Ao contrário do que alegam complementaristas, o início de Gênesis 2 promove a igualdade entre homem e mulher ao defini-los por sua relação com Deus e o solo
Parte 4 da série “Carne da minha carne: uma crítica à ideologia complementarista”. Clique para ler a parte 1, a parte 2 e a parte 3.
Em interpretações bíblicas complementaristas, o estabelecimento de uma relação desigual entre gêneros em Gênesis 1.26-28 ocorre, fundamentalmente, pela imposição de termos e conceitos erroneamente atribuídos ao texto sobre a formação da humanidade em Gênesis 2. Embora essa imposição tenha ficado clara no último artigo, dessa vez tenho a tarefa de mostrar que não somente a imposição é indevida para a interpretar Gênesis 1.26-28, mas também que parte de uma interpretação completamente errada do próprio texto bíblico de Gênesis 2.
Não há dúvida de que Gênesis 2 seja o texto fundante para o complementarismo. A autoridade masculina e a submissão feminina são estabelecidas a partir da dinâmica que os complementarismos veem na formação da humanidade em Gênesis 2. Este é o único texto bíblico em que eles podem afirmar que as relações desiguais entre os gêneros são parte da ordem criacional ideal, antes de qualquer pecado que tenha causado rupturas, conflitos e até inimizades. Os próprios fundadores do complementarismo dizem que o neologismo do termo é proveniente de Gênesis 2.18, especificamente o termo כְּנֶגְדּוֹ (kǝnegdô), entendido como uma qualificação de diferença complementar.1
Como quero demonstrar logo abaixo, as referências complementaristas mais relevantes que tenho usado aqui, Raymond C. Ortlund Jr. e Yago Martins, comprovam essa importância fundante de Gênesis 2. Antes de entrar em detalhes exegéticos, quero exemplificar como é possível perceber uma retórica ardilosa em ambos a fim de impor a ideologia complementarista onde ela não existe. Ortlund Jr. cria uma narrativa fantasiosa sobre como Deus criou o momento do encontro entre suas duas criaturas humanas:
O Senhor disse a ela, “Filha, eu quero que você vá e fique parada ali. Eu já volto”. Ela obedeceu. Então Deus tocou o homem e disse, “Acorde agora, filho. Eu tenho mais uma criatura para você dar nome. Eu quero que você me diga o que acha dessa”.2
O detalhe que pode passar despercebido é como ele cria essa narrativa de forma a inserir um termo completamente ausente do texto, mas que é fundamental no complementarismo: obediência. Ortlund Jr. cria uma narrativa fantasiosa e insere o conceito de obediência feminina debaixo da autoridade divina, no exato momento em que a criatura masculina vai encontrar a criatura feminina. Assim, quando ele chega para definir as relações desiguais de gênero em sua interpretação complementarista, o leitor acredita que é algo que se encontra no texto bíblico, quando não está.
No caso de Yago Martins, existe até um reconhecimento de que ele está impondo algo ao texto, mas ele acredita que a imposição é exegética e teologicamente justificada a partir do texto. Ele diz:
[A] mulher é criada a partir de Adão… Deus traz a mulher para Adão, e não o contrário. Adão dá nome à sua mulher, e não o contrário. O termo liderança não aparece aqui, mas é a melhor palavra para descrever o que acontece em Gênesis 2, ainda dentro do ambiente criacional imaculado de Deus… Aqui já constatamos o homem exercendo funções pastorais de liderança sobre sua mulher. Por isso, podemos dizer que, enquanto Gênesis 1 anula o hierarquismo, Gênesis 2 anula o igualitarismo.3
É interessante perceber que nessa citação, Yago Martins não contrasta igualitarismo com complementarismo, mas sim com hierarquismo. Sutilmente ele diz que Gênesis 2 anula o igualitarismo, mas não diz que Gênesis 1 anula o complementarismo, quando o contraste no debate teológico é entre essas duas posições. Ele acha que o complementarismo é uma posição que está no meio, “moderada”, entre duas posições extremas. Contudo, esse é o menor dos problemas. Nessa formulação teológica a partir do texto bíblico (sic), Yago Martins introduz o conceito de liderança e até pastoreio. Felizmente ele reconhece que o termo não está no texto bíblico, mas acredita que a dinâmica entre os gêneros é mais bem definida dessa forma.
Minha tarefa, portanto, é simplesmente mostrar que essa formulação teológica com a definição de relações desiguais marcadas pela liderança masculina e submissão feminina não tem fundamento no texto bíblico, mas é discernida e imposta a partir da ideologia complementarista. Não é uma tarefa difícil, só é trabalhosa. Eu dividirei essa tarefa em dois artigos. Neste, vou trabalhar com Gênesis 2.4-17, ou seja, a narrativa da formação do primeiro ser humano. No próximo artigo, lidarei com Gênesis 2.18-15, quando existe a separação ou distinção entre o homem e a mulher. Ao final, complementaristas ficarão sem o seu maior fundamento bíblico (sic) para sua ideologia que justifica e reforça uma ordem social hierárquica patriarcal e misógina.
Gênesis 2 e a exegese ignorante dos complementaristas
Apesar de minha proposta dividir Gênesis 2 em duas partes, apresentarei aqui a interpretação complementarista relevante para as duas partes. A partir de uma descrição da exegese complementarista, ficarão evidentes as questões textuais relevantes que devem ser tratadas posteriormente. Basicamente, o argumento complementarista trabalha com três pontos em relação a Gênesis 2: (1) uma relação entre ordem cronológica e autoridade, (2) a definição da expressão hebraica עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô), (3) a função de nomear. Teoricamente, o argumento complementarista não depende dos três pontos, podendo usar somente um deles, mas na prática os três pontos sempre emergem.
Ortlund Jr. e Yago Martins enfatizam bastante a relação entre ordem cronológica e autoridade. Ortlund Jr. diz: “Deus criou o homem primeiro (2.7) e o colocou no Jardim do Éden para desenvolvê-lo e guardá-lo (2.15). Deus dá um comando duplo para o homem”.4 Como vimos no último post, o argumento de Ortund Jr. é que o termo hebraico אָדָם (ʾādām) é sobre o homem e não a humanidade. Dessa forma, sua lógica é a de que somente ao homem e não à mulher é dado o comando duplo de Deus. Ele, então, combina esse argumento com sua explicação de que a mulher é qualificada como “ajudadora” e que foi o homem quem lhe deu o nome, para fundamentar sua fala mais explícita: “[u]m homem, pelo simples fato da sua masculinidade, é chamado para liderar para Deus. Uma mulher, pelo simples fato da sua feminilidade, é chamada para ajudar para Deus”.5 É um argumento simples, usando os três pontos citados acima, e que recebe pouca ou nenhuma fundamentação exegética. Existe uma tentativa de argumentação sobre a definição do termo עֵזֶר (ʿēzer), em que ele confirma seu sentido de “ajudadora” com conotações de submissão.6 Para a relação de ordem cronológica e autoridade, assim como a nomeação, não há nenhuma tentativa de fundamentação teórica a partir do contexto cultural, literário e a exegese de fato, somente afirmações vazias que confirmam seus pressupostos, sua ideologia complementarista.
É interessante comparar e contrastar o material de Ortlund Jr. com o apresentado por Yago Martins, especialmente porque ele se diz um complementarista de segunda geração, ou seja, posterior ao Ortlund Jr. Ele apresenta uma perspectiva diferente sobre os três pontos citados acima, ainda que chegando à mesma conclusão. Em teoria, ele faz uma qualificação relevante sobre o ponto 1, elimina a validade do argumento complementarista sobre o ponto 2, e coloca toda a força do argumento no ponto 3. Mas, como quero mostrar, na prática, ele depende dos três pontos, assim como Ortlund Jr.
Sobre o primeiro ponto, Yago Martins afirma que a mulher estava em Adão (sic) antes de ser criada.7 Isso poderia ser entendido como se antes da divisão de gêneros o ser humano não fosse nem o homem nem a mulher, e que o comando divino sobre a responsabilidade humana para o jardim fosse igual para a humanidade, independentemente de gênero. Mas não é esse o argumento de Yago Martins. Porque a mulher estava em Adão (sic), ele diz, existe uma primazia criacional em Adão (sic).8 Assim, fica claro que a ordem cronológica é entendida como fundamento de autoridade. Ele confirma isso ao dizer: “mulheres são submissas ao homem por ele ter sido criado primeiro”.9 O uso do termo primazia é revelador aqui, já que se trata não somente de posição no espaço-tempo, mas também posição de dignidade, status e prioridade. Isso fica evidente quando Yago Martins continua, após dizer que a mulher é submissa ao homem por ele ter vindo primeiro, e diz que os homens são dependentes das mulheres porque todos eles vêm delas”.10 Enquanto a ordem cronológica em que o homem vem primeiro estabelece autoridade masculina sobre a mulher, a ordem cronológica de nascimento em que o homem é derivado da mulher não estabelece autoridade feminina sobre o homem, mas dependência masculina. Por quê? Logo adiante ficará claro o erro desse primeiro ponto, mas já adianto que minha explicação justifica meu uso de sic sempre que אָדָם (ʾādām) é usado como nome próprio do homem antes da divisão de gêneros.
Sobre o segundo ponto, Yago Martins faz um grande esforço exegético para criticar a tradução comum de עֵזֶר (ʿēzer) como ajudadora ou auxiliadora. Ele afirma que a melhor tradução do termo é aliada, que não traz conotação de inferioridade ou hierarquia, porque aliados lutam juntos numa guerra.11 Sua conclusão é que rebaixar a mulher com uma função inferior à do homem “é fruto de má teologia, péssima análise textual e uma visão de mundo destoante da realidade”.12 Ele está certo em sua exegese do termo, assim como em sua conclusão. Mas eu achei engraçado que tal acusação, provavelmente direcionada ao Anderson Silva, a quem ele está criticando diretamente no livro, acabe acertando em Ortlund Jr. também, justo o especialista em Antigo Testamento que colaborou para a definição e a defesa do complementarismo. Esse tiro que atinge o alvo errado só não é tão irônico quanto o tiro pela culatra que acerta o próprio Yago Martins em alguns atos falhos. Primeiro, ele afirma que homens e mulheres são aliados, e aproveita a metáfora militar para dizer que a mulher “cobre sua [do homem] retaguarda”.13 Com isso, já temos uma relação de posicionamento interessante. O homem tem primazia e a mulher está na retaguarda. Conforme afirmei no último post, esse tipo de termo e conceito revela um esquema de imagem do campo da metáfora da linguística cognitiva que ordena a realidade hierarquicamente. Mas seus atos falhos não param por aí. Apesar de ter se esforçado tanto para defender a tradução “aliada” e não “ajudadora” ou “auxiliadora” para עֵזֶר (ʿēzer), ele escorrega e ainda qualifica a mulher como auxiliadora e sua função como auxiliar. Ele diz que o homem e a mulher, em Gênesis 3, erraram ao não exercerem domínio “como pastor e auxiliadora”14 e que cada casal deve avaliar como aplicará “os princípios básicos de liderança e de auxílio dentro do seu casamento”.15 Yago Martins pode afirmar o quanto quiser que o seu complementarismo não é hierárquico, mas nesses detalhes ele revela sua ideologia que justifica e reforça uma ordem desigual de privilégio masculino, portanto, patriarcal e misógina, em que o homem lidera e a mulher auxilia.
