O adventismo no Brasil reflete uma aliança histórica com valores coloniais republicanos, ignorando lutas populares e reforçando ideais políticos do imperialismo ocidental


Segundo texto da série “Como o adventismo me fez comunista? Dialética do fim dos tempos e hipocrisia adventista”. Leia aqui a parte 1.

Os operadores de sentido do tempo do fim adventista referem-se, objetivamente, aos fatos da história estadunidense e ocidental. O decreto dominical que os adventistas tanto temem, bem como sua leitura apocalíptica sobre o sábado, são produto da disputa política americana e dos fenômenos religiosos da última década do século 19. Enquanto super protestantes contra as leis azuis, os adventistas não deixaram de se posicionar favoráveis a um outro tipo de “América Cristã”, pois Ellen G. White insistiu em destacar o princípio “protestante e republicano” da Constituição americana1; afinal, este patriotismo com características religiosas é o fundamento da nação ocidental-estadunidense. É justo seu domínio porque foram eles os eleitos por Deus para civilizar a América, é o “Destino Manifesto” da nação escolhida.

Colonização no tempo do fim o Brasil do século 19

Por interesses econômicos, ambição política, orgulho nacional, aventureirismo jornalístico e zelo religioso, no final do século 19,  o Destino Manifesto tornou-se a justificativa para a expansão e o domínio dos EUA em escala mundial. Com a guerra hispano-americana e a independência de Cuba, em 1898, a ideia de uma “América para os americanos” consolidou o imperialismo estadunidense através da política do Big stick. Para os religiosos da época que defendiam o expansionismo, inclusive com o uso da força, tal ação era inevitavelmente necessária, pois somente o “novo imperialismo — o imperialismo da liberdade” poderia educar “raças semicivilizadas” rumo ao autogoverno.2

Neste contexto, o missionarismo americano tomou força e se expandiu para fora dos EUA. Ao analisar tais movimentos enviados para a China neste período, Paul A. Varg concluiu, “o movimento missionário e o imperialismo eram rodas movidas pela mesma energia explosiva gerada por um senso de superioridade, dever moral e satisfação do ego a ser obtida no desenvolvimento das áreas subdesenvolvidas do mundo”.3 Guiados desde a colonização pelo patriotismo religioso que assegurou a separação entre Igreja e Estado como um valor americano, os missionários acreditavam que isso produziria as mesmas “bênçãos” para outras nações. Com isso, ao se encontrarem identificados completamente com os sistemas políticos e econômicos de seu país, ainda que inconscientemente, os missionários americanos transportavam com eles toda a sua bagagem cultural, de modo a dar início a uma nova colonização.4

Aqui cabem as perguntas feitas por Jonathan Butler na Spectrum Magazine de 1979:

Como o americanismo da escatologia adventista funciona fora da América da qual emergiu? O mundo, é claro, agora inclui muito mais do que a “cristandade” da época de Ellen White. Ele inclui tanto o não ocidental como o não cristão. Será que esperamos, por exemplo, que o “mundo inteiro” que se maravilha após a besta papal inclua russos, maoístas chineses ou soviéticos?5

Essas questões são fundamentais para o adventismo refletir qual é a verdade presente para o tempo e para a geografia em que está inserido atualmente. Coisa que a elite cultural do advento no Brasil está pouquíssima interessada em fazer, pois isso causaria consequências extremamente subversivas à ordem em que escolheu se acomodar. É melhor e mais cômodo dar continuidade à colonização dos condenados do que engajá-los pela emancipação e libertação de sua terra.6

Ao exportar a interpretação estadunidense sem considerar o contexto político e econômico que originaram as repúblicas liberais-oligárquicas na América Latina, os ideais protestantes sobre liberdade republicana se tornaram um prato cheio ao imaginário adventista. O Brasil, que abandonou o catolicismo como religião oficial somente após a proclamação da República, em 1889, tornou-se a prova cabal de que “não há liberdade de expressão […] onde Roma governa”.7 Poucas semanas após o 15 de novembro, a Review and Herald declarou: o Brasil “entrou em linha com outras nações livres dos tempos modernos e tornou-se uma república”.8 Sem nenhuma consideração quanto à conjuntura golpista em que a república brasileira foi proclamada, e para comemorar o 36º aniversário da “data auspiciosa”, o periódico O Atalaia9 descreveu que “desde os tempos do Brasil colônia” existe no país o desejo da liberdade republicana. Conforme descreve o periódico, ao dirigir-se para o campo de Sant’Ana, o marechal Deodoro da Fonseca obteve “adesão imediata do povo”; “estava, pois, republicana toda a América” e “enorme foi o surto de progresso que se verificou no Brasil” após tal feito; “sem violência, separou a Igreja do Estado, permitiu todos os cultos, secularizou os cemitérios” além de proporcionar “o saneamento das principais cidades” e extinguir a febre amarela. A imagem do Museu Republicano acompanha toda a versão com a descrição: “Convenção de Itu, 1873”.10

O Atalaia, nov. 1925, p. 3.

