O lucro missionário de pastores e obreiros, articulados por Ari Celso Cidral, que falsificavam batismos e embolsavam dinheiro com notas fiscais


Por André Kanasiro e Felipe Carmo | editores-chefe da revista Zelota. Publicado originalmente em colaboração com a Spectrum Magazine.

Desta vez, suas lágrimas eram genuínas. Ela já havia presenciado essa cena algumas vezes, mas agora permitiu-se envolver pela atmosfera espiritual que envolvia o evento. Era uma quarta-feira comum, em agosto de 2024, na cidade de Cotia, São Paulo. Infelizmente ela estava sozinha no tanque batismal, sem a sua família. Ainda assim, não se sentiu solitária. Com a voz embargada, maquiagem borrada e lágrimas lavando seu rosto, ela expressou profunda gratidão pelos obreiros bíblicos e pastores que lhe deram outra chance de “renascer novamente” — de forma redundante mesmo. De todas as suas experiências, essa foi a mais profunda — aquela em que, talvez, o Espírito Santo de fato inspirou suas palavras de agradecimento — palavras que alegraram os ingênuos e cismaram os descontentes.

Seu discurso pode ter comovido algumas das 300 pessoas presentes no evento, organizado pela Associação Paulistana, mas há dúvidas se a mesma comoção foi experimentada por uma “panelinha” de pastores entre os 90 presentes — pastores que dificilmente acreditariam na sinceridade de sua conversão.

Essa era a 10ª vez, em menos de três anos, que Dayane Rodrigues de Oliveira se batizava na Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD). Se houvesse uma 11ª vez, ela esperava estar mais convicta de sua fé, e não ser pega de surpresa novamente, no mesmo dia, despreparada, para dramatizar outro batismo por uma bagatela em dinheiro.

Para muitos, o pagamento de R$100-150 seria insignificante, quase irrisório, mas para alguém que enfrenta restrições financeiras diárias, era mais do que suficiente — especialmente quando combinado com cestas básicas e a promessa de uma caixa de frango que nunca chegou. O processo era rápido: entrar, vestir o roupão, mergulhar, tirar o roupão e voltar para a casa “renovada”. Para aumentar os ganhos, ela só precisava recrutar amigos, vizinhos e familiares. Seu marido, por exemplo, foi pago para ser batizado três vezes, e, com apenas treze anos, um de seus filhos já havia sido submerso três vezes também.

O poderoso pastor

A história de Dayane tem um prelúdio mais amplo, embora seu caso se destaque como um exemplo exagerado do esquema em que estava envolvida. Sua dramatização foi apenas uma entre centenas de batismos falsificados, encenados entre 2021 e 2024. Esses esquemas envolveram pastores e obreiros bíblicos em conluio com a Associação Paulistana (AP) e a União Central Brasileira (UCB) para falsificar conversões e cumprir metas batismais. A mercantilização de novos convertidos não apenas inflou as estatísticas de batismos, mas também gerou benefícios financeiros às partes envolvidas através de transações fraudulentas.  

A prática foi inicialmente denunciada ao tesoureiro da AP por um dos obreiros bíblicos e, posteriormente, confirmada por outro, Rafael Gomes da Rocha, que se dedicou a expor os envolvidos, principalmente o “cabeça” do esquema, Pr. Ari Celso Cidral, diretor de evangelismo da AP.

A fraude podia ser acobertada, mas a fama de seu líder não: Cidral possui uma carreira ministerial ampla, destacando-se entre as regiões Sul e Sudeste do Brasil, além de algum reconhecimento internacional. Para citar alguns exemplos, seus cargos incluíram o de pastor local em Mafra, Santa Catarina; Diretor de Mordomia Cristã e Comunicação da Associação Sul-Paranaense (ASP); Evangelista da Associação Paulista Sudoeste (APSO); e pastor no Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). No entanto, seu nome ganhou notoriedade no evangelismo público — seja de forma presencial ou on-line. Não por acaso, embora as acusações tenham chocado a membresia leiga, elas não surpreenderam alguns pastores da AP.

Cidral era famoso por outros motivos para além de sua liderança, e os batismos falsificados não foram as únicas acusações contra ele. O evangelista também estava envolvido em transações financeiras obscuras, difíceis de serem apuradas. Um exemplo é sua ligação com uma empresa de silagem de milho que operava paralelamente ao seu trabalho ministerial, a Meredral Ltda. — apelidada de “a fazenda do evangelista” por Rafael. De acordo com a Receita Federal, a empresa, sediada em Pinhão, Paraná, foi estabelecida em setembro de 2023, listando o ex-pastor Kleber Mereth Amaral como contato de e-mail. Embora Cidral não apareça oficialmente listado no documento, ele posou para uma foto publicada no perfil oficial da empresa em janeiro de 2023. A imagem, no entanto, foi excluída pouco antes da publicação desta matéria.