Por fim, o terceiro ponto, e é nesse que Yago coloca maior força explícita para fundamentar a liderança masculina e a submissão feminina. Ele afirma: “Adão (sic) aqui dá nome à mulher, exercendo autoridade sobre ela”.16 Ele justifica essa afirmação dizendo que “nomear, em Gênesis 1—2 e em toda a cultura hebraica, estava relacionado à autoridade”.17 Eu disse que é uma justificativa, e não um argumento, porque não há evidência ou fundamento teórico apresentado. Ele simplesmente diz que, na criação, Deus também nomeia o que cria e estabelece uma relação de autoridade em que a coisa nomeada é tratada como criatura dele [de Deus]. Se é isso que Yago Martins entende sobre a função de nomear, isso significaria que a mulher é criatura do homem. Ele não afirma isso explicitamente, mas é exatamente isso que ele pensa a respeito da autoridade sobre algo ou alguém no exercício da nomeação. Estamos, portanto, diante de uma ordem extremamente desigual entre os gêneros, um hierarquismo que estabelece uma relação primária do homem com Deus e secundária da mulher com Deus, por meio do homem. No fim, então, apesar de todas as afirmações de que o seu complementarismo não é hierárquico, Yago Martins acaba exatamente com uma ordem social patriarcal e misógina em que a mulher é criatura do homem, enquanto o homem é criatura de Deus.
A falta de fundamentação teórica para essas interpretações complementaristas é aterradora. Existe uma mínima tentativa de evidência linguística, especialmente em relação à expressão עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô). No restante, são meras afirmações vazias que somente fazem sentido a partir de um pressuposto complementarista e nada têm a ver com o texto bíblico. Não há nenhum esforço por considerar contexto histórico, especialmente de cultura comparativa. Não há nenhum esforço por considerar teorias da sociologia, psicologia e filosofia para fundamentar conceitos como identidade e gênero. No fim, tanto o material de Ortlund Jr. quanto de Yago Martins não passam de propaganda ideológica.
A seguir, ofereço uma alternativa de engajamento com o texto bíblico que difere drasticamente do que vimos até aqui não somente pelas conclusões, mas pelo método e pelo processo hermenêutico. Quero adiantar que Gênesis 2, especialmente o adiamento da separação dos gêneros, cumpre um papel fundamental que nada tem a ver com liderança e submissão. O que o texto propõe é uma bela e complexa reflexão sobre o que significa ser humano em relação com o diferente. Em outras palavras, é uma reflexão única na Antiguidade sobre alteridade e identidade, a partir de uma mutualidade e uma intimidade caracterizadas pelo vínculo de parentesco. Grande parte da minha proposta, em resposta a esses exemplos de interpretação complementarista, só ocorrerão no próximo artigo, quando abordarei Gênesis 2.18-25. É na conclusão do próximo artigo, também, que apresentarei os fundamentos sociológicos para chamar o complementarismo de misógino. Por ora, vamos a Gênesis 2.4-17.
Jardins, árvores e ícones: entre o palácio e o templo
De forma bem distinta da criação da humanidade em Gênesis 1.26-28, em que se faz referência à distinção de gênero e sem nenhuma matéria-prima explícita, Gênesis 2 adia a distinção de gêneros e fala da formação da humanidade a partir de uma matéria específica, o solo (אֲדָםָה, ʾădāmâ, Gn 2.7). Essas distinções entre os dois textos bíblicos são fundamentais. Contudo, quero primeiro apontar para o compartilhamento de uma mesma mensagem. Vimos no último artigo que Gênesis 1.26-28 democratiza a identidade e a função de realeza para toda a humanidade igualmente. O mesmo é verdade sobre Gênesis 2, mas a partir de referências culturais diferentes e, às vezes, mais explícitas e mais qualificadas do que Gênesis 1. Para entender isso, precisamos lidar com o significado e a função de jardins, árvores e ícones.
A formação do ser humano vem primeiro (Gn 2.7), mas quero começar pelo jardim e pelas árvores. Em Gênesis 2, Deus cria os céus e a terra. A terra (אֶרֶץ, ʾereṣ), porém, não é um campo fértil (שָׁדֶה, šādê) com plantas, porque não havia chuva ainda e nem a humanidade para trabalhar o solo (אֲדָםָה, ʾădāmâ, Gn 2.5). As coisas começam a mudar porque Deus forma a humanidade (אָדָם,ʾādām, Gn 2.7) e planta (נָטַע, nāṭaʿ) um jardim no Éden (גַּן־בְּעֵדֶן, gan-bǝʿēden) onde coloca a humanidade (Gn 2.8), presumidamente para trabalhar o solo e torná-lo fértil. Apesar dessa função da humanidade, o texto bíblico é explícito em atribuir a fertilidade do solo, no jardim, à ação de Deus. É dito que Deus fez brotar do solo “todas as árvores agradáveis aos olhos e boas para alimento”, assim como a árvore da vida, bem no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2.9). Vamos, então, considerar o que eram e quais eram as funções desses jardins frutíferos e suas árvores.
Jardins exigem, especialmente, muita irrigação. Jardins com função estética, até exótica, eram uma realidade urbana, mais especificamente do palácio, e não da cultura agrária.18 Nesse caso, os jardins seriam mais próximos aos parques ou jardins botânicos que conhecemos, espaços grandes e exuberantes. Trata-se de uma “conquista”, por assim dizer, da civilidade.19 Enquanto isso, na experiência de pessoas comuns no antigo Oriente Próximo, vivendo numa cultura de subsistência, o mais próximo que tinham de um jardim eram pequenas hortas onde as famílias cultivavam espécies de pepinos, alhos, cebolas e ervas diversas para tempero.20 Especialmente importante para entender o significado e a função dos jardins é o que se pode ver na tradição imperial assíria.
Jardins reais, árvores da vida, reis e divindades no império neoassírio
Os jardins reais da Assíria se tornaram, no tempo de Assurnasirpal II (884–859 AEC), um empreendimento ideológico. Ele plantou um “jardim dos prazeres” num território de 25 km², próximo de sua recém-inaugurada cidade residencial de Kalhu. Senaqueribe (705–681 AEC) fez o mesmo quando se mudou de residência para Nínive.21 A grandeza desse jardim específico pode ser atestada pelo fato de que se trata dos famosos Jardins Suspensos da Babilônia.22 Sobre este último, o jardim de Senaqueribe em Nínive, temos uma descrição nos Anais de Senaqueribe:
Acima da cidade e abaixo da cidade, eu plantei parques. A riqueza da montanha e de todas as terras, todas as ervas da terra de Hati, plantas de mirra entre as quais a frutificação era maior do que em seu habitat natural, todos os tipos de vinhedos-da-montanha, todas as frutas de todas as terras, ervas e árvores frutíferas eu coloquei para os meus subjugados.23
O jardim real assírio é um microcosmo de toda a terra. Comparando com Gênesis 2, o jardim do Éden é um microcosmo de toda a terra. A ideologia por trás dos jardins assírios, que permanece de formas diferentes no contexto babilônio e persa, é que o jardim representa uma ordem específica, como veremos.24 Eu quero apresentar duas características dessa ordem: “segurança” e fertilidade.
A ordem imperial estabelece um senso de segurança ao dominar todas as forças inimigas por meio da coerção e da agressividade militar. Trata-se, portanto, de uma ordem inevitavelmente violenta. Isso se reflete na ideologia dos jardins reais assírios. Um dos propósitos dos jardins imperiais assírios era servir de parque de caça para o imperador se promover como o grande caçador, um predador.25 Para tanto, ele é apresentado como caçador de leões no ambiente dos seus jardins reais.26 Uma evidência interessante aqui é a Cena do Banquete de Assurbanipal II. A cena acontece num jardim real, apresenta o rei e sua rainha sentados e sendo servidos, com sua espada, arcos e flechas assentados numa mesa, e a cabeça do rei inimigo pendurada numa árvore próxima. A ordem imperial representada pelo jardim real, portanto, é uma ordem estabelecida pelo poder e pela violência militar do rei.27

Sobre a questão da fertilidade, aí já entramos na função das árvores. Na descrição do jardim real de Nínive, mencionada acima, vemos a ênfase na fertilidade quase sobrenatural das plantas e das árvores frutíferas. Isso se deve a uma tradição comum ao mundo Antigo, que é a “árvore cósmica”, ou “árvore mundial”, ou “árvore da vida”.28 Essa tradição assumiu uma imagem iconográfica baseada na tamareira, que produz cerca de 50kg de fruto por ano, com seus frutos pendurados em grandes cachos, tornando-se um ícone de abundância. Sinônimos acadianos para a tamareira incluem “árvore de abundância” e “árvore de riquezas”.29
A associação da árvore com vida e abundância também depende de uma ideologia real assíria e seus jardins. Túmulos de reis se encontravam em jardins e eram associados a árvores, a ponto de cada rei assírio morto ser imaginado como uma árvore sagrada que conecta as três esferas do cosmo: o mundo subterrâneo, a superfície da terra e os céus.30 Esse seria o significado da “árvore da vida” na ideologia imperial assíria, é o centro do mundo a partir da qual o cosmo é ordenado e prospera.
Em ambos os casos, da segurança e fertilidade, estamos lidando com uma ideologia de realeza na qual o rei media a ordem cósmica. Nessa mediação, a fertilidade e a segurança são o resultado do domínio assírio, que é refletido no microcosmo do jardim real. Esse jardim não representa uma ordem natural, mas construída. O jardim paradisíaco, com sua fertilidade que sustenta a vida do cosmo, é artificial, o resultado de um esforço político-militar.31 É uma ordem cultivada, como o jardim, que representa as conquistas da “civilização” de uma perspectiva dos habitantes ricos e poderosos das grandes capitais do império.32 Dado o caráter de microcosmo do jardim real, o que temos é a politização da ordem cósmica33 ou, para usar um conceito que usei nessa série antes, a divinização de uma ordem social que é estabelecida pela ideologia e prática imperial assíria.