A compreensão do adventismo é nitidamente a reprodução do ideário ufanista que inspirou Benedito Calixto a pintar Proclamação da República em 1893. Com personagens alinhados, o plano geral da cena nos transmite a sensação de ordem pública; comunica a falsa percepção de que o surgimento do regime republicano no Brasil foi um desfile cívico e não um golpe militar. Contudo, longe de uma “adesão imediata”,11 o povo “assistira a tudo bestializado”, estando completamente ausente daquele momento histórico.12 Além disso, ao citar as modernizações urbanas trazidas pela república, O Atalaia reproduz a concepção higienista da época. Esta, por sua vez, entendia que doenças infectocontagiosas como cólera, varíola e febre amarela deveriam ser combatidas à força pela imposição de padrões de higiene pessoal, campanhas de vacinação e saneamento urbano às classes populares. Isso sem considerar como o darwinismo social foi utilizado nas modernizações para legitimar a imposição do progresso republicano sobre os marginalizados.13 Curiosamente, o ideal republicano uniu adventistas e darwinistas sociais.

Proclamação da República, Benedito Calixto, 1893.

Entretanto, diferente de uma interpretação favorável à ideologia dominante, o arraial de Canudos entendeu o Apocalipse e o tempo do fim de uma perspectiva popular. Ao apontar as injustiças e as misérias de uma sociedade rural comandada por coronéis, Antônio Conselheiro profetizava um mundo de felicidade e fartura que surgiria após o “fim dos tempos”; depois que o “sertão virasse mar, e o mar virasse sertão”.14 Insurgente “contra a Igreja romana”, a qual “perdeu sua glória e obedece à Satanás”, Conselheiro apregoava: 

Na hora nona, descansando no monte das Oliveiras, um dos seus apóstolos perguntou: Senhor! Para o fim desta idade que sinais vós deixais? Ele respondeu: muitos sinais na Lua, no Sol e nas Estrelas. Há de aparecer um Anjo mandado por meu pai terno, pregando sermões pelas portas, fazendo povoações nos desertos, fazendo igrejas e capelinhas e dando seus conselhos […] Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas do mar D. Sebastião sairá com todo o seu exército [e então virá o fim]. Neste dia, quando sair com o seu exército tirará a todos no fio da espada deste papel da República.15

Localizados ao norte da Bahia, o contexto de Canudos no final do século 19 estava bem longe do fantasioso progresso republicano consagrado pela imprensa adventista. Com o advento da República, em meio a crises cíclicas de seca e desemprego crônico, os peregrinos do sertão baiano assistiam a um aumento constante da cobrança de impostos sem nenhuma consideração às dificuldades que enfrentavam. Apoiados sob as denúncias de Conselheiro, concluíram que a República, e tudo o que ela reivindicava, representava o “mal na terra” a  ser combatido, o que culminou num conflito de nível nacional entre 1893 e 1897.16 Neste período, ecoando o retrato de uma mera reação monarquista que a imprensa republicana fazia de Canudos, os adventistas simplesmente reproduziram o discurso oficial do regime: Canudos era um exemplo da barbárie contra a civilização, um atraso contra a modernidade.17

Referindo-se aos sertanejos como um “movimento revolucionário em curso”, a Review and Herald afirmou que “a presença de um grande número de pessoas ansiosas pela restauração da monarquia é muito perturbadora para a paz do Brasil”.18 Segundo Huldreich F. Graf, um “padre católico que professa ser Cristo ganhou centenas de adeptos e causou muitos problemas ao governo”.19

Os revolucionários religiosos estão espalhando a devastação e a ruína no estado da Bahia, no Brasil. Como a sua religião não é mencionada nos despachos da imprensa, e como se diz que são monarquistas, podemos concluir que são católicos, cujos maus actos são parcialmente cobertos pela imprensa simpática sob o controle jesuíta.20