Foto de Cidral deletada da página da Meredral no Instagram.

Acusações contra Cidral começaram a circular em grupos pastorais em agosto de 2024. Os esquemas foram rotulados de formas variadas, mas sua natureza fraudulenta — e, para alguns, criminosa — permaneceu consistente. O caso ganhou visibilidade pública em outubro de 2024, quando Rafael decidiu divulgar vídeos no Facebook expondo o que ele chamou de “falcatruas” na AP. Nos três vídeos, ele ameaçou revelar evidências de “pastores que compraram batismos”, além de outras acusações envolvendo prostituição e práticas homossexuais. Os vídeos alcançaram a média de 6 mil visualizações cada, e foram compartilhados com frequência pelo WhatsApp. Por um tempo, a “internet adventista brasileira” ficou em polvorosa, aguardando que Rafael apresentasse as provas prometidas.

Não por acaso, os obreiros bíblicos envolvidos nas acusações foram demitidos de seus cargos pelo presidente da AP, Pr. Romualdo Larroca. Isso inclui Rafael e sua esposa, Fabiana Rocha, que trabalhava ao lado de seu marido. Seus filhos também perderam a bolsa de estudos no Colégio Adventista de Cotia. Enquanto isso, Cidral entregou sua credencial voluntariamente e recebeu uma calorosa despedida em celebração de seu legado. De acordo com uma fonte anônima presente no Concílio Pastoral da AP, em setembro de 2024, a saída de Cidral do ministério foi oficialmente atribuída a “razões familiares”. Liderada pelo Pr. Larroca, a despedida foi marcada por tributos clichês de colegas, que agradeceram o apoio de Cidral ao longo de seus ministérios. Rafael poderia ter expressado os mesmos elogios em tempos anteriores. Em 2023, durante seu testemunho no UNASP, campus São Paulo, ele disse: “o Cidral é meu pai, e o Larroca é meu outro pai.”

“Toma cuidado! A colmeia é grande” 

Como de praxe, a associação iniciou uma rodada de transferências pastorais silenciosas, realocando pastores envolvidos no esquema dos batismos. Rafael, no entanto, recebeu todo o impacto. No dia 25 de outubro de 2024, a UCB emitiu uma notificação extrajudicial, exigindo que Rafael apresentasse evidências de suas alegações ao departamento legal da UCB. Convocado várias vezes à sede da AP, ele se recusou a obedecer. Enquanto isso, Fabiana afirma ter recebido ligações anônimas com ameaças veladas e advertências crípticas. Por exemplo, no dia 27 de novembro, ela atendeu uma ligação de um número restrito, na qual uma voz não identificada avisou: “Toma cuidado! A colmeia é grande.” A família vive em meio ao medo e à pobreza, intimidada e preparada para novas retaliações.

Rafael e Fabiana Gomes da Rocha. Foto: Felipe Carmo

O primeiro amor

Após ouvir sobre as alegações, entramos em contato com Rafael e perguntamos se ele poderia compartilhar evidências conosco. Ele imediatamente nos convidou a visitá-lo em sua casa em Cotia, uma das muitas cidades ao redor de São Paulo.

Enquanto estávamos no sofá de sua casa, era quase impossível ignorar os sinais de uma vida se desfazendo. Seu filho mais velho, que almoçava um salgadinho devido à falta de dinheiro, estava assistindo desenhos da Disney numa TV Samsung de 75 polegadas — um luxo para o qual Rafael não conseguia encontrar um comprador, embora as dívidas só aumentassem. Felizmente nossa conversa não se perdeu em meio ao barulho da televisão, embora o menino tenha levado uma bela bronca: “Seu pai tá conversando! Desliga esse negócio e vai brincar lá fora!” Esta era nossa segunda conversa com Rafael após uma videochamada no dia 25 de outubro — o mesmo dia em que ele recebeu a notificação extrajudicial. Já se tornava claro que investigar a falsificação de batismos seria impossível sem nos aprofundarmos em sua história de vida. Embora já tivesse sido compartilhada com veículos adventistas, ela ainda carregava o peso e a emoção de uma história contada pela primeira vez.

