Por Gercyane Oliveira e André Kanasiro | Gercyane é estudante de Ciências Sociais na UNIFESP e militante da UJC (juventude do PCB)

O sofrimento do Afeganistão é há décadas terreno fértil para todo tipo perverso de oportunistas. O mais conhecido deles é o império conhecido como Estados Unidos — sob o pretexto de combater o Taliban e o terrorismo islâmico, os militares estadunidenses passaram os últimos 20 anos no país. Longe de ajudar na reconstrução do país, os EUA terminaram de destruí-lo: a exportação de ópio disparou durante a ocupação militar, tornando o Afeganistão um dos mais notórios narcoestados do mundo. O suporte financeiro ao país também refletiu as prioridades dos invasores — dos mais de 2 trilhões de dólares gastos com a guerra no Afeganistão nesses 20 anos, somente 3 bilhões passaram pela ONU como verba para ajuda humanitária. A maior parte do dinheiro foi entregue aos militares e gasta de maneiras escusas, chegando a financiar o estupro de crianças e o assassinato de quase 50.000 civis. Ironicamente, a narrativa ocidental mais popularmente utilizada para justificar tal invasão e décadas de guerra, exploração e desalojamentos tem sido “salvar” as mulheres afegãs. Ao trazê-las para a atenção dos meios de comunicação ocidentais como “vítimas perfeitas” vestidas de burca, os principais meios de comunicação ocidentais procuraram sempre usar a opressão do Taliban contra as mulheres para saltar a conclusões islamofóbicas, tática estabelecida formalmente pela própria CIA

Felizmente, a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) no Afeganistão não parece compartilhar desse oportunismo. Apesar de não existirem dados disponíveis para o número de membros batizados no país, a Universidade de Loma Linda (LLU) mantém há anos uma parceria com o governo afegão, dando suporte à formação de profissionais da área da saúde. A Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA) também tem estado presente no país, atendendo a refugiados internos e grupos vulneráveis no inverno rigoroso de Cabul, e trabalhando com instituições educacionais na província de Bamiyan. Curiosamente, a falta de interesse do governo norte-americano na reconstrução do país também se reflete na ADRA: enquanto 40% das doações para a ADRA mundial via ONU são dos EUA, não há um centavo estadunidense direcionado aos seus projetos no Afeganistão. Estes são sustentados principalmente com recursos dos governos da Alemanha e do Japão.

Gráficos apresentando a proporção de doações para a ADRA mundial e para projetos da ADRA no Afeganistão, ambas via ONU. Enquanto os EUA são responsáveis por 39,4% das doações para a ADRA mundial, não há registro de doações para seus projetos no Afeganistão. Fonte: FTS | UNOCHA

O mesmo não pode ser dito de alguns adventistas brasileiros, que seguem o coro evangélico e transformam a tragédia afegã em uma chance para destilar machismo e islamofobia de uma só vez. Nas últimas semanas, certos influenciadores evangélicos têm se aproveitado das dores alheias para exaltar sua própria fé e atacar tanto o Islã quanto o feminismo. De acordo com o historiador Tariq Ali, as mulheres afegãs tinham dois inimigos, e agora têm um: com a saída do exército dos EUA, resta enfrentarem o Taliban. Enquanto isso, de acordo com nossos pseudoespecialistas evangélicos, o inimigo destas mulheres é a religião muçulmana, e só o cristianismo pode salvá-las.

No entanto, a realidade das mulheres afegãs é que, apesar das barreiras impostas pelo Taliban, elas continuam a ser as mais resistentes e destemidas líderes da sua própria libertação. Esta narrativa imperialista e violenta nunca serviu verdadeiramente os interesses das mulheres afegãs mas, pelo contrário, apenas exacerbou os efeitos de longa data da intervenção ocidental. As mulheres afegãs não precisam, não precisarão e nunca precisaram da falsa solidariedade violenta por parte da intervenção ocidental. A cultura ocidental não é o auge da libertação humana, e está na hora de pararmos de agir como se fosse. A mulher afegã não precisa se conformar com quaisquer outros padrões a não ser os seus próprios.

Como se mede a liberdade das afegãs?

Post comparando as mulheres afegãs antes e depois do Taliban. Fonte: Twitter.

