Diferentes opiniões tensionam o debate sobre o documentário Apocalipse nos Trópicos no campo progressista, seja para afirmar a posição política de um evangelicalismo democrático na disputa do poder, ou para enfatizar a atuação dos verdadeiros sujeitos sociais que possibilitaram a expansão da religião evangélica no Brasil


Recentemente, graças ao lançamento e disponibilização do mais recente documentário Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa, temos uma interessante movimentação de discussões diretas e indiretas entre religiosos evangélicos sobre o filme. Sejam progressistas, conservadores, liberais ou o pequenino grupo de radicalizados à esquerda, entre praticantes da teologia, pastores e pessoas influenciadoras no âmbito cristão, muitas opiniões foram dadas e, ocasionalmente, farpas trocadas — muitas vezes devido ao conteúdo do documentário, entre pares que não necessariamente gostariam de citar seus interlocutores.

Entre aqueles que decidiram produzir alguma observação ao filme, estou eu, que escrevo este breve texto com o intuito de realizar uma crítica da crítica (ou das críticas) feitas ao filme. No conteúdo supracitado, feito em dois vídeos,1 apresentei especialmente críticas a reações como a do pastor Antônio Carlos Costa, em seu canal do YouTube, e a análises como a publicada por André Castro na revista Zelota. Creio que ambos buscam tensionar posições teóricas e políticas dentro campo progressista a partir do documentário. Me interessa interlocução e debate crítico nesse campo, pois desejo, por meio da discussão franca, o aperfeiçoamento, o avanço, a qualificação ou mesmo propor alguma contribuição para nosso “bloco”, unido não por teologia, mas por tomadas de posições políticas diante da realidade nacional de nosso tempo.

A reação de Antônio Carlos Costa diante de Apocalipse nos Trópicos foi destacar a ausência de maior representação dos “30% de evangélicos” que não teriam apoiado o bolsonarismo nas eleições de 2022 e mesmo nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Antônio assume para si uma teologia conservadora, mas em seu posicionamento político está enquadrado como aliado ou próximo de progressistas — e esta é uma primeira observação importante para nossa crítica. No caso, não são as ideias de Antônio Carlos Costa ou como ele as apresenta que o posicionam politicamente em um determinado campo ou em outro, senão sua atuação e ação práticas. O conteúdo dito como crença teológica é secundário, e tem sentido à medida que o pastor tenta legitimar ou justificar suas ações por meio do manejo de seu arsenal teológico.

“A teologia é um ato segundo”, já diria a velha, talvez acamada, mas ainda viva teologia da libertação2. No caso, é menos importante que Antônio Carlos Costa se apresente como conservador e assim costure seu sistema discursivo do que o modo como, na história, está construindo sua trajetória. E nesse sentido, André Castro tem razão ao sustentar, em seu artigo “Não existe teologia do domínio, que a dita “teologia do domínio” não é a grande chave de explicação para a articulação entre evangélicos e o bolsonarismo no Brasil. Isso porque não são as ideias que construíram, conduziram ou mesmo fundamentaram a expansão e organização da religião evangélica brasileira — marcadamente pentecostal e com raízes e matrizes próprias, como muito bem explica Gedeon Freire Alencar3. Pelo contrário: são os processos históricos, com seus efeitos intencionais e não intencionais, que criam condições para que determinadas ideias possam ou não ser hegemonizadas e desempenhem um papel na busca por legitimidade em determinadas tomadas de decisão — no caso, na consolidação da igreja e dos pastores como executores do poder institucionalmente estabelecido, assim como os caminhos que estes escolhem seguir4.

Castro, por sua vez, percebe corretamente que o mais importante é observar e compreender as organizações comunitárias materiais e reais, as quais sustentam a base popular que garante poder às igrejas. Ele lembra que há agência, e não mera subserviência ou sujeição a uma manipulação maniqueísta e simplista de pastores poderosos diante de suas ovelhas, mas não dá o passo seguinte para compreender a constituição do poder das lideranças e sua posição de classe5 — debate este que temos ativo entre nós e excede o presente texto. Isso faz com que ele afirme a “inexistência” da teologia do domínio ao invés de destacar seu papel na legitimação das ações de lideranças religiosas que decidem sobre a estrutura institucionalizada de execução de poder, embora esteja correto ao afirmar que essa teologia não é o fator explicativo para a expansão evangélica e para sua ação na mobilização política nacional.

Esse aspecto não abordado limita sua crítica correta ao modo como é manejado o tal do conceito de “teologia da dominação”. Se o dominionismo fosse um fator explicativo, saber desmontar “biblicamente” ou “teologicamente” esse discurso resolveria nossos problemas — provavelmente uma negação da realidade por parte de teólogos “puros”, que, para manter sua função social, abrem mão das análises da realidade com ciências sociais e se apegam à tal disputa de narrativas ou algum anestésico similarmente reconfortante. Como se trata de um problema concreto muito mais denso, amplo e que não se reduz ao gueto evangélico, senão que aparece em todos os segmentos religiosos (e não religiosos) sob o signo de senso comum denominado “polarização”, discutir metafísica ou teologia abstratamente no jantar se torna algo individualmente muito mais factível e possível de ser realizado.

É esta a saída de grupos que se interessam por uma posição semelhante à de Antônio Carlos Costa, que resolve dar foco ou trazer luz para o tal dos “30%” de evangélicos não ouvidos por Petra Costa. No mercado das ideias teológicas, oferecer um produto interessante para esse nicho ou para os que não pertencem a ele é um empreendimento promissor. Claro, segue sendo uma fuga da realidade, independentemente do discurso desse grupo minoritário, a massa evangélica apoiou (e segue apoiando) o bolsonarismo. 