Rafael, ex-obreiro bíblico da AP, vem de quatro gerações de adventistas no Centro-Oeste brasileiro. Seus pais se divorciaram quando ele tinha sete anos, e quando fez 15 — após uma discussão acalorada com seu pai — decidiu se mudar para São Paulo e morar com sua mãe, membra ativa da IASD. Foi nesse contexto que ele começou a confrontar a pobreza e a violência tão características das periferias de São Paulo. Um mês após sua chegada, com 16 anos de idade, ele entrou para a vida do crime; aos 18, ele se considerava um criminoso bem-sucedido. Na região de Itaim Paulista, Rafael era conhecido como “Bin Laden”, e era filiado à facção criminosa mais notória de São Paulo. Mas ao conversar conosco, Rafael não estava interessado em reviver suas façanhas criminosas, e sim o que veio depois.

Após uma breve introdução, Rafael se remexeu no sofá e contou a história de sua conversão como quem constrói um caso judicial. Em 2012, numa manhã de sábado, ele estava pilotando sua moto rumo a um assalto à mão armada, quando, por engano, acabou na IASD Jardim Mabel, onde sua mãe frequentava. Hesitante a princípio, e pressionado pela insistência de sua esposa, ele finalmente entrou na igreja. Sua chegada chamou atenção imediatamente: ele estava armado, sob influência de drogas e álcool, e frágil emocionalmente. Lembrando-se desse momento, Rafael descreveu como começou a chorar descontroladamente assim que “botou o pé na igreja”, e continuou a chorar ao longo de todo o culto. Em sinal de respeito, ele retirou a arma de sua cintura e sentou com sua esposa no terceiro banco, próximo à nave. Isso assustou alguns membros, que passaram para bancos mais à frente.

Nos quatro dias anteriores, ele mal tinha dormido, consumido por pensamentos negativos, “vivendo nas trevas” e entorpecido pelo abuso de drogas. No entanto, o ex-obreiro lembra vividamente da autenticidade de sua transformação naquele dia. Era um culto batismal, parte do programa “Roupão da Fé”, que visava receber de volta membros afastados durante uma semana de oração.

Após várias pausas, mal conseguindo conter a emoção, Rafael lembrou de ter sido batizado em torno das 13:30h, um horário incomum para a conclusão de um culto de sábado. Apesar de sua decisão, alguns anciões da igreja teriam tentado impedir o batismo, e outros até teriam desligado o aquecedor do tanque batismal. Rafael afirma que, no momento de sua conversão, pelo menos 45 membros saíram da igreja em protesto, discordando da decisão. O evento surpreendeu até sua mãe e sua esposa, que inicialmente não levaram sua decisão a sério.

No entanto, a transformação de Rafael foi mais radical do que alguns esperavam. Daquele momento em diante, ele abandonou sua vida de crime e começou a trabalhar em bicos como pintor ou pedreiro, até descobrir sua paixão pelo ensino da Bíblia. Cerca de 15 dias após seu batismo, enquanto estava em Itaquera, São Paulo, ele foi convidado a acompanhar um obreiro bíblico numa visita a um viciado em crack. Durante a visita, então, o obreiro subitamente pediu que Rafael orasse pelo viciado. Sem muita prática e usando expressões do cotidiano, Rafael foi completamente tomado pela experiência. Suas palavras levaram o homem às lágrimas, e ele escolheu o batismo no mesmo momento; Rafael lembra de ter pensado “Que sensação doida! Eu preciso de mais!” O testemunho do ex-criminoso começou a ressoar com uma audiência particular: “Tudo viciado, alma perturbada, gente suicida”, ele explica.

Rafael se apaixonou profundamente pelo trabalho missionário. Somente 20 dias após seu batismo, ele já estava servindo como obreiro bíblico, ministrando dentro do mesmo contexto de sua conversão — o programa Roupão da Fé. Dentro de um ano, ele afirma ter batizado uma média de 900 pessoas, e, por cinco anos consecutivos, ele teria sido reconhecido como o obreiro que mais batizava na região. “Um total de 4.814 pessoas foram genuinamente batizadas depois dos meus estudos bíblicos”, afirma ele com orgulho. “Eu só aprendi a fazer duas coisas na vida: ser bandido e dar estudo bíblico.”

A dedicação de Rafael a sua missão era incansável, marcada por sacrifícios e condições duras. Ele frequentemente caminhava longas distâncias para dar estudos bíblicos e dormia nos fundos de igrejas. Nessa jornada, ele sofreu um ferimento que limita o movimento do seu tornozelo. A despeito destes desafios, ele permaneceu um dos vários obreiros religiosos que continuaram a trabalhar durante a pandemia de COVID-19. De acordo com dados da Rede de Pesquisa Solidária, líderes religiosos estão entre os grupos mais afetados pelas fatalidades da pandemia em 2020. “Eu tava vivendo meu primeiro amor”, explica Rafael. Ele atuou como obreiro bíblico para a Associação Paulista Leste (APL) por dois anos, até ser contratado pelo pastor João Veríssimo para trabalhar na AP. Lá ele ganhava um salário de R$1.500, junto com outros benefícios. Em seu primeiro ano, ele teria batizado 75 pessoas que foram alcançadas através da TV Novo Tempo.