Estas fotos estão circulando nas redes sociais em geral, para demonstrar o horror que acontecerá com as mulheres afegãs, mostrando-as vestidas em burca, enquanto as moças da foto do lado direito representam o Afeganistão dos anos 70, mulheres livres para usar minissaias e não usar o véu. Este não é um bom ponto de partida para se discutir e conhecer a questão feminina no Afeganistão, porque presume que o vestuário ocidental é moderno e libertador e que o hijab é seu extremo oposto… apenas a mulher afegã deveria poder escolher o que vestir. É precisamente este disparate utópico e esta imposição cultural que justificou os EUA em suas invasões para “salvar” o outro, a fim de o modernizar e o levar a valores ocidentais superiores. A ideia de que estas fotografias revelam uma época em que “a mulher era livre” parece associar “a liberdade da mulher” a minissaias. Este é essencialmente o mesmo padrão, embora ao contrário, utilizado por aqueles que medem a liberdade e civilidade das mulheres em termos de quão cobertas elas estão. Em vez de definir a liberdade da mulher em termos de direitos sociais, políticos e econômicos — como alfabetização, acesso ao sistema de saúde, e assim por diante — ambas as posições reduzem a “liberdade” feminina a quanto suas peles estão ou não à mostra. Uma fotografia torna-se tudo o que é preciso para decidir se a mulher é livre ou não? Compartilhar imagens de mulheres afegãs de saias nos anos 70 não serve como um argumento de boa fé. Mostra uma estranha e eterna fantasia e fetichização da cultura ocidental sobre a cultura islâmica e afegã. E tudo o que se faz é mais uma vez objetificar as mulheres. Em vez disso, concentrem-se na educação das mulheres e em seu papel nos assuntos públicos — fatores que prosperaram durante os anos socialistas do país, antes que este fosse destruído pela guerra civil entre facções de Mujahedin financiadas pelos EUA. As mulheres são mais do que a sua aparência externa. Se houvesse mesmo uma preocupação com as mulheres afegãs, não compartilhariam imagens delas de décadas atrás, concentrando-se apenas na sua aparência. 

Além disso, os homens afegãos são igualmente merecedores de empatia e de emancipação: isto deveria ser um fato. Ninguém é livre até que o Afeganistão seja livre, independentemente do gênero. O caso afegão é a quintessência do discurso que pretende salvar as mulheres afegãs dos homens afegãos. Qualquer análise com base no gênero que ignore o colonialismo e o imperialismo resultará inevitavelmente em (muitas vezes) feministas ocidentais armarem uma compreensão rasa do patriarcado para negar a humanidade dos homens árabes colonizados e racializados. Nos recusamos a aceitar um feminismo imperialista que conceitua a ‘misoginia’ através da estrutura ocidental do colonizador como libertadora e o colonizado como opressiva. Nos recusamos a aceitar um feminismo que diz que os homens colonizados não merecem vida. O imperialismo no Afeganistão é uma violência que está se apoiando nas questões de gênero. Parece que o dinheiro foi por todo este tempo investido no Afeganistão e a comunidade internacional ofereceu este novo conceito de democracia, possibilitando que as mulheres frequentassem a escola, e fizessem parte da força de trabalho. O Afeganistão tem uma história de 5.000 anos e tem mulheres em funções de liderança muito antes do Ocidente. As mulheres afegãs não são moeda de troca política. A mulher afegã é o rosto e a força do futuro do seu país. Não deveriam ser beneficiárias de caridade, mas sim mulheres fortes com organização, que com o tipo certo de apoio, o apoio revolucionário, poderiam mudar as suas próprias vidas.