Embora a autoridade religiosa de Conselheiro não tivesse reconhecimento e muito menos apoio da Igreja Católica,21 isso pouco importava para a conclusão adventista. Com o fim do conflito que causou milhares de mortes, incluindo mulheres e crianças que, mesmo após o acordo de se entregarem, foram degolados, Frederick W. Spies escreveu: “a revolução que está em curso no estado da Bahia há mais de um ano finalmente terminou, as tropas federais saíram vitoriosas, e Conselheiro, o falso messias e líder, foi morto no confronto final, e seus seguidores feitos prisioneiros ou espalhados”.22

É óbvio que julgar as fontes adventistas e cobrar delas coerência por apoiar o progresso higienista da república, o qual foi sustentado pelo darwinismo social, ou acusá-las por sua posição elitista contrária a Canudos, não faz parte do ofício de um historiador sério. Todos são filhos do seu próprio tempo. O que devemos fazer é tentar compreender a produção das fontes do ponto de vista de sua própria época.23 Portanto, é justamente para a defesa do adventismo que todas as suas interpretações ou doutrinas bíblicas devem ser compreendidas historicamente, isto é, dentro dos significados de um posicionamento político inscrito numa época e lugar.24 Neste caso, o local histórico em que se produzia a cultura adventista estava bem longe de levar em conta os valores do povo brasileiro (será que ainda não estão?).

Quando Luiz Waldvogel cita O papa e o concílio de Ruy Barbosa na Revista Mensal (atual Revista Adventista) de 1931, ele o faz  porque os discursos e análises de Barbosa falavam a mesma língua quanto aos ideais políticos e religiosos que os adventistas importam dos EUA. Barbosa era palatável à ideologia dominante na qual a elite cultural do advento costuma surfar.

A ponta pequena — “Nenhum, fora daqui, ignora que a igreja pontifícia de hoje é uma organização universal, uma ambição universal, um plano universal. As evoluções da sua táctica na França, na Bélgica, na Alemanha, na Helvécia, na Itália, na Espanha, hão de reproduzir-se, e estão se reproduzindo já, segundo a mesma estratégia, na América, no Brasil. As feições do papado serão sempre identicamente as de agora, cada vez mais acentuadas ” — Ruy Barbosa (O Papa e o Concílio, 10). […] o romanismo não é uma religião mas uma política, e a mais viciosa, a mais sem escrúpulos, a mais funesta de todas as políticas”.25

Para Waldvogel, Ruy Barbosa era uma figura tão ilustre que, em sua escrivaninha, além de livros do jurista, havia um busto de seu rosto (o que parece ser normal aos adventistas, diferente da imagem de Nossa Senhora Aparecida — vista como idolatria e paganismo —, ou de um busto de  Marx, Engels e Lenin — interpretado como idolatria secular ou “vã ideologia”). Waldvogel talvez não tenha percebido que o adventismo também não é apenas uma religião; pode ser uma política tão viciosa e funesta quanto o romanismo que ele critica.

Fotos tiradas do Centro Nacional da Memória Adventista entre 2018-2019 (CNMA-UNASP, campus Engenheiro Coelho).

A posição republicana do adventismo no Brasil vai além de uma simples afinidade com um ícone do período da Primeira República (1889-1930). Com a composição do hino Liberdade de Tuiu Costa e Ricardo Martins, popularizada na voz de Laura Morena (CD Manhã, 2009), fica claro que nunca foi problema para o adventismo se articular com valores políticos. Contanto que eles estejam de acordo com a elite cultural do advento (e com a colonização em curso), servem muito bem à pregação das “três mensagens angélicas”. Antônio Conselheiro foi um louco, Ruy Barbosa um gênio. Enquanto Clareou representa o mundo na igreja, o hino da república pode facilmente se converter em um símbolo da liberdade cristã. A hipocrisia adventista adora homenagear a “alta cultura” e faz questão de odiar tudo o que é produzido pelo povo. A bem da verdade, a elite cultural do advento odeia a identidade do povo brasileiro.

Hino da RepúblicaLiberdade
[…] Seja um hino de glória que fale
De esperança de um novo porvir
Com visões de triunfos embale
Quem por ele lutando surgir
Liberdade, liberdade
Abre as asas sobre nós
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz
[…]
[…] Jesus, preso àquela cruz
Para o homem se libertar
Jesus grita em angústia
Para o homem pra sempre cantar
Liberdade, liberdade
Abre as asas sobre nós
Nas lutas, na tempestade
Pra que ouçamos tua voz […]