Por fim, precisamos falar do caráter religioso dos jardins reais e das árvores, ambos associados com a pessoa do rei como representação da divindade. Especificamente os jardins reais assírios carregavam esse aspecto religioso, já que o rei era mediador da ordem de segurança e fertilidade, ambos aspectos característicos do favor divino. É até possível dizer que os jardins reais assírios eram jardins-santuários, contendo um caráter sagrado onde atividades cúlticas aconteciam. O próprio rei funciona como um sumo-sacerdote, ou seja, mediador da presença e da bênção divinas.34

Nesse relevo, do período de Assurbanipal (668–631 AEC), vemos um jardim real de Nínive com aquedutos, árvores diversas e um pequeno altar no centro, com o rei apresentado bem na entrada.

Já neste outro relevo, do palácio de Assurnasirpal II em Kalhu, temos o rei atual representado pela “árvore da vida”, sob o disco solar que representa a divindade, ambos cercados pelos reis mortos que servem de conexão entre as esferas do cosmo, como vimos.35
Podemos, então, definir o jardim real na ideologia imperial assíria como um microcosmo, portanto um santuário, uma ordem de segurança e fertilidade que é estabelecida, construída ou cultivada pela ação do rei, caracteristicamente violenta e opressora, que funciona como um ícone representativo e mediador da presença e da bênção divinas. Como veremos agora, Gênesis 2 se apropria criticamente dessa ideologia e a subverte de formas bem interessantes.
Jardim do Éden, árvore da vida, Deus e a humanidade em Gênesis 2
Sai o rei, entra Deus e a humanidade. Antes de falar especificamente sobre a humanidade, é importante destacar vários aspectos da atuação de Deus em Gênesis 2 em comparação com outros mitos de criação do antigo Oriente Próximo. A associação do rei com a construção ou cultivo dos jardins se dá no nível da ideologia, porque na prática quem de fato cultivava e preservava os jardins eram seus subjugados. Isso é importante quando nos deparamos com o mito sumério-babilônio, Atra-ḫasīs. Neste mito, as divindades se dividem em duas classes, uma delas de trabalhadores que se ocupam com tarefas bem peculiares: “Quando os deuses, como os homens, faziam o trabalho, carregavam o peso, o peso dos deuses era muito grande, o trabalho muito difícil, a dificuldade muito grande. O grande Anunnaki fez os Igigi carregarem o peso do trabalho sete vezes mais… Os deuses tinham que cavar canais, limpar os córregos, os cursos de água da terra” (Tabuinha 1).36 Essa é uma tarefa agrária, obviamente, mas o foco nos cursos de água naturais e, especialmente, artificiais, aponta para a construção e cultivo de jardins. Assim como em outros mitos do antigo Oriente Próximo, no Atra-ḫasīs os humanos são criados exatamente para substituir os deuses menores nesse trabalho a fim de os deuses poderem descansar. “Crie a humanidade [lullû] para que carregue o jugo, deixe que ela carregue o jugo estabelecido por Enlil, deixe o homem [a-wi-lum] levar o cansaço dos deuses” (Tabuinha 1, linhas 195–97). Já no famoso mito mesopotâmico Enūma Eliš, é dito, “Em seu sangue gerou a humanidade, impôs-lhe a labuta dos deuses e aos deuses liberou” (Tabuinha 6, linhas 33–34).37 Percebam como os mitos servem o propósito de explicar e justificar uma ordem social específica. Existe uma classe superior e outra inferior, uma que cria, domina, descansa e a outra que trabalha, obedece e se desgasta. O mito, portanto, justifica e diviniza relações desiguais, opressivas, seguindo uma ideologia imperial, como vimos sobre os jardins reais assírios e o papel do rei.
Aqui começa a ficar clara a apropriação e subversão que Gênesis 2 faz dessa tradição literária, cultural e ideológica. Em Gênesis 2, o texto nos diz que Deus fez céus e terra (Gn 2.5), depois criou a humanidade (Gn 2.7), cuja função seria “trabalhar o solo” (Gn 2.5). Parece, então, que a dinâmica vai ser a mesma dos outros mitos: a humanidade é criada para trabalhar exaustivamente sob o domínio da divindade, que assim é liberada do trabalho e pode descansar. Mas, não. Mesmo depois da criação da humanidade, Gênesis 2 faz questão de dizer que foi Deus quem plantou um jardim (Gn 2.8). O termo “plantar” (נָטַע, nāṭaʿ) carrega várias associações pertinentes ao que vimos sobre a função dos deuses menores que depois é imposta sobre a humanidade: trabalho manual de cavar, nivelar, construir terraços, cavar cisternas e canais de águas, plantar e cuidar de árvores (cf. Is 5.2-6).38 Deus não se identifica com o rei em sua função de domínio, mas sim com os trabalhadores que carregam o peso da labuta. Mais ainda, ao se identificar com os trabalhadores e não com os reis, Deus revela que o poder de estabelecimento de uma ordem verdadeiramente fértil e segura está no compartilhamento entre todos, sem uma hierarquia de dominadores e trabalhadores, da difícil tarefa ordinária da vida de botar a mão no arado, por assim dizer, e trabalhar o solo. A ordem divina está nas atividades cotidianas da família, mais próximas do domicílio, e não nas atividades militares e dos grandes empreendimentos do palácio. Uma evidência disso é a menção das “plantas do campo” e das “ervas do campo” (Gn 2.5), que, apesar de não fazerem parte do jardim, ainda apontam para o tipo de plantação de produtos comuns da dieta do antigo Israel, especialmente grãos como trigo e cevada.39 Se Deus não se coloca acima de tal tarefa, não reivindica para si a posição de domínio e descanso, com a imposição de uma submissão do trabalho pesado sobre outros, quem poderia reivindicar para si uma posição de autoridade e estabelecer para outros uma posição de submissão? Ao se identificar com a massa de trabalhadores manuais, Deus critica ordens fundamentadas em relações de autoridade e submissão. Nisso, Deus revela que a ordem domiciliar das relações familiares é definida por relações de interdependência e serviço mútuo. A forma como Deus se relaciona com a criação, sua casa, nada tem a ver com o complementarismo, que está muito mais próximo da ordem imperial criticada pelo texto bíblico.
Essa ordem fértil e segura, abundante e exuberante, portanto, depende de uma democratização da função e do trabalho manual, ordinário e cotidiano que nivela a todos como iguais. Não é mais o rei que tem acesso exclusivo a esse espaço como um ambiente do palácio. Agora todos podem ter acesso a ele por meio do trabalho cotidiano em seus próprios ambientes domiciliares. Esse é o modelo apresentado pelo próprio Deus. Que esse é o caminho para tal ordem, tal jardim, se revela pelo próprio nome que qualifica o lugar onde está o jardim, Éden. Comentaristas há muito tempo destacam o significado do termo hebraico עֵדֶן (ʿēden) como importante para a narrativa bíblica.40 David Tsumura afirma que o termo, a partir de seus cognatos em outras línguas, como ugarítico, árabe e aramaico, carrega dois significados, um primário e um secundário, que se seguem de forma lógica.41 Em primeiro lugar, עֵדֶן aponta para “abundância de recursos de água”. Isso faz todo o sentido na narrativa de Gênesis 2, em que é dito explicitamente que não havia chovido, mas que brotava água da terra (אֶרֶץ, ʾereṣ) e irrigava a superfície do solo (אֲדָםָה, ʾădāmâ, Gn 2.6), assim como uma descrição extensa de todos os rios cuja nascente estava no Éden (Gn 2.10-14). O segundo significado é “enriquecer, prosperar, fazer abundante”, e até mesmo apontando para “prazer e luxo” (cf. 2Sm 1.24; Sl 36.8; Jr 51.34).42 Num contexto agrário, tudo isso flui exatamente de um ambiente bem irrigado, ou seja, com muitos recursos de água. Assim como no caso dos jardins reais da Assíria, o jardim do Éden, plantado por Deus, é um microcosmo de toda a ordem cósmica.43 Dessa forma, o jardim do Éden também é caracterizado como um santuário, um lugar em que a presença e a bênção divinas estão acessíveis, por meio dessa experiência de fertilidade, segurança, abundância e exuberância, e onde se encontra o ícone da divindade, como veremos mais à frente.44 Assim como no caso de Gênesis 1, a ordem estabelecida pela ação de Deus se torna o modelo que deve ser seguido pela humanidade como representantes de Deus no cosmo. Logo mais veremos o aspecto positivo disso, mas agora é importante vermos o lado negativo a partir da relação da humanidade com a árvore da vida, ou seja, a “árvore cósmica”.
O ambiente dos jardins reais da Assíria, como vimos, também servia para associar o rei com a árvore cósmica ou árvore da vida. Sua função representativa da divindade, portanto, ganha um caráter sacerdotal, ou seja, como mediador da presença e da bênção divinas que garantem a vida do cosmo. Em Gênesis 2, também temos a árvore cósmica, marcada não somente pelas qualificações dadas a ela, mas pela sua localidade, “no centro do jardim” (בְּתוֹךְ הַגָּן, bǝtôk haggān, Gn 2.9). Existem duas características principais dessa tradição em Gênesis 2. A primeira é que aquilo que era atribuído a uma única “árvore” se divide em duas. Alguns comentaristas atribuem a presença de duas árvores como representativas da “árvore cósmica” a questões de composição do texto, como se uma das árvores houvesse sido incluída ao texto num momento posterior de composição textual.45 Mas existe uma explicação teológica melhor que também tem respaldo na sintaxe do texto.46 A relação entre vida, ou seja, imortalidade, e “conhecimento” (דַּעַת, daʿat), especialmente conhecimento da realidade divina, era intrínseca, já que a imortalidade é uma realidade divina desejada e buscada pela humanidade (cf. Pv 3.13-18; 11.30; 13.12; 15.4).47 Na Epopeia de Gilgamesh, por exemplo, Gilgamesh, o rei de Uruk, busca a imortalidade na “planta da juventude”, que é considerada “o mistério dos deuses” (Tabuinha 11, linhas 282–283; cf. Gn 3.5, 22). Imortalidade e conhecimento, portanto, são prerrogativas divinas.48 Essa divisão entre vida e conhecimento em duas árvores distintas é um apontamento de que a vida humana não depende do conhecimento dos mistérios dos deuses. A vida humana depende da relação de intimidade e confiança com Deus, mas não de forma cega ou sem fundamento. Deus criou e plantou um ambiente onde a humanidade pode encontrá-lo, oferecendo os recursos de vida para a humanidade. Como veremos, a responsabilidade da humanidade, que então oferecerá os recursos para preservação e reprodução da vida, está em conhecer e imitar o modelo estabelecido por Deus. Nisso, vemos que a ideia de conhecimento secreto do divino é uma tentação à humanidade para se tornar ela mesma divina, independente da sua relação com Deus. Sem dúvidas, num contexto de ideologia de realeza mesopotâmica, era o rei quem detinha esse conhecimento do divino ao manter em seu palácio adivinhos, videntes, necromantes, profetas, etc., e o usava para seu próprio benefício em detrimento dos seus subjugados (cf. Nm 22—24; Is 47.8-15).
