir credibilidade a seus discursos. Desassociar a instituição da obra de Butler seria útil para manter a coerência de sua imagem e sua pregação contra a ideologia de gênero. 

Qual é a filosofia do Quico?

Quico é um dos personagens que compõem a “turma” que protagoniza o conteúdo veiculado pela revista Nosso Amiguinho, lançada em julho de 1953. Desde a década de 1970, ela apresenta como protagonistas seis personagens distintos: Noguinho, Luísa, Sabino, Quico, Cazuza e Gina. Dentre eles, Quico é ilustrado como tonto, “caipira”, distraído, tagarela e desastrado. Ele representa a etnia alemã, gosta de jogar futebol, e tem um primo autista, o Davi. O espaço dedicado aos personagens, no entanto, é pequeno, e dificulta o aprofundamento de suas personalidades.

A revista Nosso Amiguinho é a publicação infantil adventista mais destacada no Brasil, e nunca pretendeu uma abordagem proselitista. Mesmo assim, desde seu lançamento oficial na década de 1950, ela veiculava um discurso moralmente conservador, alinhado à tendência pedagógica tradicional daquela década, como já demonstrou Karina Kosicki Bellotti, professora de história na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Thiago Cezimbra Padilha, mestrando em Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), identifica algo semelhante ao analisar um corpus de 12 volumes, datado de 2023. Em resposta à Zelota, embora não classifique a revista a partir da disputa conservadores vs. progressistas, ele entende que o periódico comunica valores morais cristãos implícita ou explicitamente. Em termos gerais, o máximo que pode ser dito é que a revista reforça ideias de “moral, família e pátria”. 

O caráter dos personagens está cativo a essa perspectiva: “para haver interação entre os personagens, é preciso que haja diferenças de posturas. Cada personagem traz uma representação da criança na visão da IASD”, explica Thiago. Mesmo assim, conclui que “todas as histórias buscam incentivar valores considerados positivos pela IASD relacionados à moral, cidadania e família.”

Por ser utilizada com frequência por instituições educacionais brasileiras não confessionais, a revista Nosso Amiguinho apresenta a temática religiosa de forma amena. Em entrevista com os editores da revista, Thiago entendeu que nenhum tema é proibido para a elaboração do conteúdo. Contudo, os temas de sexualidade e identidade de gênero não são tratados diretamente, fator de passível problematização, segundo o estudioso.

Ainda que disponha de uma linha editorial alinhada à filosofia da instituição, a revista Nosso Amiguinho reproduz tendências culturais e ideológicas de sua época.

No passado, por exemplo, os editores da revista poderiam publicar ilustrações chocantes aos leitores atuais: alguns personagens apareciam portando armas, segurando bebidas alcoólicas, indo ao cinema ou mesmo fumando. Mesmo que tais ilustrações não coadunem com a filosofia da instituição, a relação delas com os personagens não foi um impedimento à publicação do material.

Além disso, no decorrer de sua existência, a revista não conseguiu mascarar a existência de ideologias racistas na editora, como já demonstrou o designer e teólogo Jônathas Sant’Ana Luz: além de ilustrar o negro a partir de estereótipos típicos da comédia, entre 1950 e 1970, a revista inseria tais personagens em posições subalternas ou como entretainers (associados a situações burlescas). Dada a oposição oficial da IASD contra o racismo, é provável que a Nosso Amiguinho apenas refletisse nuances da cultura racista da sociedade em que estava inserida.2

Guerra cultural

No dia 29 de julho, em uma coluna de opinião da Folha de S.Paulo, o antropólogo Juliano Spyer questionou se era razoável dizer que o livro de Judith Butler foi retirado das livrarias devido à perseguição da CPB. Para ele, a realidade é mais complexa do que a alegação de que a editora evangélica moveu a ação jurídica como pretexto para impedir a circulação do livro; e concluiu que o campo progressista inventa cruzadas contra um inimigo que não conhece.  