Entre o Império e o desejo de liberdade

O golpe que proclamou a república é um dos feitos heróicos do mito criado pelas Forças Armadas no imaginário social brasileiro. Segundo ele, o “Exército está sempre presente e atuante nos momentos decisivos da vida nacional”.26 Portanto, não é espanto algum que os adventistas também tenham se posicionado favoráveis ao golpe e à ditadura instalada em 1964. Se, conforme disse o Atalaia,27 Deodoro da Fonseca proclamou a república porque este era o desejo do povo, por que seria diferente em 1964? “As Forças Armadas intervêm dizendo-se sempre identificadas com o “povo” ou a “nação”, a quem representam; é essa identificação que legitima suas intervenções”.28 Talvez esta fosse a verdade presente para salvar o Brasil do comunismo, afinal o adventismo em nosso país está acorrentado aos valores, às interpretações e aos significados do Império (parece até se esquecer que sua interpretação profética prevê uma perseguição que será encabeçada pelos EUA — a besta que emerge da terra). Tanto o Exército Brasileiro quanto o adventismo em nosso país vivem deste cinismo: dizem estar ao lado do povo, enquanto perseguem, desprezam e destroem tudo o que produzimos.

Como gosta de relembrar a memória institucional, o adventismo conseguiu se inserir no Brasil graças à população alemã que chegou no final do século 19. A imigração preparou o caminho para a verdade ao trazer pessoas “de palavra, disciplinadas, trabalhadoras e religiosas”. Quem sabe o branqueamento eugenista também não estava nos planos de Deus para trazer o adventismo ao Brasil, elevar o padrão de vida e acabar com a vagabundagem latente de nosso povo?29 

Ser adventista na América Latina significa valorizar aquilo que é branco e ocidental, pois a chancela cultural do advento funciona do Norte para o Sul, da elite aos subalternos, dos civilizados aos incivilizados, dos que se acomodaram com a exploração deste século aos que lutam por sua superação; em síntese, o adventismo brasileiro está dividido entre aqueles que insistem em usar a Bíblia para escravizar contra os que a mantém para insuflar o desejo de libertação.

Notas:

1. WHITE, Ellen G. Testemunhos para Igreja, v. 5, 2004, p. 431.

2. HANDY, 1991, p. 77-80.

3. VARG, Paul A. Missionaries, Chinese, and Diplomats: The American Protestant Missionary Movement in China, 1890-1952. Princeton: Princeton University Press, 1958, p. 81-82.

4. HANDY, 1991, p. 84-85.

5. BUTLER, Jonathan. “Ellen White’s World and the End of the World”, Spectrum Magazine, n. 2, v. 10, Aug. 1979. Tradução de André Reis, PhD, p. 1.

6. FANON, Frantz. Os condenados da terra. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2022, p. 61-64.

7. Advent Review and Herald of the Sabbath. “Roma in Europe and America”, n. 23, v. 45, jun. 1875, p. 179.

8. Advent Review and Herald of the Sabbath. “FOREIGN”, n. 47, v. 66, nov. 1889, p. 749.

9. WALDO, Lucio. “Uma data auspiciosa”. O Atalaia, nov. 1925, p. 3.

10. WALDO, Lucio. “Uma data auspiciosa”. O Atalaia, nov. 1925, p. 3.

11. Ibid.

12. NAPOLITANO, Marcos. História do Brasil República: da queda da Monarquia ao fim do Estado Novo. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2021, p. 13-14.

13. Ibid., p. 41-42.

14. Ibid., p. 23; e CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Três, 1984, p. 99.

15. CUNHA, 1984, p. 98-99.

16. NAPOLITANO, 2021, p. 22-23.

17. SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 334.

18. Advent Review and Herald of the Sabbath. “Editorial notes”, n. 17, v. 74, Apr. 1897, p. 272.

19. GRAF, H. F. “Brazil”. Advent Review and Herald of the Sabbath. n. 22, v. 74, Jun. 1897, p. 347.

20. Advent Review and Herald of the Sabbath. “Items”, n. 06, v. 74, Feb. 1897, p. 94.

21. SCHWARCZ; STARLING, 2018, p. 333.

22. SPIES, F. W. “Brazil”. Advent Review and Herald of the Sabbath. n. 52, v. 74, dec. 1897, p. 331.

23. BLOCH, Marc Leopold B. Apologia da história: ou Ofício de historiador. 1 ed. Rio de Janeiro, Zahar, 2001, p. 51-60.

24. Ibid., p. 125-147.

25. WALDVOGEL, Luiz. “Notas e Ilustrações”. Revista Mensal, n. 02, v. 26, fev. 1931, p. 15.

26. BORGES, Vavy P. Tenentismo e revolução brasileira. 1 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992, p. 235.

27. WALDO, nov. 1925, p. 3.

28. BORGES, 1992, p. 235.

29. STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005, p. 48 e 53.