A segunda característica principal dessa tradição da “árvore cósmica” em Gênesis 2 é a proibição de acesso a ela.49 É verdade que Gilgamesh nunca alcança a “planta da juventude”, revelando a futilidade da tentativa. Mas seu acesso não é proibido em nenhum momento. Por isso, como já vimos, os reis mesopotâmicos, especialmente assírios, afirmavam não somente ter acesso à “árvore cósmica” como se viam como a própria. Ao proibir o acesso humano à “árvore cósmica”, especificamente à “árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2.17), a tradição bíblica de Gênesis 2 afirma que nenhum ser humano pode ocupar o lugar exclusivo de Deus. Não há nenhuma possibilidade de reivindicar acesso ao conhecimento divino de forma exclusiva para si, tomando-o e retendo-o para seu benefício como uma propriedade pessoal a ser usada e abusada ao seu bel prazer. À humanidade é dito que o resultado de tal reivindicação não será vida, mas sim morte. É uma crítica ferrenha à ideologia de realeza mesopotâmica, especialmente assíria. Não se trata de uma morte imediata, mas de uma forma de viver que causará morte e não vida.50 Essa crítica aparece aqui em forma de narrativa mítica, mas ela é igual à crítica profética que podemos ver em Ezequiel 28 contra o rei de Tiro. Ali também vemos o uso do “conhecimento” (חָכְמָה, ḥokmâ) pelo rei para acumular riqueza para si mesmo (Ez 28.4-5). Esse conhecimento que leva à riqueza, então, na orgulhosa ideologia de realeza, é associado a uma reivindicação de divindade, “eu sou um deus” (אֵל אָנִי, ʾēl ʾānî, Ez 28.2). Mas a crítica ironicamente afiada vem na fala divina: “Será que você vai dizer ‘eu sou um deus’ [אֱלֹהִים אָנִי, ʾĕlōhîm ʾānî] na presença daqueles que vão matar você, nas mãos daqueles que vão feri-lo? Pois você é humano [אָדָם,ʾādām], não Deus” (Ez 28.9). Essa relação entre conhecimento, riqueza, reivindicação de divindade e a crítica ao humano “original”, o אָדָם, tornam esse texto de Ezequiel um bom comparativo com Gênesis 2.51
Podemos, agora, partir para o aspecto positivo do modelo divino que é estabelecido para a humanidade. Precisamos voltar só um pouco e considerar que os reis eram associados com as divindades e se afastavam do “povo comum” exatamente por uma forma de divisão de status e função a partir do trabalho ordinário e braçal ligado à agricultura. Em oposição a isso, Deus não se coloca acima de tal tarefa, não reivindica para si a posição de domínio e descanso, com a imposição de uma submissão do trabalho pesado sobre outros. É por isso que, diante desse modelo, ninguém poderia reivindicar para si uma posição de autoridade, de acesso exclusivo aos recursos que sustentam a vida e ao conhecimento do divino, e de mediação que estabelece para outros uma posição de submissão a fim de ter acesso aos recursos e ao conhecimento. Esse é o ponto de partida para entendermos todo o processo de criação do ser humano e do estabelecimento da sua função em relação à criação em Gênesis 2.
A relação do ser humano com o próprio solo impede que alguns poucos se vejam dissociados dele, como deuses, em sua posição de autoridade que pode descansar e ser servida por uma massa de subjugados que são forçados a se manter ocupados com o solo. Por isso, a criação da humanidade em Gênesis 2 enfatiza o material e o processo utilizado por Deus, algo novo diante do que aparece em Gênesis 1. A humanidade é formada a partir do עָפָר מִן־הָאֲדָמָ֔ה (ʿāpār min-hāʾădāmâ) e recebe de Deus o fôlego de vida em suas narinas, transformando-se em um “ser vivente” (Gn 2.7). O material utilizado aqui para a formação da humanidade reflete outras tradições do antigo Oriente Próximo, como veremos. No entanto, o processo de “avivamento” desse material por meio do sopro divino nas narinas de um objeto em forma humana se assemelha aos rituais de “avivamento” de ícones que representariam divindades egípcias e mesopotâmicas.52 Assim, apesar de diferenças notáveis da formação da humanidade em Gênesis 1 e Gênesis 2, ambas as narrativas compartilham o conceito de identidade humana como imagem representativa da divindade, ou seja, como imagem e forma (צֶלֶם e דְּמוּת, ṣelem e dǝmût).53 Como vimos no último artigo sobre a formação da humanidade em Gênesis 1.26-28, essa identidade humana como representante da divindade é um conceito de relação parental entre Deus e a humanidade. Como veremos nessa última parte, e também no próximo artigo sobre a relação do homem e da mulher, a identidade e a função da humanidade são todas construídas a partir da definição das suas relações de parentesco com as várias partes da sua existência: Deus, solo e outros seres humanos.
Pois, então, que material é esse que Deus usa para formar a humanidade? A expressão hebraica é geralmente traduzida como “pó da terra”. Contudo, o termo עָפָר (ʿāpār) aponta para substâncias granuladas que se encontram em forma compactada e maleável (ver Lv 14.41-42, 45; 17.13; Nm 5.17; 2Sm 24.3; 1Rs 18.31; 2Rs 23.6, 13; Jó 7.5). Sendo assim, a matéria-prima da humanidade é “torrão de solo”.54 Pode parecer um detalhe irrelevante a diferença entre “pó” e “torrão”, mas não é. A umidade do material é enfatizada antes e depois da formação da humanidade. Em Gênesis 2.6 é dito que água brotava e irrigava o solo, e a partir do jardim do Éden saía um rio que irrigava todo o jardim e se dividia em quatro braços, presumidamente para irrigar toda a terra (Gn 2.10-14). É a umidade do solo que garante, conforme o texto bíblico, sua fertilidade e dá ao jardim seu caráter rico, próspero e abundante. Além disso, a umidade do solo é enfatizada pelo termo “irrigar” (שקה, š-q-h, Gn 2.6, 10), que é melhor traduzido como “encharcar”.55 E, como vimos acima, esse caráter do solo, estabelecido por Deus no jardim como um microcosmo, serve de modelo para a função da humanidade. Antes da afirmação sobre a umidade do solo e logo depois que a umidade lhe é garantida e ele se torna fértil, o texto bíblico estabelece uma relação com o trabalho da humanidade. Em Gênesis 2.5, antes de falar da umidade do solo, o texto diz que não havia a humanidade para trabalhar o solo, e logo depois de falar abundantemente sobre a irrigação do solo e do jardim, o texto diz que Deus colocou a humanidade para “cultivar e guardar” (Gn 2.15). A própria constituição humana está fundamentada na fertilidade do solo, dada sua umidade, e aponta para sua função em relação ao solo, mantê-lo fértil. Logo a seguir, veremos mais sobre essa função, mas ainda é necessário explicar melhor a importância da constituição humana a partir do “torrão do solo”.
É claro que existe um jogo de palavras entre solo (אֲדָםָה, ʾădāmâ) e humanidade (אָדָם,ʾādām). Mas para entender bem o significado desse jogo, é importante falar da relação entre solo e “sangue” (דָּם, dām) e, consequentemente, entre solo e “vermelho” (אָדֹם, ʾādōm).56 O uso de sangue de alguma divindade como matéria-prima para a formação da humanidade aparece em certas tradições do antigo Oriente Próximo. No Enūma Eliš, Marduk cria a humanidade com o sangue (dâmu) de uma divindade, Quíngu, que sob o comando de Tiámat lutou contra os outros deuses (Tabuinha 6, linhas 23–34). Vale mencionar aqui, também, que a formação da humanidade por Marduk associa “sangue” (dāmu) com “ossos” (eṣemtu, Tabuinha 6, linha 5), uma combinação semelhante ao que vai aparecer em Gênesis 2.23, conforme veremos no próximo post. Já no Atra-ḫasīs, que é mais relevante para entendermos Gênesis 2,57 a humanidade é formada por Mami, a parteira dos deuses, a partir da argila providenciada pela grande divindade Enki, que é misturada com a “carne” (šīru) e o sangue (dāmu) de Wê-ila, outra divindade, e o cuspe das divindades menores, os Igigi, que eram os responsáveis pelo trabalho manual relacionado com a agricultura, como já vimos (Tabuinha 1, linhas 189–260). Nessa concepção da humanidade, existe uma semelhança forte com o parto natural humano, com a mistura de carne, sangue e outros fluídos corporais.58 A argila, aqui, portanto, tem um caráter inanimado e infértil, somente podendo se tornar viva por causa das propriedades dos elementos divinos, sua carne e seu sangue (Tabuinha 1, linhas 208–217). Assim, a argila somente cumpre uma função material para criar o molde da humanidade. Enquanto isso, o sangue e a carne da divindade, assim como a presença de uma deusa parteira, caracterizam a formação da humanidade como um parto divino estabelecendo uma relação de parentesco biológico entre as divindades e a humanidade.59 Por isso, as divindades responsáveis pela formação do ser humano nesses mitos do antigo Oriente Próximo são sexuadas com seus gêneros bem definidos. Em nenhum momento a genitália das divindades que forma a humanidade no Atra-ḫasīs ou no Enūma Eliš é mencionada. No entanto, a combinação de divindades masculinas e femininas parece pressupor que a sexualidade das divindades é um fator importante para a formação da humanidade e o estabelecimento da sua relação de parentesco com elas. Isso fica mais claro no mito sumério de Enki e Ninmaḫ. Aqui, a formação do ser humano também tem a participação de deuses com sexo definido: Nammu, mãe de Enki, e duas deusas parteiras, assim como do próprio Enki. O mito não tem uma boa preservação textual, contendo muitas lacunas grandes, mas uma coisa é clara: quando Enki forma um ser humano, ela é claramente feminina, porque logo em seguida Enki “derrama” seu sêmen em seu ventre e faz um elogio ao seu pênis.60
A relação entre os termos hebraicos para terra, humanidade, sangue e vermelho, ao mesmo tempo em que o sangue divino, a deusa parteira e a combinação de deuses com gêneros distintos estão ausentes da formação da humanidade, aponta para três aspectos bem importantes. Primeiro, a fertilidade da terra, enfatizada pela expressão “torrão do solo” e pelo relato de abundância de irrigação proveniente da própria criação, significa que este não é só uma matéria inanimada e sem participação na própria formação da humanidade. Assim como em Gênesis 1 a terra (אֶרֶץ, ʾereṣ) gera “ser vivente” (נֶפֶשׁ חַיָּה, nepeš ḥayyâ, Gn 1.24), aqui o solo (אֲדָםָה, ʾădāmâ) participa da formação da humanidade (אָדָם,ʾādām) como “ser vivente” (נֶפֶשׁ חַיָּה, nepeš ḥayyâ, Gn 2.7). Considerando o uso de “sangue” (דָּם, dām) na formação do ser humano em outras tradições do antigo Oriente Próximo, sua ausência material em Gênesis 2, mas sua presença conceitual na relação entre os termos hebraicos אֲדָםָה e דָּם, a relação “biológica” de parentesco é entre a humanidade e o solo, e não entre a humanidade e Deus. A terra, aqui, cumpre a função do corpo feminino, já que o substantivo hebraico אֲדָםָה é gramaticalmente feminino, que gera e dá à luz o ser humano, o אָדָם, um substantivo hebraico gramaticalmente masculino (ver mais sobre isso abaixo). A humanidade (אָדָם,ʾādām) tem sua origem na terra (אֲדָםָה, ʾădāmâ).