Durante este tempo de discurso exacerbado em torno do Afeganistão e das mulheres afegãs em particular, buscamos aqui chamar a atenção a todos para que tenham estas realidades em mente e se dissociem das histórias criadas para proteger os desejos imperialistas e, em vez disso, compreendam a distinção entre grupos extremistas e a cultura afegã. Este é o problema com a interferência ocidental. Foi a interferência ocidental que incentivou o Islã político reacionário, que é um fenômeno recente e se iniciou na década de 20 do século passado, sendo também um fenômeno diverso e multifacetado. Foi precisamente a interferência ocidental das potências de face “democrática” que colocou os Sa’ud no poder na Península Arábica e promoveu o wahhabismo/salafismo. O Taliban se formou em 1994 a partir de grupos Mujahedins que lutaram contra os soviéticos durante os anos 80 com o apoio dos Estados Unidos, sua liderança tem origem em organizações de estudantes conservadores afegãos. É um grupo de caráter reformista, que tinha como intuito governar a partir da Sharia. Os EUA escolheram o Afeganistão como alvo para dar o primeiro passo na guerra do Iraque. Em outubro de 2001 os EUA invadiram o Afeganistão, sob o pretexto de localizar Osama Bin Laden, mas com a intenção de testar suas capacidades militares em um território que tinha semelhanças com o iraquiano. Não existem evidências cabíveis para que se defenda a continuidade dos EUA na guerra citando alguma obra de infraestrutura importante ou melhoria nos indicadores sociais, especialmente relacionado à questão de gênero: durante 20 anos o povo afegão só sentiu o hálito da morte e destruição. Os Estados Unidos sempre estiveram com a plena intenção de manter tudo o mais desestabilizado o possível. Só no ano passado os EUA lançaram 7.200 bombas em território afegão, o maior número desde 2006. 

Ao mesmo tempo, as intransigentes ONGs de “solidariedade” cresceram significativamente no Afeganistão nos últimos 20 anos, patrocinadas por instituições ocidentais. De acordo com Samia Walid, ativista do grupo RAWA (Associação Revolucionária de Mulheres do Afeganistão, fundada em 1977 por intelectuais afegãs), “as ONGs são uma parte importante da espinha dorsal do imperialismo no Afeganistão, e essa crescente é quase tão perigosa quanto a formação de um governo fantoche no país”. As ONGs são instrumentos político-ideológicos importantes para as potências ocidentais recrutarem os jovens que formarão os futuros governos fantoches do Afeganistão, os quais terão a aparência de um governo moderno e democrático, mas estarão a serviço desses poderes externos. As ONGs também são usadas para sufocar o nacionalismo e possíveis radicalidades revolucionárias da juventude, dando-lhes altos salários e vidas no exterior. Ela acrescenta que “nenhuma dessas ONGs serve ao povo e às mulheres, e que se limitam a slogans de ‘reconstrução’ e ‘ajudar o povo’ para esconder seus verdadeiros propósitos”. 

Essas ONGs possuem slogans esvaziados e genéricos com todos os pré-julgamentos e a arrogância dos “civilizados”, sequestrando o protagonismo e os meios que os verdadeiros interessados criam de modo independente para suas lutas e demandas, e impondo demandas, estratégias e táticas que quase nunca estão adaptadas ao contexto do problema. Que neste momento delicado no Afeganistão apareçam os abutres de sempre, que se aproveitam de tragédias para ressuscitar paradoxais desejos antigos envolvendo uma “guerra de civilizações” e apelam para um discurso envolvendo um suposto legado “judaico-cristão” — como fazem alguns influencers adventistas e evangélicos — e outros pretextos para a violência discriminatória, faz parte da prática do senso comum embebido de ideologia e não nos surpreende.

A questão da Sharia

Alguns mitos sobre a Sharia foram repercutidos na mídia hegemônica no decorrer das últimas semanas, e em todas as vezes que nos deparamos com estes mitos sendo propagados — inclusive por figuras críticas e intelectuais que não podem ser classificadas como reacionários —, a Sharia era tratada como uma contraparte da Bíblia, ou como um conjunto de leis estritamente fechadas. Mas a Sharia, assim como certos dogmas cristãos, é também um campo de disputa ideológica.

A Sharia é frequentemente retratada como bárbara e particularmente regressiva em termos de direitos das mulheres. Normalmente traduzido como “lei islâmica”, Sharia é um amplo conjunto de princípios éticos encontrados no Corão, o livro sagrado do Islã, e nos ensinamentos e ações do Profeta Muhammad (que a bênção e a paz de Deus estejam sobre ele) — são princípios que, quando debatidos e esclarecidos, servem para a formação de leis. Não é um código legal estrito, o que o deixa aberto a várias interpretações por parte de governos e líderes religiosos. O clamor público sobre a Sharia levou a mais de 200 projetos de leis Anti-Sharia sendo apresentados dentro dos Estados Unidos, por exemplo. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu por duas vezes que a Sharia é incompatível com os direitos humanos. Alguns analistas chamaram a Sharia de “outra pandemia” ou doença do mundo, em comparação à COVID-19.