Com nostalgia, Rafael descreve seus três anos trabalhando com Veríssimo como “o ideal”. No entanto, eles não se sentiam apoiados pela associação, e no final de 2020 Veríssimo foi transferido subitamente para outra associação, no que parece ter sido uma manobra política. “Tinha uma conversa de que ele era um bom nome pro ministério pessoal da associação, mas a União não gostava dele, então transferiram ele pra um distrito difícil em outra associação”, lembra Rafael. Desiludido, seu primeiro amor começou a morrer.

“Essa p*rra tá toda f*dida!”

O sucesso de Rafael era bem conhecido entre seus superiores. Após a saída de Veríssimo, Ari Celso Cidral, diretor de evangelismo da AP, o colocou na equipe de evangelismo, com um salário de R$4.500 e um Fiat Palio 2012 como presente surpresa. Sua esposa também foi contratada, com um salário de cerca de R$3.200. Aos poucos, então a situação financeira do casal começou a melhorar — mas não por seus salários, dos quais uma parte tinha que ser devolvida a Cidral. Durante esta época, o casal recebeu mais que o dobro dos seus salários, pois suas contas bancárias foram usadas em um esquema financeiro. “Cidral me chamou na sala dele um dia e falou pra eu levar pra ele toda nota que eu achasse em supermercado.” Ele reconheceu ter se deixado levar pela perspectiva de dinheiro fácil e de vida luxuosa: “Eu pensei, se eu preciso de dinheiro e essa p*rra tá toda f*dida, eu posso muito bem pegar minha parte”.

Líderes e obreiros da IASD no Brasil podem solicitar reembolsos diretamente da tesouraria da associação por gastos no ministério, tais como na organização de conferências evangelísticas. No entanto, a falta geral de transparência e prestação de contas — líderes eclesiásticos de confiança dificilmente terão suas notas verificadas, e os registros das transações não são disponibilizados ao público — fazem com que o sistema de reembolsos seja um alvo fácil para atividades fraudulentas. “Ele me dava a nota, eu ia na tesouraria, trocava e pegava o dinheiro. De volta na sala dele, com a porta fechada, ele me dava uma parte e ficava com o resto. Quando ele percebeu que a gente era ‘do crime’ igual ele, ele começou a só depositar o dinheiro na minha conta”, explica Rafael.

Ele também afirma ter sido “levado” ao erro devido ao seu passado humilde e sua falta de experiência para entender o que estava acontecendo quando lhe pediram notas fiscais pela primeira vez. “Se você pede 30 conto pra comprar gás pra sua casa e o evangelista diz ‘Eu vou depositar R$1.600 na sua conta, e você pode ficar com 100’, quem que vai dizer não? Eu não sou hipócrita”, desabafa. Ao mesmo tempo, Rafael admite que foi seduzido pelo desejo de parecer ter a mesma condição de seus superiores, investindo em sua aparência, frequentando estabelecimentos chiques, e exibindo sua caminhonete Chevrolet S10. “Se você tivesse vindo falar comigo naquela época, eu era tão arrogante que ia ter te esnobado. Eu ia de olhar de cima a baixo”, conta.

Os extratos bancários de Rafael de 2021 a 2023 mostram que ele e sua esposa ganharam aproximadamente R$200.000 em reembolsos da IASD — um valor provavelmente subestimado, já que transações em dinheiro não são listadas em seus extratos para além de saques e depósitos em caixas eletrônicos. A maior parte do dinheiro era então transferida para Cidral. Como um exemplo de mau uso do reembolso, em fevereiro de 2023 Cidral convenceu Rafael a comprar a caminhonete, que pertencia a Cidral. Rafael recebeu R$12.000 em reembolsos da IASD, e transferiu o dinheiro para Cidral como entrada para a caminhonete. “O Cidral tava sempre pegando dinheiro emprestado e negociando” com outros líderes e obreiros da igreja, lembra Rafael. “Ele pegava emprestado de um cara, aí pegava emprestado de outro cara pra pagar o primeiro, e por aí vai.”