Isso nos leva ao segundo ponto: o elemento divino na constituição do ser humano não é biológico, como sangue e carne ou carne e ossos, como em outras culturas do antigo Oriente Próximo, mas um fôlego de vida. A vida divina no ser humano não se dá por uma relação biológica, mas sim pelo compartilhar de uma mesma força de vida, por assim dizer. O terceiro ponto é que a presença de somente uma divindade, sem nenhum envolvimento biológico na formação do ser humano, elimina qualquer possibilidade de definição sexual ou de gênero dessa divindade. Mais ainda, é necessário afirmar que a divindade que forma o ser humano em Gênesis 2, o que também é verdade em Gênesis 1, incorpora qualidades masculinas e femininas, mas independentemente de características físicas, especificamente da genitália. Com isso, estabelecem-se duas relações de parentesco para determinar a identidade e a função da humanidade: uma entre o ser humano e o solo, com um aspecto mais biológico do compartilhamento da mesma composição, e uma entre a humanidade e a divindade, com um aspecto mais social de compartilhamento da força de vida.
Com tal relação fundamental entre humanidade e solo, podemos falar melhor da função humana. Sabemos que o propósito da função humana em relação ao solo é manter sua fertilidade, ou seja, manter sua capacidade de produzir recursos materiais para o sustento e a reprodução da vida, seguindo o modelo estabelecido por Deus. Mas a humanidade precisa aprender esse modelo. Aqui precisamos voltar um pouco ao conceito do jardim e sua função na ideologia de realeza assíria. Como vimos, jardins eram uma realidade urbana, uma conquista, por assim dizer, dos esforços civilizatórios humanos. Os conceitos de civilizado e de selvagem eram de extrema importância na autopercepção dos povos da Antiguidade. A Epopeia de Gilgamesh trabalha exatamente esses conceitos a partir da identidade de Gilgamesh, como o grande rei que representa a civilização mesopotâmica, e Enkidu, que representa o homem selvagem. Na própria Epopeia de Gilgamesh existe um esforço por subverter expectativas do que seja civilizado e selvagem. Algo interessante também acontece em Gênesis 2 a respeito desses conceitos. Como vimos, é Deus quem estabelece o jardim do Éden; portanto, é Deus quem representa a vida civilizada. Contudo, Deus exerce a função dos trabalhadores manuais, e não do rei, ao “plantar” ele mesmo o jardim. Diferentemente do rei que vive em seu palácio, ápice da civilização, e tem a massa do povo como mão de obra para sujar as mãos com a terra, como selvagens, para realizar os empreendimentos da realeza, Deus está próximo da massa do povo, dos “selvagens”. Ao relatar a criação da humanidade fora do jardim, o texto bíblico a caracteriza como um ser “selvagem” que é colocado por Deus nesse ambiente civilizado, o jardim.61 A humanidade, portanto, precisará aprender o modelo civilizatório estabelecido por Deus. Nesse modelo, como já vimos, a humanidade não estabelecerá uma hierarquia entre reis e trabalhadores da terra subjugados, entre palácio e casa, entre jardim real e plantação familiar. A humanidade, como o próprio Deus, estará numa relação próxima, até íntima, com o próprio solo, a fim de preservar e expandir a sua fertilidade.
Para tanto, a humanidade não poderá somente atentar para o modelo estabelecido por Deus, mas também precisará entender a sua relação com o solo, portanto, entender o próprio solo. A humanidade precisa entender que ela e o solo vivem em interdependência e mutualidade típicas das relações de parentesco. Como vimos acima, essa é a relação entre solo e humanidade. Mais especificamente, a vida humana depende da fertilidade do solo e a fertilidade do solo depende da atuação humana, como veremos logo menos. Isso se deriva textualmente pelo fato de os termos para humanidade (אָדָם,ʾādām) e solo (אֲדָםָה, ʾădāmâ) serem correlatos, ou seja, humanidade e solo estão vinculadas como parte um do outro. Esse reconhecimento da relação entre humanidade e solo, então, aponta para a necessidade da humanidade se amoldar ao próprio solo, assim como o solo foi moldado à humanidade.
Com esta última afirmação, podemos investigar melhor o significado do propósito da humanidade, o que o texto bíblico nos informa ser um propósito dado por Deus: לְעָבְדָהּ וּלְשָׁמְרָ (lǝʿābǝdāh ûlǝšāmǝrā, Gn 2.15). Os dois verbos, עָבַד (ʿābad) e שָׁמַר (šāmar), podem estar relacionados com a atividade agrária, daí seu uso aqui, mas o campo semântico de ambos está mais concentrado em atividades cúlticas.62 Especialmente quando os dois termos aparecem com certa proximidade textual, eles se referem ao trabalho/serviço prestado a Deus e ao guardar/observar os mandamentos de Deus ou o trabalho sacerdotal (ver Nm 3.7-8; 8.25-26; 18.5-6; 1Cr 23.32; Ez 44.14).63 A função religiosa, cúltica e até sacerdotal da humanidade no jardim do Éden faz completo sentido considerando a característica dos jardins reais como santuários, como vimos acima. Na inscrição encontrada na Estátua de Tel Fekharyeh, citada no último artigo para determinar a identidade e a função da humanidade, também aparece o termo aramaico cognato de ēden,64 estabelecendo uma evidência de que a humanidade tem uma função de realeza sacerdotal ao ser colocada por Deus no jardim do Éden. O próprio texto bíblico estabelece essa característica do jardim como um santuário ao relatar que nesse ambiente Deus e humanidade se encontravam regularmente (Gn 3.8), ou seja, o lugar onde a humanidade poderia experimentar a presença e a bênção divinas, assim como num santuário.
A questão, porém, é como a humanidade exerceria essa função. Qual é o objeto de trabalho da humanidade? No texto bíblico, os dois verbos aparecem com sufixos pronominais femininos ou seja, trabalhar/servir a “ela” e guardar/observar “ela”. O problema é que o substantivo “jardim”, que antecede imediatamente os verbos, está no masculino. Sintaticamente, algumas opções seriam manter o “jardim do Éden” como objeto dos verbos, considerando que a palavra Éden é feminina e determina o gênero do nome “jardim do Éden”65 ou entender como uma forma longa do infinitivo.66 No entanto, o contexto literário e teológico nos força a pensar no próprio solo (אֲדָםָה, ʾădāmâ) como objeto da ação humana. Não se trata de uma opção sintática, já que sua última ocorrência foi em Gênesis 2.9. Mas o solo aparece como objeto do verbo עָבַד (ʿābad) no contexto imediato, em Gênesis 2.5 e 3.23.67 Seja como for, a questão é que o trabalho humano, num contexto agrário, é caracterizado como trabalho religioso qualificado como mediador da presença e da bênção divinas, ou seja, como trabalho sacerdotal.
Aqui já temos um caráter importante da identidade e da função humanas como reflexo da identidade e da função divinas. Deus plantou o jardim se envolvendo com a terra e agora a humanidade a trabalha/serve e guarda/observa. Precisamos lembrar que o trabalho com a terra e a plantação de jardins eram determinantes para relações hierárquicas de poder. Como vimos, o rei era o responsável pela ordem do jardim, enquanto as massas de subjugados eram quem trabalhava o solo. Em Gênesis 2, essas relações são criticadas e subvertidas. Deus se identifica com os subjugados que trabalham o solo a fim de afirmar que são essas pessoas, por meio do trabalho com a terra, e não o poder político e militar do rei, que realmente reflete o modelo do jardim do Éden que media a presença e a bênção divinas nesse mundo. A humanidade, portanto, deve trabalhar/servir e guardar/observar o solo conforme o modelo divino de ordem que é uma crítica e subversão dos modelos de realeza tipicamente imperiais, especialmente o assírio, com suas ordens hierárquicas de autoridade exclusiva e submissão que é melhor qualificada como opressão.
O contexto familiar e domiciliar contra o contexto do palácio dessa função humana sobre o solo nunca deve se perder de vista. Como vimos, a relação da humanidade com o solo é de interdependência e mutualidade típicas das relações de parentesco. Nesse sentido, a identidade e a função humanas não devem somente refletir algo do divino, mas também algo do próprio solo. Isso se torna mais claro aqui quando consideramos outra nuance dos verbos עָבַד (ʿābad) e שָׁמַר (šāmar) a partir da tradução “servir” e “observar”. O solo não é objeto passivo que recebe a ação humana de forma dominante. Isso seria o oposto do modelo divino.
Na tradição bíblica, o verbo שָׁמַר (šāmar) é usado a respeito das instruções divinas, a Torá, no sentido de obediência. A conclusão de Levítico 19, o que os estudiosos chamam de “mini Torá”,68 é que Israel deve “guardar/observar” (שָׁמַר, šāmar) as instruções divinas e “fazê-las” (וַעֲשִׂיתֶם, waʿăśîtem).69 Uma forma de entender a relação entre a humanidade e o solo é exatamente como uma obediência ao modelo divino que se estabelece como instrução, lei ou Torá, conforme explicado acima. Essa obediência, porém, não é cega. Ela exige atenção, observação, discernimento, sabedoria. Isso fica mais claro quando consideramos que o uso mais comum do verbo שָׁמַר (šāmar), num contexto de instrução da Torá, é em referência às festas cúlticas e ao sábado (por exemplo, Êx 12.17; 23.15; 31.13-14; 34.18). Os sábados e as festas cúlticas estão diretamente relacionadas com a ordem do tempo e a capacidade humana de discernir essa ordem ou padrão. A fim de obedecer tais instruções, Israel precisava aprender a “ler o tempo” por assim dizer, discernindo bem as épocas que a própria natureza tem.