No entanto, muitas mulheres muçulmanas não consideram a Sharia incompatível com seus direitos. Existem pesquisas1 que demonstram como as mulheres estão usando a Sharia para lutar contra práticas opressivas e misóginas. Como a Sharia encoraja uma diversidade de interpretações, não há necessariamente uma maneira certa ou errada de interpretá-la. Mulheres muçulmanas militantes vêem até um feminismo inerente à Sharia. Essas militantes ajudam suas comunidades locais a compreender os direitos das mulheres no Islã. Por exemplo, existem militantes que lutam pela educação de meninas e explicam aos pais da comunidade como a Sharia exige que “meninos e meninas tenham direito à educação”. Esses grupos colocam cartazes que se referiam ao ensino islâmico de que educar uma menina é educar uma nação; então, tomemos cuidado ao afirmar que o Islã é contrário à plena educação. Essas mulheres enfatizam que o próprio Profeta Muhammad (que a bênção e a paz de Deus estejam sobre ele) ensinou mulheres e homens2 e incentivou seus seguidores a fazer o mesmo. E frequentemente invocam a Sharia para explicar que as meninas devem ter permissão para praticar esportes. 

Muitas mulheres chamam o Alcorão — uma das fontes da Sharia — seu guia para persuadir as mulheres a se candidatarem a cargos públicos e permitir que as mulheres se candidatem às eleições. Proteger as mulheres está claramente prescrito no Corão. No século 7, Aisha, a esposa do Profeta Muhammad (que a bênção e a paz de Deus estejam sobre ele), foi a primeira autoridade muçulmana a tomar decisões sobre a lei sagrada que os homens deveriam seguir.3 E não apenas na Somália e na Somalilândia, mas em muitas partes do mundo, as mulheres muçulmanas reivindicam seus direitos estudando e compartilhando versos do Corão e ensinamentos proféticos4. Na Malásia, por exemplo, grupos como Sisters in Islam e Musawah têm apresentado publicamente interpretações em prol dos direitos femininos dos versos do Alcorão, para ensinar as mulheres sobre igualdade de gênero e direitos de herança. No Egito, as mulheres invocaram a Sharia para expandir o acesso ao divórcio5. Outra pesquisa no Sudão mostra a existência de mulheres advogadas que ensinam às mulheres refugiadas, deslocadas pela guerra civil, que seus direitos vêm de Deus.6 E em Los Angeles, Califórnia, uma mesquita feminina oferece sermões, aulas e eventos liderados por mulheres.

Dito isto, diante de toda a complexidade do contexto afegão e suas contradições, busquemos nos lembrar de que as pessoas fazem a história sob as condições que lhes são dadas, não sob as que escolhem. Só arranhamos a superfície da diversidade de expressões políticas do Islã, mas já fica claro que o Taliban é só mais uma entre elas, e não a representação inequívoca da religião islâmica. Ele é sim uma força reacionária, mas a ser combatida pelas muçulmanas afegãs em seus próprios termos, com suas próprias reivindicações. A verdadeira solidariedade internacional não consiste em multiplicar missões que levem a palavra do Cristo capitalista ou do feminismo liberal a povos que jamais pediram por ela. Consiste em vigiarmos, orarmos e escutarmos as demandas do próprio povo afegão, respeitando suas religiões e suas tradições, e apoiando-os em sua autonomia.

Notas:

1. Cf. MASSOUD, M. (2021). Shari‘a, Inshallah: Finding God in Somali Legal Politics (Cambridge Studies in Law and Society). Cambridge: Cambridge University Press. doi:10.1017/9781108965989

2. JAWAD, H. (1998). The rights of women in Islam: An authentic approach. Londres: Palgrave Macmillan UK. doi: 10.1057/9780230503311

3. AHMED, L. (1986). “Women and the Advent of Islam”. Em Signs: Journal of Women in Culture and Society, 11(4), 665-691.

4. MASSOUD, M. (2013). Law’s Fragile State: Colonial, Authoritarian, and Humanitarian Legacies in Sudan (Cambridge Studies in Law and Society). Cambridge: Cambridge University Press. doi:10.1017/CBO9781139199247

5. AHMED ZAKI, H. (2017). “Law, Culture, and Mobilization: Legal Pluralism and Women’s Access to Divorce in Egypt”. Em Muslim World Journal of Human Rights, 14(1), 1-25. https://doi.org/10.1515/mwjhr-2016-0022

6. MASSOUD, 2013.