Tradução1 feita pela Revista Zelota de uma entrevista com Pablo Richard2 realizada por Max Góngora e José Manuel Vives para a Revista de Trabalho Social da Pontifícia Universidade Católica do Chile, em 1972.

Um dos problemas que mais preocupam nossa Escola é a ideologia como fator manipulador inconsciente das grandes massas; fenômeno que experimentamos diariamente em nossas práticas no território. Sendo nossa cultura eminentemente religiosa, encontramos certa relação entre a ideologia e o fenômeno religioso. Mais especificamente, constatamos a utilização, por parte da ideologia burguesa dominante, do cristianismo e de todos os valores que este carrega.

Esse conflito ideologia-religião influencia fortemente, também, profissionais, alunos e docentes de nossa Escola, “bloqueando” – no enfrentamento cotidiano com as realidades populares – a abertura para teorias sociopolíticas que as interpretem; isso também impede um compromisso concreto – histórico e profundo – com as lutas dos explorados. 

Com essa finalidade, pareceu-nos importante entrevistar alguém que estivesse vivendo e pensando o problema colocado. Conversamos com Pablo Richard, professor da Faculdade de Teologia da Universidad Católica (titulado nessa faculdade e na Gregoriana, Roma); sacerdote do grupo “dos 80”3. Vive e trabalha no povoado “San José de Chuchunco” junto com outro grupo de sacerdotes. Recentemente foi convidado por Fidel Castro para visitar Cuba com outros 12 sacerdotes para conhecer o compromisso revolucionário dos cristãos da ilha. Participou ativamente no primeiro Encontro Latino-americano de Cristãos pelo Socialismo.

Nosso interesse com essa entrevista é despertar a inquietude para o aprofundamento no estudo do tema.

Pergunta – Em nosso trabalho em povoados, sindicatos etc., encontramo-nos frequentemente, seja de forma direta ou indireta, com o “fator religioso”. Interessa-nos saber a sua opinião sobre o papel que este fator religioso desempenha na consciência social. É alienante? É libertador?

Pablo Richard – Como o problema é muito amplo, gostaria de me deter em um aspecto que hoje aparece com mais força e urgência: a relação que existe entre o cristianismo e a ideologia burguesa dominante. Esta ideologia usou certos elementos do cristianismo e da religiosidade popular para se difundir e se interiorizar em grandes setores da população. Não se trata de um problema exclusivamente teórico, mas de uma realidade constatável que, com o mínimo de instrumental, descobre-se diariamente no contato com as pessoas. Normalmente se reduz o problema da “alienação religiosa” à “espera paciente e resignada” de um mais além onde serão satisfeitas todas as frustrações e todos os sofrimentos. Esse tipo de alienação já foi bastante denunciado e tende a ser superado.

Creio que é mais importante denunciar a função alienadora que a ideologia dominadora exerce. Esta instrumentaliza a religiosidade popular como canal de difusão do povo. Nessa forma, reforça-se a si mesma e consegue dominar a consciência de muitos. O processo é sutil e inconsciente, e por isso mesmo perigoso e difícil de detectar. Talvez dar alguns exemplos ajude. Para ser mais claro, talvez exagere ou caricature. É dever de vocês, em seu trabalho, polir os detalhes e encontrar as formas mais sutis e cotidianas de instrumentalização da religiosidade popular pela ideologia dominante. 

Primeiro exemplo: a ideologia burguesa impõe uma imagem religiosa e sagrada do sistema constituído. O sistema seria regido por leis e direitos “naturais” que o próprio Deus teria criado para que tudo funcione bem. Rebelar-se contra essa “ordem natural” seria soberba espiritual e falta de humildade; em última instância, rebelar-se contra o próprio Deus. Os males e castigos de Deus vem porque o homem é ambicioso, não é agradecido e não se contenta com o destino que Deus lhe deu. Reflexões como estas foram ouvidas depois do último terremoto, onde se dizia que esta catástrofe era castigo de Deus pela ascensão ao governo das “forças marxistas”, dos “ateus”.4

Ao se apresentarem – nessa visão ideologizada da religião – as desigualdades e dependências, a divisão do trabalho, a separação entre povo e poder etc., como “necessidades naturais”, fundadas em uma “ordem divina”, oculta-se que todas as relações tem seu fundamento objetivo no sistema imperante, quer dizer, no sistema capitalista. Ao se apresentar a luta contra o sistema capitalista como luta “perigosa” contra a “ordem divina”, bloqueia-se o movimento revolucionário do povo. O cristianismo perde sua força libertadora original e se castra a serviço dos interesses da classe dominante. Seria interessante que vocês, ao seu modo de exercício prático, constatassem todas as ressonâncias éticas e religiosas que suscitam em muita gente, por exemplo, a palavra “revolução”. Confirmaria o que foi dito anteriormente.