Spyer afirmou que a IASD fica encantada com a possibilidade de ocupar o Estado brasileiro de modo a cristianizá-lo, e que persegue internamente os funcionários que resistem aos seus propósitos. Mas o antropólogo minimizou a ideia de que o processo da CPB possa ser atribuído a uma guerra cultural.

Ao falar sobre a revista Nosso Amiguinho, Spyer cita Jônathas Luz — já mencionado — para afirmar que o periódico tinha viés “mais educativo que religioso”, a exemplo de atividades que ensinavam a tocar música popular brasileira. A fonte de Spyer provavelmente foi um tweet de Jônathas, em 2022, publicado na época em que a IASD censurou o videoclipe de um grupo musical por promover samba — um gênero da música brasileira historicamente demonizado pela denominação por motivações racistas e anticomunistas.

Spyer pode ou não ter lido o trabalho de Luz, mas está claro que ele não conhece o contexto conturbado que possibilitou a publicação do estudo que mencionou. Em 2021, a Editora Universitária Adventista (Unaspress) preparava o livro acadêmico Adventismo e quadrinhos, na qual foi divulgado o capítulo “O Cazuza nunca diz não: uma reflexão sobre a representação do negro na revista Nosso Amiguinho”, de autoria de Jônathas Luz. O material apresentava imagens da revista para ilustrar a análise, que tinha como tema as representações racistas do personagem Cazuza.

“Cazuza”: Captura de um vídeo do YouTube.

De acordo com um antigo administrador da Unaspress, que preferiu não se identificar, o departamento jurídico da CPB vetou a utilização das imagens no artigo de Jônathas por conta de restrições de direitos autorais. Ele alegou ter participado da “treta” — em suas palavras — que envolveu a publicação do livro, e gerenciado especialmente os problemas que envolviam o capítulo de Jônathas: “ao invés de a gente mostrar a figura da revista Nosso Amiguinho, tivemos que arrumar alguém para fazer uma descrição daquela figura, porque era da CPB, e ela não tinha autorizado”, explica.

A obra fazia parte do esforço da Faculdade Adventista de Teologia (FAT) junto à Unaspress e ao Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP) para a abertura de um mestrado teológico reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC). Para cumprir com esse objetivo, os docentes da FAT deveriam divulgar suas pesquisas em diferentes editoras, e não apenas aquelas ligadas à IASD. Ainda que prejudicado, o livro foi veiculado pela parceria entre as editoras Unaspress e Pluralidades.

A revista Zelota entrou em contato com a CPB através dos contatos convencionais disponíveis ao público e, posteriormente, com o departamento de marketing da editora. Em todas as tentativas a revista não obteve respostas até a data de publicação desta matéria. As perguntas enviadas foram as seguintes:

  1. Por que a CPB não entrou em contato com a Boitempo, de forma amistosa, para retirar o personagem da capa do livro de Judith Butler, mas exigiu a apreensão do material e uma indenização?  
  2. Por que a CPB, já na ação inicial, não abriu espaço para o diálogo com a Boitempo? 
  3. Qual foi o valor solicitado pela CPB como indenização? 
  4. A CPB costuma exigir que os personagens da Turma do Nosso Amiguinho não sejam associados a ideologias que a instituição adventista não defende? Como ela faz isso? 
  5. Em quais circunstâncias uma publicação (seja popular ou acadêmica) pode carregar uma ilustração ou personagem da CPB sem ser alvo de processos?
  6. Qual a filosofia da CPB em relação à sexualidade humana e à ideologia de gênero? 
  7. A revista Nosso Amiguinho é utilizada para expressar os ideais da igreja adventista a respeito da sexualidade humana?
Notas:

1. Dana Stevens. “Rejecting the Binary.” Slate.com, 19 de março de 2024. https://slate.com/culture/2024/03/judith-butler-afraid-gender-book-explained.html

2. Jônathas Sant’Ana Luz, “O Cazuza nunca diz não: uma reflexão sobre a representação do negro na revista Nosso Amiguinho” In: Allan Novaes e Felipe Carmo, Adventismo e quadrinhos: representações da tradição adventista na arte sequencial (Engenheiro Coelho: Unaspress; Pluralidades, 2022).