O objetivo de Apocalipse nos Trópicos é falar sobre o enfraquecimento das instituições democráticas, dando sequência ao documentário anterior da diretora, Democracia em Vertigem. A questão é que, no processo, foi observado um elemento novo, e a produção quis apresentá-lo: a participação de um segmento religioso específico na mobilização conservadora. Sob esse aspecto, que sentido faria apresentar os não bolsonaristas que não participaram (diretamente) do processo de enfraquecimento da democracia? Nenhum. A não ser que a intenção não seja falar sobre o documentário, mas aproveitar a deixa para expor ao “mundo” o trabalho ou a posição realizada pelo grupo minoritário, fazendo frente ao pólo oposto e, portanto, tentando demonstrar  sua relevância para a articulação de religiosos no campo progressista do cenário nacional.

Dessa forma, esse grupo contra a teologia do domínio pode ocupar um espaço vazio e demonstrar sua valia para lideranças políticas e sociais que em defesa da democracia desejem atuar junto. Um enfrentamento político propriamente dito, mas com roupagem teológica — afinal, a teologia é o ato segundo. Poderíamos denominar essa posição como produtora de uma teologia do domínio, “só que do bem”. Isso porque, como muito bem aponta André Castro em seu texto, descrever um grupo de líderes como pertencente ou seguidor da “teologia do domínio” é algo feito por adversários, que, ao observar as ações de determinado movimento, lançam mão de uma análise de discurso para fazer um contraponto. O problema central seria utilizar a religião para “dominar” o espaço e o ambiente público, que deveria se submeter aos valores e objetivos dessa teologia mobilizadora “do mal”. No fundo, esses valores não seriam (e não são) propriamente teológicos, senão os de um projeto político que excede o campo religioso e encontra interesses de classe e conflitos socialmente determinados. Esta teologia em defesa da democracia não acaba agindo da mesma maneira? Qual seria o conteúdo que diverge um grupo de outro? A correta interpretação do texto bíblico?

Na disputa sobre o que deveria ou não deveria ser a teologia, está quem opta por considerar a teologia do domínio como grande mal do momento a ser enfrentado (mas que pode facilmente ser substituída pela “teologia da prosperidade”, a categoria de “neopentecostalismo” ou algo do tipo, como também percebe Castro em seu texto). Porém, na posição de negar a relevância do papel desempenhado por um discurso teológico, está a desconsideração pelo modo como ações de instituições historicamente estabelecidas — e cujo poder é exercido sob uma determinada estrutura com diferenciação de classe — precisam legitimar suas tomadas de decisão (ou sua execução de poder). Entre elas, não está um caminho “do meio”, mas a própria realidade social e as possibilidades de intervenção nela.

Nesse sentido, me parece que a segunda posição está muito mais lúcida a respeito da agência dos sujeitos sociais e atenta à necessidade de se observar os processos históricos do que a primeira6, que, ao criticar o uso da teologia para dominar e desempenhar determinadas funções na cena pública, não percebe que opera da mesma forma, já que se centra no discurso e não nas estruturas sobre as quais este é ou pode ser construído. Contudo, a percepção de que a história e as condições e processos materiais vêm primeiro não pode conduzir à negação de que o discurso (e no caso, a teologia) desempenha seu papel ao dar razões aos sujeitos para agir de determinada maneira a partir de sua comunidade. O conteúdo do discurso tem sentido nas relações e interações humanas, e estas não são determinadas pela teologia pura e simples.

Notas:

1. O primeiro vídeo pode ser acessado neste link, e o segundo aqui.

2. A respeito da atualidade ou do fim da teologia da libertação, temos um debate ativo entre eu e André Castro que vale a pena conferir na Revista Zelota. O primeiro artigo, lançado por Castro, foi “O que resta da Teologia da Libertação?”, ao qual respondi com a réplica “Do passado, nos reta a luta”, cuja tréplica de André pode ser lida em “Aquele que pensa, opõe resistência”.

3. Gedeon Freire de Alencar, Assembleias brasileiras de Deus: teorização, história e tipologia – 1911-2011 (PUC-SP: Tese de doutorado, 2012). Também vale a leitura de Marina Correa, Dinastias assembleianas: sucessões familiares nas Igrejas Assembleias de Deus no Brasil. São Paulo: Editora Recriar, 2020. Importante também destacar que o foco nas Assembleias de Deus e no fenômeno pentecostal se dá por esse ser a base majoritária da massa evangélica e que, historicamente, estabeleceu a tendência de organização das igrejas evangélicas no Brasil.

4. A esse respeito, vale a pena a leitura do artigo “Fundamentalismo e reprodução social na América Latina”.

5. Sobre o tema, cabe a leitura de “Os evangélicos e a luta de classes”, publicado pela Rede Democracia.

6. O que é coerentemente presente nas análises de Castro, que em sua avaliação do processo histórico observável de passagem do envolvimento popular com a Teologia da Libertação para o bolsonarismo já se fazia presente e que vale a pena ser lida atentamente no artigo “Da teologia da libertação ao bolsonarismo”. Contudo, assim como apontamos em nossa crítica no presente texto, no artigo “Mais do que perdedores” também destacamos a falta de um movimento diacrônico diante de elementos que constituem o objeto analisado por Castro, mas que não foram contemplados em sua análise. No fundo, creio que o que ronda os debates (sempre necessários) é um esforço de aperfeiçoamento metodológico com respeito à compreensão dos fenômenos religiosos no Brasil.