Outro exemplo: a ideologia burguesa busca se reforçar e se difundir no povo reduzindo o cristianismo a uma dimensão puramente “individualista”. Cada homem – segundo essa versão ideologizada do cristianismo – receberia de Deus uma capacidade, uma tarefa e um destino exclusivamente individual. A felicidade dependeria somente da fidelidade de cada homem a sua própria vocação. Sem querer não reconhecer o valor da pessoa humana, essa redução ideológica do cristianismo encobre e oculta a consciência dos aspectos estruturais das relações sociais e das contradições que o sistema engendra. Ao se reduzir o cristianismo a uma pura fidelidade pessoal e a uma salvação exclusivamente individual, oculta-se o “pecado” coletivo e estrutural. A salvação para além do esforço pessoal individual passa pela luta solidária e organizada por substituir um sistema que é injusto e opressor.

Existe também a redução “espiritualista” e “pacifista” do cristianismo. A redução “espiritualista” que a ideologia burguesa faz do cristianismo impõe a ideia de que as mudanças sociais são realizadas exclusivamente pelas mudanças de ideias ou atitudes morais “interiores”; reduz-se a transformação da sociedade à “transformação do coração”. Reduz-se a causa de todos os males ao puro egoísmo individual. Descarta-se, assim, a busca de uma mudança radical na transformação – além do coração e da própria personalidade – do sistema estabelecido. A redução ideológica de tipo “pacifista” do cristianismo é talvez a mais sutil e a mais deformadora.

Pergunta – Essa última nos parece muito atual. Você não acredita que aqui está a causa última da rejeição que os cristãos têm da luta de classes?

Pablo Richard – Exatamente. Esse ponto é onde aparece de forma mais clara a instrumentalização que a ideologia burguesa fez do cristianismo. Essa ideologia justifica a si mesma ocultando as contradições de classe e legitimando seus esquemas de dominação; identificando seus interesses com uma série de valores como os de liberdade, pátria, democracia etc. Quando a classe trabalhadora expõe as contradições de classe e a luta contra o sistema capitalista que as gera, então a burguesia recorre ao engano de sempre. Não diz: “estão atacando meus interesses e privilégios”, senão que diz: “estão atacando a liberdade, a pátria, a democracia”. Esta “falsa consciência”, que a ideologia impõe a toda a sociedade por meio da indústria cultural e educacional que manipula, busca se afirmar e se difundir recorrendo a valores éticos e cristãos. Recorre usando os próprios mecanismos, além dos valores jurídico-políticos, aos valores cristãos de amor, fraternidade e justiça, paz, unidade etc. A ideologia apresenta a luta do povo não como uma luta contra seus interesses, mas como uma luta contra a fraternidade, o amor, a unidade etc. Encobre a “violência institucionalizada” e chama de “violência” a luta do povo por sua própria libertação. Deforma-se assim o sentido e o conteúdo da luta de classes e se bloqueia a consciência cristã diante dela.

Pergunta – Se é possível chegar a uma clareza desse ponto, como é possível que toda essa instrumentalização do cristianismo por parte da ideologia dominante não apareça diante dos olhos de todos?

Pablo Richard – Os mecanismos ideológicos da burguesia são inesgotáveis. Para que toda essa instrumentalização fique oculta e ninguém possa denunciá-la, proclama-se o “apoliticismo”. A burguesia entende muito bem que se os sacerdotes, por exemplo, participam da ação política da classe trabalhadora e a partir desse ângulo denunciam a ideologização do cristianismo, isso é perigosíssimo para a defesa de seus próprios interesses. O compromisso cristão com as lutas do povo, e em especial dos sacerdotes, impede à burguesia utilizar o cristianismo para seus próprios interesses. É por isso que exigem o apoliticismo dos sacerdotes. Que não se metam na política. Assim se explica o ataque violento que a direita faz contra o grupo “dos 80”. O apoliticismo, funcional aos interesses da ideologia dominante, é difundido de diferentes formas no povo. Uma dessas formas é o “gremialismo”, outra, a separação radical que se pretende entre política e religião. Vejamos que o apoliticismo é essencialmente político, porque pretende justamente um fim político: encobrir o uso e a instrumentalização que a ideologia dominante faz da religião e do cristianismo para seus próprios interesses.

Pergunta – Uma objeção que ouvimos frequentemente é que “os cristãos de esquerda” e especialmente os sacerdotes, em vez de ajudar os cristãos, “semeiam confusão”, fazem as pessoas “perderem a fé”. Além disso, buscam instrumentalizar a religião em favor da Unidade Popular e outros fins puramente partidários.

Pablo Richard – Esses são justamente os métodos do “apoliticismo” para desvirtuar um movimento cuja raiz é profundamente cristã e autenticamente evangélica.

Querem fazer crer que o cristianismo existente e difundido é uma realidade “pura”, ascética, não contaminada por influências ideológicas. Nesse pressuposto se apresenta a politização, especialmente dos sacerdotes, como uma tentativa de “mesclar religião com assuntos humanos contingentes”. O que se quer justamente esconder é que já estão mesclados. Há uma instrumentalização anterior que não querem que apareça.