Como obreiro bíblico, Rafael trabalhou com Cidral por cerca de quatro anos, enquanto sua esposa, Fabiana, trabalhou menos tempo. Dentro de seis meses, o evangelista teria adquirido confiança o bastante para usar as contas bancárias de Rafael e Fabiana de modo a apagar rastros de atividades financeiras que poderiam ser vistas como suspeitas. No dia 23 de janeiro de 2023, por exemplo, Rafael recebeu R$10.000 do pastor da IASD de Alphaville, João Gomes da Costa. O dinheiro foi então transferido para Cidral no mesmo dia. “Eu não sei pra que era esse dinheiro”, admitiu Rafael, “mas coisa boa não era”. Àquela altura, a função de Rafael como intermediário já se tornava muito mais importante em um esquema diferente: a fabricação de batismos.

“Eles nem lembram quem você é”

A poucos quilômetros de onde mora Rafael, em uma pequena serra de Cotia, fica uma comunidade chamada Mirizola. Passe por algumas vielas estreitas, escadarias perigosas, e, após alguns minutos, você chegará a um pequeno barraco de madeira, no topo de um barranco. Ali vive Dayane Rodrigues de Oliveira, 35, com seu marido e cinco filhos. Do seu quintal, único lugar onde havia espaço para conversar, via-se o Colégio Adventista de Cotia se destacando de outros prédios menores no horizonte. “Tô preocupada com o clima”, nos conta Dayane enquanto serve café quentinho. Nuvens escuras se formam no céu. “Nossos vizinhos ficam desmatando o barranco que a gente vive, e não tem mais planta pra proteger de um deslizamento”, ela continua. Percebemos que estamos numa parte do barranco que já começou a deslizar devido às chuvas. Seu barraco de madeira, um pouco mais elevado que o quintal, é o próximo na fila.

A principal fonte de renda de Dayane é o Bolsa Família. Seu marido, sem emprego estável, passa de um bico para outro. “O Rafael e a Fabiana são como pais pra mim”, ela nos conta. Dayane conheceu o casal pela primeira vez na época em que Rafael trabalhava com Veríssimo; ela estudou a Bíblia com ele e foi batizada por Veríssimo com dois de seus filhos, na IASD Suburbana. Eles frequentaram a igreja por alguns meses, então pararam; chegou a pandemia de COVID-19.

Pastor João Veríssimo batiza a filha de Dayane. Dayane está ao fundo. Fonte: Facebook, 15 de julho de 2019.

Entre 2020 e 2021, Dayane teve uma frequência inconstante, passando meses sem ir à igreja, mas Rafael e Fabiana cuidavam dela e sempre a chamavam para voltar. Em algum momento ela foi rebatizada por Veríssimo em uma nova tentativa de se tornar uma membra ativa, mas acabou se afastando devido à “correria da vida”.

Em abril de 2022, Rafael a abordou novamente, mas com uma proposta diferente. “Ele sentou comigo, perguntou se eu aceitava, e eu falei que tudo bem”, conta Dayane. Ela recebeu R$180 e sete cestas básicas para ser batizada com seu marido e três de seus filhos. As cestas básicas foram compartilhadas com vizinhos que ela convidou para serem batizados também. A proposta de Rafael vinha de Marcelo Milani, um pastor recém-chegado que, segundo Cidral, “precisava entregar resultados” mas tinha dificuldade de atingir suas metas batismais. Milani estava disposto a pagar alguém que lhe garantisse candidatos ao batismo, Cidral os conectou, e Rafael aceitou a proposta.

Dayane topou a primeira e todas as outras ofertas que vieram depois; só naquele mês ela se batizou quatro vezes. “A gente batizou ela uma vez na IASD Cidade Dutra, uma vez na IASD Veleiros [ambas pastoreadas por Milani], uma vez na IASD Vila Yara e uma vez na IASD Central de Cotia”, relembra Rafael. No mês seguinte ela se batizou na IASD Vila Rodrigues.

O pagamento geralmente variava entre R$100 e R$150, e ela costumava se batizar junto com dois ou três de seus filhos; certa vez, até seu menino de seis anos foi batizado. “Ele teve que nadar no tanque batismal”, ri Dayane. Ela, é claro, era só uma entre muitos falsos candidatos ao batismo. Além disso, a falsificação de batismos assumia várias formas, e ia da falsificação de fichas batismais à contratação de indivíduos para participar das cerimônias. Durante um dos eventos evangelísticos, de acordo com Rafael, foram registrados 80 batismos, mas somente 25 de fato deram seu consentimento.