Quando Gênesis 2.15 fala que a humanidade deve trabalhar/servir e guardar/observar o solo, aponta-se para a necessidade humana, dada sua relação de parentesco com o solo, de se interessar, observar, aprender com o próprio solo a fim de cumprir sua função dada por Deus.70 Numa relação de interdependência e mutualidade, é necessário conhecer bem o outro, aprender dele e com ele, a fim de estabelecer uma relação de cooperação e sinergia. Esse é o modelo e a ordem estabelecida por Deus como sendo o “jardim do Éden” onde a humanidade pode florescer e prosperar, desfrutar da presença e da bênção divinas. Em Gênesis 2, antes de qualquer relação social, esse modelo ou ordem já está estabelecido a partir da relação entre humanidade e o solo, que é caracterizada como uma relação de parentesco. Existe até um quê de poético aqui, considerando a imagem da humanidade criada a partir do torrão de solo. Enquanto a humanidade é moldada a partir do solo, o solo é moldado a partir do ser humano, que molda sua ação sobre o solo a partir do solo como seu molde. Mais uma vez, a identificação de עָפָר מִן־הָאֲדָמָ֔ה (ʿāpār min-hāʾădāmâ) como “torrão de solo” e não como pó ou argila é importante, porque os objetos feitos com argila eram cozidos para se tornarem rígidos com uma forma permanente.71 Na imagem de Gênesis 2, o que existe é um constante moldar mútuo entre humanidade e solo, e não uma forma definida e permanente, imutável. Essa é a beleza de um relacionamento mútuo em que as partes estão sempre sendo afetadas e afetando a outra, formando, moldando, uma comunidade, e não estabelecendo um império.
No próximo artigo, veremos como toda essa perspectiva criativa e bela, mas também incisiva e crítica, sobre a relação de parentesco da humanidade com o solo é usada para fundamentar a relação entre o homem e a mulher. Mas já é necessário dizer que essa relação não só está em total dissonância com relações de autoridade e submissão, como é crítica delas. A formação da humanidade em Gênesis 2, estabelecendo sua identidade e função, é contrária e crítica aos fundamentos e valores do complementarismo. O aspecto fundante da ordem divina que produz, reproduz e mantém a vida nada tem a ver com autoridade e submissão, mas com parentesco, portanto, interdependência e mutualidade. Mais ainda, a formação da humanidade em Gênesis 2 carrega uma crítica incisiva contra qualquer ordem cujo fundamento é estabelecido por um critério sexual ou de gênero. O aspecto biológico da relação de parentesco é estabelecido entre humanidade e solo, um elemento que não tem propriedade de gênero compatível com a identidade humana. Mais ainda, Deus não é definido por gênero, contendo aspectos masculinos e femininos, e sua relação de parentesco com a humanidade é estabelecida pelo compartilhar daquilo que sustenta a vida, não por uma ordem hierárquica entre homens e mulheres.
A questão da distinção de gênero e sua total irrelevância para a formação da humanidade e sua identidade e função na ordem divina nos leva ao último ponto crítico de Gênesis 2.4-17 para a ideologia complementarista. É necessário terminarmos afirmando algo que escapa ou é negado explicitamente pela interpretação complementarista de Gênesis 2. O ser chamado אָדָם (ʾādām), antes da separação entre o homem (אִישׁ, ʾîš) e a mulher (אִשָּׁה, ʾiššâ), não é sexuado ou definido por gênero. Existem explicações linguísticas, culturais e teológicas para essa afirmação e sua importância. Começando pelo aspecto mais fácil, o linguístico, que até já foi abordado no último artigo. Basta dizer que o termo אָדָם, apesar de ser um substantivo masculino, não tem um significante exclusivamente masculino, daí meu uso constante de “ser humano” ou “humanidade”. Além dos exemplos dados no último artigo sobre o assunto, dois argumentos mais diretamente relevantes podem ser usados aqui para corroborar essa afirmação. No relato da criação de Gênesis 1.26-28, que vimos no último post, o substantivo אָדָם inclui, em si, “macho” (זָכָר, zākār) e “fêmea” (נְקֵבָה, nǝqēbâ). אָדָם é um substantivo masculino singular com um referente plural para ambos os gêneros.72 Por isso, em Gênesis 1.26-28, אָדָם pode tanto estar associado a um pronome masculino singular (אֹתוֹ, ʾōtô, “o criou”, v. 27), quanto a um pronome plural (אֹתָם, ʾōtām, “os criou”, v. 27). Mesmo antes da distinção entre “macho” e “fêmea”, no v. 27, אָדָם como substantivo masculino singular aceita a combinação com o sufixo pronominal plural (וְיִרְדּוּ, wǝyirdû, “dominem eles”, v. 26). Dessa forma, como afirma Carol Meyers, o substantivo hebraico אָדָם é gramaticalmente masculino, mas socialmente não;73 ou seja, o gênero gramatical do substantivo não tem nada a ver com especificidade de gênero.74 Ainda no aspecto linguístico, vale lembrar que o substantivo masculino אָדָם não tem uma forma gramatical feminina que signifique algo como “mulher”. Como vimos acima, a forma feminina de אָדָם é אֲדָםָה, “solo”. Dessa maneira, a forma masculina do substantivo existe em função da forma feminina com a intenção de caracterizar a relação entre a humanidade e o solo, e não para determinar o gênero do ser humano primevo. O que nos marca como seres humanos, portanto, não é a nossa sexualidade ou nosso gênero, mas nossa conexão orgânica com o solo que sustenta a nossa vida.75 A humanidade marcada em nosso corpo não está no pênis ou na vagina, mas no “sangue” e na “carne”, marcando nossa relação com o solo, e nas nossas narinas, sopradas pelo fôlego de vida divino.76 São essas as partes do corpo humano que são destacadas no relato bíblico. Posteriormente, quando houver a separação dos gêneros, também haverá destaque para outra parte do corpo humano que nada tem a ver com órgãos sexuais, como veremos no próximo artigo. Para finalizar esse argumento, é necessário lembrar que, como no hebraico, em acadiano o substantivo lullû, usado para o primeiro ser humano, também não tem uma forma gramatical feminina, porque não existe uma contrapartida feminina para o ser humano primevo.77
E isso nos leva para o argumento cultural e teológico. Apesar de várias culturas da Antiguidade elevarem em valor e função o homem sobre a mulher, existia um mito do ser humano andrógino como perfeito. Irit Ziffer contextualiza esse mito muito bem a partir da análise de estatuetas do antigo Oriente Próximo. Ele descreve esse símbolo de perfeição humano a partir da estatueta de Ur-Nammu, rei da terceira dinastia de Ur, na Mesopotâmia, da seguinte maneira:
[O figurino] retrata o rei-construtor com o rosto liso, carregando uma cesta, com seios, sugerindo uma personagem afeminada… não o herói robusto e barbado, mas uma figura mais ‘feminina’ que incorpora características masculinas e femininas, portanto simbolizando a humanidade em sua totalidade.78

Além desse mito do ser humano perfeito como andrógino por incorporar os diferentes gêneros, existe também a tradição da formação do ser primevo já em pluralidade, com seus gêneros definidos. Esse é o caso do Atra-ḫasīs e de Gênesis 1.26-28. Por fim, ainda existe a tradição da formação do ser primevo como sendo sem sexo ou gênero. Esse ser primevo, então, recebe uma intervenção divina a fim de que a partir dele surja a separação de gênero. Por esse motivo, essa tradição pode ser combinada com a tradição do ser humano andrógino, já que é possível entender que o ser primevo contenha em si as características masculinas e femininas que seriam separadas num segundo ato de criação divina. Essa é a concepção mesopotâmica dominante.79 Esse é o caso de Gênesis 2.80 No próximo artigo veremos exatamente esse processo de separação dos gêneros. Por enquanto, vale a corroboração dos argumentos linguísticos, culturais e teológicos apresentados até aqui. Mas o caso pode ser avançado um pouco mais.
A indistinção de gênero do ser humano primevo, אָדָם, formado por Deus em Gênesis 2.7, não é uma posição interpretativa minoritária ou marginal. Estudiosos com publicações acadêmicas de peso, alguns até indiferentes quanto às questões modernas de gênero, afirmam, de forma geral, que o ser humano primevo em Gênesis 2 não apresenta distinção de gênero,81 ou mesmo que se trata de um ser andrógino.82 Se engana, porém, quem acredita que tal posição é uma inovação moderna de autores “identitários”. Na tradição judaica existe uma longa história que corrobora tal posição interpretativa. Fílon de Alexandria, importante filósofo judaico de tradição helenística do primeiro século da era comum, afirma que o ser humano criado em Gênesis 1.26-28 era andrógino, contendo qualidades masculinas e femininas, de forma espiritual e não física. Sua interpretação de Gênesis 2, porém, é diferente da apresentada aqui, afirmando que o ser humano primevo, a partir do qual a mulher foi formada, era fisicamente masculino.83 Mais importante, porém, é a evidência rabínica, uma tradição mais rigidamente judaica. Nessa tradição, o ser humano primevo era fisicamente andrógino, com as genitálias masculina e feminina. A partir desse corpo andrógino é que Deus faz a separação dos corpos e os sexos masculino e feminino (Eruvin 18a; Genesis Rabbah 8.1; Leviticus Rabbah 14).84 O exemplo de Berakhot 61a reflete a forma típica da hermenêutica rabínica que é tão diferente da hermenêutica crítica contemporânea. A discussão é precipitada por causa de uma peculiaridade ortográfica de Gênesis 2.7, em que o verbo “formar” aparece com uma duplicação da letra hebraica yod: וַיִּיצֶר (wayyîṣer). Depois de ofereces duas possibilidades de explicação, o Talmude oferece a alternativa dada pelo rabino Yirmeya ben Elazar: “O Santo, que Ele seja Abençoado, criou duas faces no primeiro ser humano; ele foi criado macho e fêmea num único corpo, como é dito: ‘Você me formou [tzartani] por trás e por diante’ (Sl 139.5); tzartani é derivado da palavra tzura [face]. Deus formou duas faces numa única criatura, trás e frente”.85 A partir daí a discussão é direcionada para a possível relação entre os termos “face” (tzura) e “lado” (צֵלָע, ṣēlāʿ), que aparece em Gênesis 2.21-22 sobre a parte de אָדָם que Deu usa para formar a mulher. Assim, a indistinção sexual ou de gênero, e até mesmo o caráter andrógino do ser humano primevo de Gênesis 1 e 2, é assumido com certa naturalidade pela tradição rabínica.
