Relações do ministério independente Terceiro Anjo com a Igreja Adventista demonstram apoio tácito da igreja mundial a ultraconservadores


Por André Kanasiro e Felipe Carmo | editores-chefe da revista Zelota. Matéria elaborada em parceria com a Spectrum Magazine.

Adventistas de diversos contextos questionam o aparente silêncio e suposta indiferença do corpo administrativo da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) a respeito da Campal Terceiro Anjo, realizada em Sumaré, São Paulo, em 17-21 de abril deste ano. A ausência de resposta surpreende, considerando o histórico de desconfiança da IASD quanto a ministérios independentes, como Terceiro Anjo, e o fato de que os organizadores do evento o divulgaram de forma pública, expondo ao menos três outdoors pelas principais estradas que levam ao Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). Um deles chegou à cidade vizinha — Artur Nogueira.

O Terceiro Anjo se identifica como um ministério adventista independente. Eles operam uma estação de rádio na capital brasileira, uma lancha médico-missionária equipada como base de operações no rio Amazonas, e um canal de TV online que retransmite conteúdo da Amazing Facts, apresentando figuras como Doug Batchelor, Walter Veith e Barbara O’Neill. O Terceiro Anjo mantém uma relação estreita com a Amazing Facts Brasil, uma empresa e website pertencentes a Sofiane Viegas Hoover, esposa de um dos membros da equipe do Amazing Facts EUA, Ryan Hoover.

O acampamento promoveu uma Teologia de Última Geração com uma tendência distintamente perfeccionista, rejeitada oficialmente pela IASD. No entanto, quando adventistas da região foram questionados para a redação deste artigo, houve a percepção de que eles tanto não tinham conhecimento do evento como eram indiferentes a ele.

Reconsiderando o histórico de distanciamento

Desde os anos 1980, a Divisão Norte Americana (NAD) tem se distanciado oficialmente de ministérios como Terceiro Anjo — especialmente os que acusam a denominação de apostasia.1 Apesar da censura, ministérios similares continuaram a surgir na América Latina, frequentemente questionando a identidade “remanescente” da igreja com acusações teológicas, referindo-se a ela como “Babilônia” por conta do supostos desvios morais e doutrinários de seus líderes. Em São Paulo, por exemplo, grupos dissidentes como os Nazarenos, Bereanos e Adventistas Históricos apareceram. Mas a preocupação com tais movimentos não foi formalizada no Brasil antes de 2010.2

Em 2011, esse crescente desconforto foi destacado em um documento publicado pela Divisão Sul-Americana (DSA) com o título “Unidade de Doutrina e Missão”, publicado na Revista do Ancião, um periódico trimestral da Casa Publicadora Brasileira (CPB).3 Além disso, teólogos de influência no Brasil, como Amin A. Rodor e Alberto R. Timm, conduziram os esforços da instituição para conter tais movimentos por meio da literatura. Desde então, a igreja trata grupos dessa natureza com profunda desconfiança.

A animosidade latente da IASD contra os ministérios independentes cresceu ao passo que grupos teologicamente heterodoxos minavam a credibilidade da igreja, dividiam os membros e desviavam o dízimo4 para, ao mesmo tempo, manter seu esquema de autossustento e enfraquecer uma estrutura que beneficia as elites adventistas. No entanto, seja por meio do desvio dizimal ou outras fontes de financiamento, esses movimentos se multiplicaram, mesmo estigmatizados como “seitas dissidentes”.

Embora os ministérios independentes com frequência desafiassem a ortodoxia adventista, havia a noção de que a teologia adventista possuía assuntos doutrinários não resolvidos, conferindo espaço para opiniões diferentes. Contudo, a descentralização de recursos era algo inviável. Os dízimos deveriam ser devolvidos unicamente para a igreja. 

Atualmente, o discurso antissectário no adventismo não se limita aos assuntos doutrinários; ele abrange grupos que sugerem uma relação mais flexível com a cultura e a política.5 De sua parte, os ministérios independentes contemporâneos passaram a ter uma abordagem mais amistosa para com a denominação. Eles praticamente abandonaram a demonização da igreja; e a despeito de algumas distinções doutrinárias, muitos se posicionam como parceiros da denominação para a pregação do evangelho.

Um exemplo disso é a “Escola dos Profetas”, um dentre os 19 ministérios afiliados ao Outpost Centers Internacional (OCI) — uma organização-guarda-chuva adventista independente que “facilita o apoio de projetos missionários confiáveis”, e atua como um “suporte” da igreja oficial, recebendo milhões de dólares em doações públicas anualmente. A fundadora da Escola dos Profetas, Maiza Ribeiro, é uma pregadora adventista que, no início da década de 2000, tornou-se famosa entre os brasileiros por sua Teologia de Última Geração e perfeccionismo, beirando a dissidência aberta. Seu ministério atualmente opera em um complexo rural que hospeda e treina missionários adventistas leigos, definindo-se como um ministério de apoio da União Nordeste Brasileira (UNEB). 

A indiferença notada entre os adventistas locais a respeito da Campal Terceiro Anjo pode refletir esse novo tipo de relacionamento — tanto doutrinário quanto administrativo — entre a igreja adventista e os ministérios independentes.

As pessoas por trás das organizações

Um olhar atento ao Terceiro Anjo demonstra que ele faz parte de uma rede densa de ministérios independentes com relações institucionais e culturais, tanto formais quanto informais, com a IASD. Na programação de sexta-feira à noite da campal, o organizador dedicou um momento para homenagear o pastor jubilado, Gerson Pires, ex-professor de Pedagogia e Teologia do UNASP, ex-coordenador do Curso de Bacharelado em Teologia no Centro Universitário do Instituto Superior de Teologia Aplicada (UNINTA), em Sobral, Ceará, e avô paterno de Sofiane Hoover, que se graduou em Enfermagem pela UNINTA. Em 1976, Gerson chegou a levar o coral adolescente do UNASP para homenagear publicamente o ditador militar Ernesto Geisel, e seu irmão, Dario Pires de Araújo, foi um dos principais responsáveis pela demonização de “músicas africanas” no adventismo brasileiro.