No bairro do próprio Rafael, falsos candidatos ao batismo apareciam por acaso. Enquanto nos despedimos em nossa última visita, duas garotas passaram na rua, e Rafael imediatamente reconheceu uma delas: “Olha! Aquela ali foi de outro batismo falso”, exclamou apontando para a garota, Sara Larissa, que por curiosidade se aproximava do portão. Embora um pouco tímida, ela confirmou sua participação no esquema, e foi batizada três vezes entre 2022 e 2023 — duas vezes em troca de cestas básicas e uma vez por dinheiro, cerca de R$50. Os batismos foram realizados em Itapevi e Cotia. Devido à espontaneidade do encontro, Sara nos pediu para não tirar fotos, e deu respostas bem breves.

De acordo com Rafael, com mais tempo livre seria possível encontrar várias outras pessoas que confirmariam seu envolvimento, embora não fosse possível visitá-los com frequência. Quando possível, nós entramos em contato pelo celular, e assim cruzamos com o casal Jodemario Freitas da Silva e Dayane Cordeiro dos Santos. De acordo com Cordeiro, eles estão “bem com a igreja”, e atualmente frequentam uma igreja adventista em Carapicuíba, SP. Eles ainda não são membros formais da IASD porque Freitas não se divorciou formalmente de sua ex-esposa. No entanto, Freitas e Cordeiro estão listados como membros da IASD, batizados na IASD Lava-Pés, em Cotia, no dia 13 de agosto de 2023.

Registro de Freitas e Cordeiro no banco de dados da IASD.

No ano seguinte, Milani pagou mais dinheiro a Rafael. Em troca, o obreiro bíblico teria enchido “três peruas com gente do Mandelinha pra se batizar”. Mandelinha é uma comunidade localizada em Cotia, SP. Dayane foi com eles outra vez. “Eu avisei que o povo ia reconhecer ela, mas ninguém disse nada”, nos disse Fabiana. Rafael tinha uma visão mais cínica da situação: “Eles se importam tanto com você dentro da igreja que eles nem lembram quem você é.”

Dayane Rodrigues e sua família sendo batizados em uma conferência evangelística em Itapevi, julho de 2022. De preto ao fundo, da esquerda para a direita: Ari Celso Cidral e Eneas Oliveira. De acordo com Rafael, os outros dois não sabiam que os batismos eram falsificados. Fonte: Facebook

Os extratos bancários de Rafael e Fabiana mostram várias transferências de Milani entre 2022 e 2023, num total de R$9.600. Todas as transferências, segundo o casal, estão relacionadas com mais de 100 batismos falsificados. Às vezes o dinheiro não partia da conta pessoal de Milani, mas de uma de suas igrejas locais, e até da conta bancária do UNASP. “Eu não sei como ele conseguiu fazer isso, mas era dele”, observou Rafael. Em outra ocasião, Rafael recebeu dinheiro de uma imobiliária chamada Floreat para transferi-lo à conta pessoal de Milani. De acordo com Rafael, Milani é o síndico do prédio da Floreat.

Após o sucesso das primeiras falsificações, outros pastores começaram a procurar Rafael com pedidos similares; Cidral os conectava e recebia uma parcela dos lucros, geralmente com dinheiro do evangelismo de igrejas locais. Entre eles está o Pr. Steverson Lemes da Silva, que enviou a Rafael um total de R$2.550 por mais de 50 batismos falsificados. Os extratos ainda mostram várias transações em dinheiro — não rastreáveis, portanto — que supostamente abrangem vários outros pastores.

No total, Rafael trabalhou 14 anos para a IASD, embora ele afirme só ter sido pago por 10 anos. Durante o período do esquema de falsificação de batismos, ele contou um total de aproximadamente 600 batismos falsos. “Se você for procurar, você não vai encontrar nenhunzinho na igreja.” 

Ainda assim, o ex-obreiro bíblico defende sua integridade: “Eu nunca falsifiquei a informação nos formulários”, protesta. Rafael afirma só ter usado nomes reais, alterando minimamente sobrenomes para sugerir autenticidade. Ele teria usado pelo menos 200 RGs obtidos de um colega que trabalhava vendendo carros.

A queda

Os acordos entre Rafael, Cidral e pastores locais tinham bastante atrito, e ficavam cada vez mais frágeis após cada falsificação. Era comum que um pastor pagasse pessoas através de Rafael e prometesse a elas uma refeição decente quando chegassem na igreja, mas essas promessas nem sempre eram cumpridas. Rafael lembra de ter que comprar um lanche para as pessoas que levou à igreja, e todas terem que comer na rua porque o pastor nem lhes oferecia uma sala para esperar. Cidral também deixou de cumprir promessas a Dayane e outros, tais como uma caixa de frango e até mil tijolos para reconstruir a casa de Dayane. “Meus vizinhos ficaram perguntando do frango por meses,” conta ela.