Se o ser humano de Gênesis 2.4-17, que é o que recebe sua identidade e função a partir das relações de parentesco com o solo e Deus, não tem distinção de gênero, as implicações são devastadoras para o complementarismo. Acredito que o leitor tem plena condição de discernir essas implicações por si mesmo. Não quero, então, “desenhar” tudo aqui. Mas acho importante falar de forma mais clara, objetiva e até pastoral com relação à função da humanidade definida pelos verbos עָבַד (ʿābad) e שָׁמַר (šāmar). Nós vimos que esses verbos têm caráter religioso, cúltico, sacerdotal. Isso significa que Gênesis 2 critica qualquer critério definido por sexo ou gênero para impedir pessoas de exercerem funções religiosas, cúlticas, sacerdotais.86
Sei muito bem que toda a ordem cúltica e sacerdotal definida no Pentateuco tem restrições definidas por sexo. Contudo, existe nessa mesma tradição bíblica um reconhecimento de que tais restrições não são definitivas e que seu propósito último é desaparecerem. Por isso, existe um forte ímpeto democratizante da identidade e da função sacerdotais no Pentateuco, algo que, infelizmente, não posso explicar aqui, mas que aparecerá em várias partes de uma futura publicação minha.87
Também sei bem que o complementarismo restrito, como o defendido por Yago Martins, estabelece uma diferença da ordem das relações de gênero no ambiente doméstico e no ambiente eclesiástico. Além disso, esse complementarismo restrito busca disfarçar seu hierarquismo afirmando a possibilidade de mulheres exercerem funções de autoridade na igreja, como leigas, portanto, sem ocuparem os cargos oficiais de liderança ordenada. Mas Gênesis não aceita esse tipo de distinção, de forma alguma. Mais ainda, esse tipo de distinção é o exato oposto do movimento teológico modelado por Deus no texto bíblico. Ao fazer o movimento de identificação com a massa trabalhadora envolvida com o trabalho com a terra, Deus nega qualquer distinção apropriada entre funções de autoridade baseadas em categorias institucionalizadas típicas da ordem imperial. Com esse movimento, junto com o estabelecimento do jardim do Éden como santuário e a função humana sacerdotal relacionada com o trabalho agrário, Gênesis 2 desfaz qualquer distinção entre casa e santuário, jardim real e horta doméstica, família e sacerdócio, culto e trabalho.
O que isso significa para o complementarismo, inclusive o restrito? Significa que a exclusividade de funções masculinas de autoridade, na casa ou na igreja, se opõe à ordem divina. Mais ainda, é possível até afirmar que nessa ordem o trabalho doméstico, no contexto familiar, é mais fundamental e enfatizado na definição da relação humana com Deus e com o solo que determinam a identidade e função humanas. As posições de autoridade doméstica e eclesiástica do complementarismo são artifícios que refletem mais a ordem imperial do que a ordem divina conforme sua apresentação no texto bíblico. Isso não é uma forma de consolar aqueles excluídos de posições de autoridade no domicílio, na sociedade ou na igreja por critérios tipicamente imperiais. Não é uma forma de dizer para essas pessoas: tudo bem, você pode exercer autoridade aí na sua tarefa doméstica, no seu ambiente doméstico, enquanto os homens ocupam os espaços de poder institucional. É uma crítica e uma exortação não somente para que se abram essas posições para todos, mas também para que aqueles que pertencem aos grupos privilegiados em seus espaços sociais por uma ordem hierárquica de autoridade masculina e submissão feminina se ocupem do trabalho doméstico no contexto familiar. A única forma de seguir o modelo estabelecido por Deus, e corresponder à ordem divina do jardim do Éden, é que todas as funções humanas nessa ordem sejam definidas pelas práticas mais comuns e ordinárias do trabalho manual cotidiano, que todos os espaços e instituições sejam definidos pelo espaço mais comum e ordinário do domicílio, e que todas as relações sejam definidas pela relação humana mais comum e ordinária, a família. Somente assim se perderá a noção de hierarquia de funções, espaços e relações, baseada em autoridade e submissão tipicamente imperiais que seguem critérios que privilegiam certos grupos e prejudicam outros; no caso do complementarismo, privilegiando os homens e prejudicando as mulheres. Homens que protegem suas posições de autoridade, em casa, na sociedade e na igreja, são como o imperador assírio e não como o Deus de Gênesis 2; tratam a família, a sociedade e a igreja como os jardins reais assírios, lugar de privilégio e poder do rei, único representante divino, em vez de enxergar a família, a sociedade e a igreja como santuário, lugar de serviço simples, ordinário, que molda constantemente a realidade a partir de relações de parentesco de interdependência e mutualidade. O complementarismo, portanto, cria pequenos reis com seus pequenos palácios — sua casa, sua sociedade, sua igreja — o fundamento da morte, conforme Gênesis 2—3.
Conclusão
Como temos visto por toda essa série, o complementarismo é uma ideologia, ou seja, uma forma de pensar e organizar a ordem das relações, hierárquica, patriarcal e misógina, pois tem como fundamento a autoridade masculina exclusiva e a submissão feminina. Uma importante qualificação da ideologia complementarista é que ela compartilha dos fundamentos imperiais que podem ser discernidos por toda história, inclusive nos contextos relevantes para as tradições bíblicas. Assim como Gênesis 1.26-28, Gênesis 2.4-17 também é uma crítica à ideologia imperial. Dessa forma, esse segundo relato bíblico da formação da humanidade, estabelecendo sua identidade e função, não pode ser usado para fundamentar o complementarismo. Mais ainda, como no caso de Gênesis 1.26-28, usar Gênesis 2.4-17 a favor do complementarismo é uma ofensa hermenêutica, teológica e moral que revela ignorância quanto ao texto bíblico e desconhecimento de Deus.
É claro que grande parte do argumento complementarista se fundamenta no que vem depois, em Gênesis 2.18-25, quando a separação entre o homem e a mulher ocorre. Esse será o assunto do próximo artigo. Ainda assim, é necessário dizer que o pressuposto complementarista necessário para avançar esse argumento a partir de Gênesis 2.18-25, ou seja, que a primeira criatura humana é masculina, foi totalmente invalidada aqui. Mesmo sem esse pressuposto, Gênesis 2.18-25 ainda merece muita atenção, por causa das diversas distorções ignorantes que complementaristas fazem com o texto. No próximo artigo, então, abordaremos a famosa expressão “auxiliadora idônea” (Gn 2.18), a “costela” ou “lado” (צֵלָע, ṣēlāʿ), que é a parte do corpo de אָדָם (ʾādām) usado para formar outro ser humano (Gn 2.21), o ato de nomeação, o significado da expressão “osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2.23) e a resposta do narrador sobre homem e mulher se unindo em uma só carne (Gn 2.24).
Notas
1.↑ Ver https://cbmw.org/2019/11/20/mere-complementarianism/
2.↑ Raymond C. Ortlund Jr. “Male-Female Equality and Male Headship: Genesis 1–3”. In: Recovering Biblical Manhood and Womanhood: A Response to Evangelical Feminism, editado por John Piper e Wayne Grudem (Wheaton: Crossway, 1991, 2006), 126.
3.↑ Yago Martins, Igrejas que Calam Mulheres (São Paulo: Mundo Cristão, 2024), 40.
4.↑ Ortlund Jr. “Male-Female Equality and Male Headship: Genesis 1–3”, 125.
5.↑ Ortlund Jr. “Male-Female Equality and Male Headship: Genesis 1–3”, 128.
6.↑ Ortlund Jr. “Male-Female Equality and Male Headship: Genesis 1–3”, 130–31.
7.↑ Martins, Igrejas que Calam Mulheres, 39.
8.↑ Martins, Igrejas que Calam Mulheres, 39.
9.↑ Martins, Igrejas que Calam Mulheres, 43–44.
10.↑ Martins, Igrejas que Calam Mulheres, 43–44.
11.↑ Ver Martins, Igrejas que Calam Mulheres, 33–36.
12.↑ Martins, Igrejas que Calam Mulheres, 35.
13.↑ Martins, Igrejas que Calam Mulheres, 36.
14.↑ Martins, Igrejas que Calam Mulheres, 42.
15.↑ Martins, Igrejas que Calam Mulheres, 50.
16.↑ Martins, Igrejas que Calam Mulheres, 39.
17.↑ Martins, Igrejas que Calam Mulheres, 40.
18.↑ Ver Karen Polinger Foster, “Gardens of Eden: Exotic Flora and Fauna in the Ancient Near East”. In: Transformations of Middle Eastern Natural Environments: Legacies and Lessons, editado por Jeff Albert, Magnus Bernhardsson e Roger Kenna (New Haven: Yale, 1998): 320–29.
19.↑ Ziony Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden? (New Haven: Yale University Press, 2013), 90.
20.↑ Cf. Philip J. King e Lawrence E. Stager, Life in Biblical Israel (Louisville: Westminster John Knox Press, 2001), 19, 94.
21.↑ Ver Mirko Novák, “The Artificial Paradise Programme and Ideology of Royal Gardens”. In: Sex and Gender in Ancient Near East, edited by S. Papola e R. M. Whiting (Helsinki: Text Corpus Project, 2002), 446–47.
22.↑ Stephanie Dalley, “Ancient Mesopotamian Gardens and the Identification of the Hanging Gardens of Babylon Resolved”, Garden History, 21.1 (1992): 1.
23.↑ D. D. Luckenbill, The Annals of Sennacherib, 113. Citado em Novák, “The Artificial Paradise Programme and Ideology of Royal Gardens”, 449.
24.↑ Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 118.
25.↑ Ninrode, associado com Assur, ou seja, Assíria, é denominado “grande caçador” em Gênesis 10.9.
26.↑ Ver Pauline Albenda, “Assyrian Royal Hunts: Antlered and Horned Animals from Distant Lands”, Bulletin of the American Schools of Oriental Research 349 (2008): 61–78.
27.↑ Cf. Marcelo Rede, The Image of Violence and the Violence of the Image: War and Ritual in Assyria (Ninth-seventh centuries BCE)”, Varia Historia 34.64 (2018): 81–121.