Documentos públicos da Receita Federal apresentam como contato formal do Terceiro Anjo o contador e ex-militar Izaias Modesto Garcia; ele também aparece como contato da Editora Pioneiros, uma empresa pertencente a um dos membros do conselho do Generation of Youth for Christ Brasil (GYC), Uriel Lemes Vidal. De acordo com a Receita Federal, tanto o Terceiro Anjo quanto o escritório de contabilidade de Garcia estão localizados no “Lagoa Bonita I”, um condomínio próximo ao UNASP, residência para pastores e administradores jubilados. Vidal também é dono do ministério independente e centro de treinamento Madison Missionary School, por meio do qual foi recebido o pagamento das inscrições da última campal do GYC Brasil. Com exceção do Terceiro Anjo, todas essas organizações estão filiadas ao OCI.

Ainda que não exista evidência de um suporte financeiro formal, a Campal Terceiro Anjo se organizou de forma similar aos padrões da IASD oficial, sendo sediada — ao menos nos últimos dois anos — na Estância Árvore da Vida, em Sumaré, São Paulo, um local regularmente alugado para eventos oficiais da IASD, como aventuris.

Outro ministério, o GYC Brasil, tem sediado suas campais em instituições adventistas desde 2020, apesar de desconfianças persistentes. No ano passado, o evento ocorreu no UNASP. De acordo com uma fonte anônima da administração do campus, o centro universitário concedeu seu espaço ao GYC Brasil porque não tinha conhecimento da natureza do evento, e assumiu que ele tinha relações com a DSA. Um dos principais palestrantes na ocasião foi o Pr. Adolfo Suárez, diretor do Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia (SALT). 

Reação relutante

Ao escrever sobre o funcionamento dos ministérios autossustentáveis na IASD, Malcolm Bull e Keith Lockhart observaram que a denominação muitas vezes foi “relutante em agir contra eles”, possivelmente porque “faziam parte da mesma tendência tradicionalista que incluiu a criação da Adventists Affirm, da Adventist Theological Society, de redes independentes como a 3ABN e, de fato, do próprio expurgo da Associação Geral após Glacier View, contra acadêmicos liberais”.6 Mas tais alianças informais foram radicalizadas durante os 15 anos de liderança do presidente da Associação Geral (AG), Ted Wilson, a tal ponto que apoiadores de destaque de ministérios independentes de extrema direita, com viés conspiratório, fazem parte da comissão executiva da AG.

Essa simbiose tácita beneficia ambos os lados. Embora possa exigir que os ministérios independentes não aceitem abertamente dízimos, ela lhes concede acesso à infraestrutura da igreja, a recursos e, acima de tudo, a legitimidade. Ao mesmo tempo, líderes conservadores hegemônicos da IASD podem travar guerras culturais indiretas contra “liberais” e “progressistas” dentro da igreja sem se associar abertamente a grupos extremistas de direita.Essas organizações independentes, como observa o acadêmico adventista Haller E. S. Schünemann, estão em mobilização permanente contra o que percebem como um inimigo organizado.7 Na batalha pública pela identidade adventista, a tendência constante em direção a posições ultraconservadoras permite que o conservadorismo da AG seja percebido como moderado, além de impedir qualquer avanço em direção a variantes mais progressistas do adventismo. É uma relação simbiótica em que um organismo não consegue sobreviver sem o outro.

Notas:

1. North American Division Seventh-day Adventist Church, Issues: The Seventh-day Adventist Church and Certain Private Ministries (International Bible Society, 1984). Disponível em: https://ia904607.us.archive.org/12/items/issues-seventh-day-adventist-1993/issues–the-seventh–day-adventist-church-and-certain-private-organizations—tract.pdf

2. Divisão Norte Americana, “Uma avaliação da atitude de alguns ministérios independentes,” Revista Parousia, p. 75-89, 1º semestre de 2008; “Relatório sobre a organização Hope International e grupos associados,” Revista Parousia, p. 91-96, 1º semestre de 2008.

3. Alberto R. Timm, “Ministérios Independentes,” Revista do Ancião, jul.set, 2011, p. 29.

4. Em 1998, por exemplo, cinco ministérios adventistas independentes — entre ele a OCI — receberam mais de 20 milhões de dólares em doações públicas, muito provavelmente um dinheiro que seria destinado ao dízimo. Malcolm Bull & Keith Lockhart. Seeking a Sanctuary: Seventh-day Adventism and the American Dream (Indiana University Press, 2006), p. 343. Kindle Edition.

5. Cf. T. D. de Souza, Ameaças contemporâneas ao adventismo: esses e outros ensaios (São Paulo: Editora Dialética, 2022); Alberto R. Timm, “Ventos de doutrina,” Revista Adventista, out., 2019, p. 12-15; Marcos de Benedicto, “A arte de discordar,” Revista Adventista, mar., 2019, p. 2; and Marcos de Benedicto; Márcio Tonetti, “Os novos críticos,” Revista Adventista, mar., 2019, p. 12-1.

6. Seeking a Sanctuary: Seventh-day Adventism and the American Dream, p. 345.

7. Haller E.S. Schünemann, “O Tempo do Fim”: uma história social da IgrejaAdventista do Sétimo Dia no Brasil (Universidade Metodista de São Paulo: tese de doutorado, 2002), 398.