As tensões continuaram a escalar após o décimo batismo de Dayane, já narrado no início. A despeito da zombaria em meio aos pastores que a reconheciam, Dayane admitiu publicamente que não era seu primeiro batismo, e agradeceu com sinceridade por outra oportunidade de renovar sua vida. “Esse foi o mais marcante pra mim”, ela lembra. Fabiana brinca que disse a Rafael: “Acho que dessa vez ela foi de verdade.”

De acordo com Rafael, o pastor que batizou Dayane — Alex Gonsalves, diretor do Ministério Pessoal e da Escola Sabatina — não sabia de nada, e Cidral pretendia fazer de Gonsalves um bode expiatório. Quando os rumores começaram a se espalhar, Rafael teria assumido a culpa, declarando que levou Dayane sob as ordens de Cidral e que Gonsalves não sabia da falsificação. Dayane nunca foi paga por esse batismo; só recebeu um panetone e uma garrafa de suco de uva.

Desde então, Rafael suspeitava cada vez mais que Cidral queria se livrar dele, e seu papel na falsificação de batismos o amargurava cada vez mais. Quando Roberto, seu colega obreiro que teria perdido cerca de R$60.000 nos esquemas financeiros de Cidral, decidiu expor tudo ao tesoureiro da associação, Rafael decidiu apoiar as alegações de Roberto e fornecer evidências às investigações.

Em agosto de 2024, a Associação Paulistana concluiu sua investigação e realocou silenciosamente os envolvidos nos investimentos financeiros de Cidral ou em suas fraudes de reembolso. Reginaldo de Souza, diretor de Publicações, foi transferido para a Associação Paulista Oeste; César Reis, diretor de Mordomia e de Saúde, foi para uma igreja local; Nadma Forti, diretora do Ministério Infantil, foi encorajada a antecipar a aposentadoria; e Vicente Pessoa, diretor ministerial, foi transferido para uma igreja local no Sul. Milani, Lemes e Oliveira foram transferidos para outros distritos. Roberto e Rafael, por outro lado, foram demitidos.

“Usada como mercadoria”

Entre os muitos falsos candidatos batismais estava Michael Neres, que foi pago para se batizar três vezes: uma por R$100, duas por R$50, sempre junto de cestas básicas. Ele entrava no tanque batismal junto com seis ou sete outras pessoas e saía rapidamente. Jamais lhe ofereceram um estudo bíblico ou uma visita pastoral, e ele mal falou com os pastores que o batizaram. “Era muito rápido”, Neres lembrava, “você entrava na água e já era ‘vai, vai, vai’ pra sair”. Ele tinha um filho pequeno, estava desempregado e precisava do dinheiro. Quando perguntamos se ele iria a uma igreja adventista depois de tudo que aconteceu, Neres respondeu: “Quando você sabe o que acontece lá dentro, não dá pra entrar.”

Michael Neres logo após seu batismo em uma conferência evangelística em Itapevi, julho de 2022. À esquerda está Cidral. Fonte: Facebook
Michael Neres com seu filho pequeno. Foto: Felipe Carmo

Dayane tem uma postura similar em relação ao seu futuro com a IASD. “Se o Espírito Santo tocar meu coração, eu volto”, diz ela. “Mas se alguém me convida pra voltar porque vai ter comida e vão me dar coisa? Eu não caio nessa de novo não.” Rafael foi mais direto: “Eu dizia que tava ajudando ela, fazendo o bem, mas isso é errado. Ela foi usada como mercadoria.”

Dayane Rodrigues no quintal de casa. Foto: Felipe Carmo

Na esteira da investigação, Rafael e Fabiana foram “censurados” por Larroca para que não pudessem encontrar emprego em qualquer outra instituição da IASD. Ao receber um pedido de ajuda de Fabiana, Larroca respondeu como um homem piedoso: “A despeito de tudo, tenho orado muito por vocês!” Na segunda vez que a Zelota os visitou, a companhia elétrica havia desligado a luz em sua casa, e a família sobrevivia com doações de amigos, vizinhos e familiares. Durante nossa conversa, o filho de Rafael chegou carregando um saco de comida doado por vizinhos. “A gente já tá abastecido por hoje”, seu pai disse. “Leva isso pro Michael.” Michael Neres mora a um quarteirão de Rafael e já havia ajudado Dayane na época em que trabalhava na distribuição de gás.