28.↑ As primeiras duas designações foram cunhadas por estudiosos modernos para definir essa tradição antiga, enquanto “árvore da vida” está mais próxima do que essa tradição significava na Antiguidade. Na literatura egípcia, encontramos a expressão exata “árvore da vida”, enquanto na Mesopotâmia ela é definida como “planta da vida”. Outra forma exata da expressão ocorre, obviamente, em Gn 2.9. Um bom exemplo dessa tradição aparece na Epopeia de Gilgamesh, Tabuinha 10, com o rei de Uruk buscando imortalidade, que é relacionada a uma planta. Ver Michaela Bauks, “Sacred Trees in the Garden of Eden and Their Ancient Near Eastern Precursors”, Journal of Ancient Judaism 3.3 (2012): 282–83, 292, n. 122.
29.↑ Barbara Nevling Porter. Trees, Kings, and Politics: Studies in Assyrian Iconography (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2003), 23–24.
30.↑ Ver Francesca Stavrakopoulou, “Tree-Hogging in Eden: Divine Restriction and Royal Rejection in Genesis 2–3”. In: Theology and Human Flourishing: Essays in Honor of Timothy J. Gorringe, editado por Mike Higton, Jeremy Law e Christopher Rowland (Eugene: Wipf and Stock, 2011), 45–47; John H. Walton, Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament: Introducing the Conceptual World of the Hebrew Bible (Grand Rapids: Baker Academic, 2006), 175–76.
31.↑ Ver Novák, “The Artificial Paradise Programme and Ideology of Royal Gardens”, 452; Stavrakopoulou, “Tree-Hogging in Eden”, 43.
32.↑ Stavrakopoulou, “Tree-Hogging in Eden”, 43.
33.↑ Ver Bauks, “Sacred Trees in the Garden of Eden and Their Ancient Near Eastern Precursors”, 279.
34.↑ Ver Robin B. ten Hoopen, “The Garden in Eden: A Holy Place?”. In: Jerusalem and Other Holy Places as Foci of Multireligious and Ideological Confrontation, editado por Pieter B. Hartog, Shulami Laderman, Vered Tohar, e Archibald L. H. M. van Wieringen (Brill: Leiden, 2021), 184. Para mais informações sobre a sacralidade dos jardins reais assírios com suas árvores, ver Pauline Albenda, “Royal Gardens, Parks, and the Architecture Within: Assyrian Views”, Journal of the American Oriental Society 138.1 (2018): 105–20, e Bauks, “Sacred Trees in the Garden of Eden and Their Ancient Near Eastern Precursors”.
35.↑ Bauks, “Sacred Trees in the Garden of Eden and Their Ancient Near Eastern Precursors”, 278–79.
36.↑ Tradução baseada na versão em inglês de Benjamin R. Foster, “Atra-ḫasīs”. In: The Context of Scripture, vol 1, editado por William W. Hallo e K. Lawson Younger (Leiden: Brill, 2003), 450.
37.↑ Versão modificada de Jacyntho Lins Brandão, Epopeia da Criação: Enūma eliš (Belo Horizonte: Autêntica Clássica, 2022), 88.
38.↑ Barbara Deutschmann, Creating Gender in the Garden: The Inconstant Partnership of Eve and Adam (Londres: T&T Clark, 2022), 28; Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 85–86.
39.↑ Ver Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 91.
40.↑ Ver John Goldingay, Genesis. Baker Commentary on the Old Testament Pentateuch (Grand Rapids: Baker, 2020), 51; John H. Walton, Genesis. The NIV Application Commentary (Grand Rapids: Zondervan, 2001), 166–68.
41.↑ David Toshio Tsumura, The Earth and the Waters in Genesis 1 and 2: A Linguistic Investigation (Sheffiled: JSOT Press, 1989), 135–37.
42.↑ Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 88–89.
43.↑ Goldingay, Genesis, 51.
44.↑ Para análises completas da relação entre o jardim do Éden e um santuário, ver Margaret Barker, The Gate of Heaven: The History and Symbolism of the Temple in Jerusalem (Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2008), 57–103; G. K. Beale, The Temple and the Church’s Mission: A Biblical Theology of the Dwelling Place of God (Downers Grove: InterVarsity, 2004), 29–121; ten Hoopen, “The Garden in Eden: A Holy Place?”; Gordon J. Wenham, “Sanctuary Symbolism in the Garden of Eden”. In: Proceedings of the Ninth Congress of Jewish Studies (Jerusalem: World Union of Jewish Studies, 1986), 19–25; Nicolas Wyatt, “A Royal Garden: The Ideology of Eden”. Scandinavian Journal of the Old Testament 28.1 (2014), 1–35.
45.↑ Por exemplo, E. A. Speiser, Genesis: Introduction, Translation, and Notes. The Anchor Bible (New York: Doubleday, 1964), 20. Para uma breve apresentação da história da erudição sobre isso, ver Tryggve N. D. Mettinger, The Eden Narrative: A Literary and Religio-historical Study of Genesis 2–3 (Winona Lake: Eisenbrauns, 2007), 7–10.
46.↑ Ver Andreas Michel, Theologie aus der Peripherie: Die gespaltene Koordination im Biblischen Hebräisch (Berlim: de Gruyter, 1997), 1–22, conforme citação em Bauks, “Sacred Trees in the Garden of Eden and Their Ancient Near Eastern Precursors”, 268–69.
47.↑ Cf. Mark S. Smith, The Genesis of Good and Evil: The Fall(out) and Original Sin in the Bible (Louisville: Westminster John Knox Press, 2019), 41.
48.↑ Mettinger, The Eden Narrative, 5, 60.
49.↑ Ver Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 122–23.
50.↑ Ver Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 124–25.
51.↑ Ver Mettinger, The Eden Narrative, 90–93.
52.↑ Catherine L. McDowell, The Image of God in the Garden of Eden: The Creation of Humankind in Genesis 2:5–3:24 in Light of mīs pî pīt pî and wpt-r Rituals of Mesopotamia and Ancient Egypt (Winona Lake: Eisenbrauns, 2015).
53.↑ McDowell, The Image of God in the Garden of Eden, 138–77.
54.↑ Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 80–82; Deutschmann, Creating Gender in the Garden, 27.
55.↑ Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 79.
56.↑ Ver Deutschmann, Creating Gender in the Garden, 27; Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 82.
57.↑ É possível que Gênesis 2 seja uma apropriação subversiva do Atra-ḫasīs. Ver Bernard F. Batto, In the Beginning: Essays on Creation Motifs in the Ancient Near East and the Bible (Winona Lake: Eisenbrauns, 2013), 88.
58.↑ Ver Shawn W. Flynn, Children in Ancient Israel: The Hebrew Bible and Mesopotamia in Comparative Perspective (Oxford: Oxford University Press, 2018), 37–39.
59.↑ Cf. Irit Ziffer, “The First Adam, Androgyny, and the ʿAin Ghazal Two-headed Busts in Context”, Israel Exploration Journal 57.2 (2007): 140.
60.↑ Ver Ziffer, “The First Adam, Androgyny, and the ʿAin Ghazal Two-headed Busts in Context”, 140.
61.↑ Ver Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 90.
62.↑ Walton, Genesis, 172–73.
63.↑ Beale, The Temple and the Church’s Mission, 67. Cf. Goldingay, Genesis, 60.
64.↑ Ver Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 87.
65.↑ Possibilidade sugerida por Bruce Waltke e Michael Patrick O’Connor, An Introduction to Biblical Hebrew Syntax (Winona Lake: Eisenbrauns, 1990), 103–04.
66.↑ Para as dificuldades dessa opção, ver Walton, Genesis, 172, n. 29.
67.↑ Ver Deutschmann, Creating Gender in the Garden, 33.
68.↑ David Tabb Stewart, “Leviticus 19 as Mini-Torah”. In: Current Issues in Priestly and Related Literature: The Legacy of Jacob Milgrom and Beyond, editado por Roy E. Gane e Ada Taggar-Cohen (Atlanta: SBL Press, 2015), 299–323.
69.↑ Ver como o verbo é usado dessa mesma forma geral a respeito da obediência da Torá e cumprimento da aliança em Josué 1.7 e 1Reis 14.8.
70.↑ Ver Deutschmann, Creating Gender in the Garden, 35.
71.↑ Ver Deutschmann, Creating Gender in the Garden, 27; Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 80–81.
72.↑ Ziffer, “The First Adam, Androgyny, and the ʿAin Ghazal Two-headed Busts in Context”, 141.
73.↑ Carol Meyers, Discovering Eve: Ancient Israelite Women in Context (Oxford: Oxford University Press, 2013), 72.
74.↑ Deutschmann, Creating Gender in the Garden, 31.
75.↑ Meyers, Discovering Eve, 71–72.
76.↑ Cf. Chingboi Guite Phaipi, The Bible and Patriarchy in Traditional Tribal Society: Rereading the Bible’s Creation Stories (Londres: T&T Clark, 2023), 85.
77.↑ Ziffer, “The First Adam, Androgyny, and the ʿAin Ghazal Two-headed Busts in Context”, 140.
78.↑ Ziffer, “The First Adam, Androgyny, and the ʿAin Ghazal Two-headed Busts in Context”, 140.
79.↑ Julia M. Asher-Greve, “Decisive Sex, Essential Gender”. In: Sex and Gender in the Ancient Near East: Proceedings of the 47th Rencontre Assyriologique Internationale, Helsinki, July 2–6, 2001, editado por S. Parpola e R. M. Whiting (Helsinki: Neo-Assyrian Text Corpus Project, University of Helsinki, 2002), 11, 21. Citado em Meyers, Discovering Eve: Ancient Israelite Women in Context, 72–73.
80.↑ Ziffer, “The First Adam, Androgyny, and the ʿAin Ghazal Two-headed Busts in Context”, 141.
81.↑ Deutschmann, Creating Gender in the Garden, 33.
82.↑ Batto, In the Beginning, 93; Leon R. Kass, The Beginning of Wisdom: Reading Genesis (New York: Free Press, 2003), 101; Meyers, Discovering Eve, 72; Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 148.
83.↑ Philo, De Opificio Mundi 134–136 (Philo, Volume 1, Loeb Classical Library, traduzido por F. H. Colson e G. H. Whitaker [Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1929], 106–109).
84.↑ Ver Ziffer, “The First Adam, Androgyny, and the ʿAin Ghazal Two-headed Busts in Context”, 143.
85.↑ Conforme a versão em inglês, disponível na plataforma Sefaria: https://www.sefaria.org/Berakhot.61a?lang=bi
86.↑ Ver Deutschmann, Creating Gender in the Garden, 36.
87.↑ Peter Altmann e Caio Peres, Numbers: An Introduction and Commentary. Tyndale Old Testament Commentaries (Londres: Inter-Varsity Press, 2025).