Diz-se que a opção de cristãos e sacerdotes cria confusão nos crentes. Pode ser. Mas creio que muito mais confusão e escândalo produz o ver o cristianismo identificado com os interesses de uma minoria. Muito maior confusão cria ver tantos cristãos defendendo seus privilégios e se opondo à libertação dos oprimidos. Cremos que muitos cristãos, em sua identificação com os mecanismos ideológicos da burguesia, atuam de boa fé. São instrumentalizados inconscientemente pela ideologia dominante. Alguns de forma aberta e definida. Outros por meio de opções reformistas ou terceiristas. Seja como for, é um dever de todo cristão, e mais ainda dos sacerdotes, como educadores da fé, denunciar essa aliança entre o cristianismo e a ideologia dominante. Para isso é necessário um compromisso com aqueles que são dominados, explorados. É a partir de sua luta e com os critérios que essa luta oferece que se pode resgatar o cristianismo do uso e abuso que dele têm feito as minorias opressoras. Não se trata de instrumentalizar a fé para fins partidaristas, senão ao contrário, devolver à fé a dimensão libertadora e revolucionária original. É na radicalidade do compromisso com a luta da libertação de um povo oprimido que a fé se purifica e se fortalece.

Pergunta – É nesse sentido que você entende a frase de Che: “quando os cristãos se atreverem a dar um testemunho revolucionário integral, a revolução latino-americana será invencível, já que até agora os cristãos têm permitido que sua doutrina seja instrumentalizada pelos reacionários”.

Pablo Richard – Creio que a frase resume o que temos dito. É um chamado muito sincero e que brota de uma experiência libertadora muito profunda.

Pergunta – Você tem tratado aqui rapidamente muitos problemas teológicos da chamada “teologia da libertação”. Gostaríamos de te pedir – finalmente – alguma literatura próxima que nos permita aprofundar sobre esses temas.

Pablo Richard – Uma boa introdução à Teologia de Libertação, com uma bibliografia quase completa, a encontram na revista Mensaje nº 2018 (março 1972), pp. 277-283. Dentro dessa bibliografia deve-se destacar o livro de Gustavo Gutiérrez: “Teología de la Liberación, Perspectivas”, Lima 1971.

Pode-se ler, também, alguns artigos dos Cuadernos de la Realidad Nacional:5

Nº 9. Franz Hinkelammert: “Fetichismo de la mercancia, del dinero y del capital (Crítica marxista de la religión)”.

Hugo Villela: “Los cristianos en la revolución posibilidad de una práxis revolucionária”.

Nº 12 Hugo Assmann: “El cristianismo, su plusvalía ideológica y el costo social de la revolución socialista”.

Pablo Richard: “Racionalidad socialista y verificación histórica del cristianismo”.

Lhes recomendo também o nº 34 de Teología y vida (revista de la Facultad de Teología de la Universidad Católica) e de forma especial o documento mais iluminador a respeito, que são as conclusões finais do “Primeiro Encontro Latino-americano de Cristãos pelo Socialismo”.

Notas:

1. Original: “El cristianismo como instrumento de la ideología burguesa: [entrevista a Pablo Richard]”. In: Revista de trabajo social, Chile: n. 6 (Julio), p. 21-24, 1972.

2. Pablo Richard foi um teólogo e biblista chileno. Nascido em 2 de janeiro de 1939, se formou em filosofia e teologia em 1966. Em 1969, obteve licenciatura em Escrituras Sagradas pelo Instituto Bíblico de Roma, e entre 1969 e 1970, esteve na Escola Bíblica de Jerusalém. Em 1977, obteve o Título de “doutor honoris causa” pela Faculdade Livre de Teologia Protestante de Paris e em 1978, titulou-se doutor em Sociologia da Religião pela Universidade de Sorbonne. No mesmo ano, foi cofundador do Departamento Ecumênico de Investigações (DEI), na Costa Rica. Na ilha caribenha, atuou como professor de teologia na Escola Ecumênica de Ciências da Religião da Universidade Nacional da Costa Rica e foi integrante da Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina (CEHILA). Faleceu em 21 de setembro de 2021, aos 82 anos.

3. Uma organização de sacerdotes chilenos que se comprometeram ativamente com o programa e a implementação do projeto da Unidade Popular de Salvador Allende. Ficaram conhecidos como “os 80” em especial por um documento denominado “Declaração dos 80”, publicado ao fim de um encontro  em 1971, intitulado “Participação dos cristãos na construção do socialismo no Chile”. O grupo também foi responsável pelo Movimento Cristãos pelo Socialismo.

4. N.E.: A mesma estrutura argumentativa acompanha uma série de interpretações religiosas de nossa realidade brasileira, hoje.

5. Esta era a revista do Centro de Estudios de la Realidad Nacional (CEREN), na Universidad Católica, que funcionou como um espaço acadêmico de pesquisas de ponta e formação de quadros. Muitos de seus participantes constituíram os movimentos que formaram a Unidade Popular, participaram da construção de sua plataforma política, do programa ou ainda que compuseram o governo Allende. O CEREN foi fechado com o golpe militar de Pinochet em 1973, e a última nota publicada pelos Cuadernos anunciava esse processo.