Até hoje Rafael afirma receber ofertas para retornar ao crime. Estas propostas são tentadoras, pois poderiam resolver suas dificuldades financeiras, mas ele tem resistido, e sobrevive a partir de bicos e favores. Em tom de arrependimento, o ex-obreiro bíblico admite ter recaído em alguns velhos hábitos, e teme voltar ao vício em drogas. Necessitado, Rafael lamenta a perda de sua fé e luta diariamente contra o “velho homem” dentro de si.

Rafael também afirma ter recebido ligações de Milani e Cidral, oferecendo-lhe oportunidades financeiras e empregatícias. No dia 15 de novembro, o extrato bancário de Rafael mostra uma transferência de R$1.000 de Milani. De acordo com Rafael, a quantia foi apresentada como uma “ajuda” devido a suas dificuldades financeiras após sua demissão. As ligações de Cidral, por outro lado, incluíam ofertas de trabalho na Meredral.

Pessoas ou números? 

Pelos últimos 50 anos, o crescimento da IASD tem se concentrado no Sul Global e em comunidades migrantes no Norte, especialmente entre pessoas socioeconomicamente vulneráveis. Embora existam muitas razões para este padrão, o resultado é uma denominação que prioriza números e taxas de crescimento em comunidades com exigências severas para seus membros ao invés de discipulado e debate aberto de questões complexas. Pastores de igrejas locais no Brasil e em outros países periféricos são fortemente encorajados a atingir metas batismais semioficiais impostas pela liderança. Se um pastor não consegue atingir estas metas, o progresso de sua carreira provavelmente vai se retardar, e ele pode até mesmo ser “rebaixado” ao cargo de capelão em um colégio ou hospital adventista.

Por outro lado, quantidades elevadas de batismos podem justificar maiores orçamentos evangelísticos para igrejas e associações, e podem desempenhar um papel importante na ascensão de um ministro a posições de liderança. Batismos também são ferramentas importantes de poder político em todas as instâncias, inclusive na Associação Geral (AG); não é coincidência que Ted Wilson e Erton Köhler, os dois candidatos mais proeminentes à presidência da AG, tenham pavoneado sua participação em uma campanha evangelística massiva que supostamente batizou mais de 260 mil pessoas na Papua Nova Guiné — outro país periférico — às portas da próxima Assembleia Geral da AG, marcada para os dias 03-12 de julho deste ano.

Em seu relatório de 2022, a Secretaria da AG declarou orgulhosamente que 8.547.426 pessoas adentraram a IASD por batismos ou profissão de fé entre 2015 e 2022, com as conversões mais dinâmicas ocorrendo no Hemisfério Sul. O mesmo relatório afirmou que o crescimento de adventistas em África aumentou de 33% em 2003 para 44% em 2020. Mas, mesmo que ninguém o diga em voz alta, já se sabe que as taxas de crescimento para a IASD no Sul Global podem ser muito enganosas: na última década, a Divisão Sul-Americana perdeu cerca de 70% dos membros que ganhou. Isso quer dizer que, em comparação a pouco mais de 2 milhões de novos membros, cerca de 1,6 milhões de membros deixaram a IASD. Nesse contexto, empreendimentos evangelísticos agressivos podem ser uma tentativa de contornar estas perdas sem lidar com os problemas que levam  membros a deixar a igreja.

O que não se sabia, no entanto, era o quão artificial poderia ser o crescimento da IASD — muito mais do que o imaginado. Irmãos adventistas já questionaram se esses batismos em massa de fato conseguem se traduzir em frequência e discipulado na igreja, mas a fábrica de batismos na AP levanta uma pergunta muito mais perturbadora: se uma única associação supostamente falsificou mais de 600 batismos, quantos batismos da IASD são de fato genuínos? Ou, ainda pior: o que caracteriza um batismo genuíno, afinal?

A Zelota entrou em contato com a Associação Paulistana e a União Central Brasileira, perguntando se eles estavam cientes da situação, que medidas foram tomadas para garantir a integridade de batismos futuros, e como se dá a atribuição de metas batismais. Não houve resposta até o momento da publicação deste artigo.

Batismos são um processo altamente pessoal e subjetivo, o que faz com que sejam muito fáceis de se fraudar ou manipular. Ao tratá-los como um critério de avaliação tão importante para pastores, líderes e instituições, da mesma forma que se avalia a taxa de crescimento de lucro em uma empresa, a IASD abre uma fossa na qual pastores e líderes podem manipular e fraudar informações sem qualquer meio de verificar a autenticidade dos batismos ou acompanhar a continuidade de seu discipulado — se é que isso é possível. Ao que tudo indica, esta união entre igreja e medições corporativas alimenta uma fé cega e destrutiva. O que resta após sua saída do tanque batismal?