O cenário sociopolítico atual demanda uma leitura teológica da justificação pela fé como ato de humanização dos indivíduos e permissão divina para aplicação de sua justiça pela fé de Jesus


Por Elsa Tamez | Uma das biblistas mais importantes de nosso tempo. É teóloga metodista pelo Seminário Bíblico Latino-americano e pela Universidade Nacional da Costa Rica, onde se especializou em Literatura e Linguística. Doutora em Teologia pela Universidade de Lausanne, foi reitora da Universidade Bíblica Latino-americana e é uma das principais expoentes do Departamento Ecumênico de Investigações (DEI). Premiada por sua produção teórica no âmbito da hermenêutica, seu trabalho e militância são um marco na teologia da libertação, com sua crítica e perspectiva feminista, além das contribuições para a leitura popular da Bíblia. Artigo traduzido e adaptado do original em espanhol por Bruno Reikdal para a revista Zelota.1

“Família” (por: Dorothea Wiedemann)

A urgência de nosso tempo, hoje, não permite o envolvimento em discussões teológicas abstratas e interconfessionais que não conduzem à recriação do mundo e a uma humanidade solidária que luta para que todos os seus habitantes tenham o direito de viver dignamente. A justificação pela fé foi uma doutrina clássica de debates entre católicos e protestantes. Hoje, em um esforço ecumênico a nível institucional, continuam as discussões. Debate-se, ainda que agora haja muitas matizes, se há salvação pela fé ou pelas obras, ou se a iniciativa da salvação deve vir apenas de Deus e não do ser humano, ou se Deus torna justo o ser humano mediante o dom da justificação ou simplesmente o declara justo, ou ainda se Deus necessariamente declara justo o ser humano e portanto este faz justiça, ou é declarado justo porque faz justiça.

Uma discussão teológica nesse nível é boa, mas tem pouca relevância. Isso porque aos cristãos do Terceiro Mundo,2 o que convém saber é se a justificação tem algo a dizer a alguns continentes onde uma grande parte da população tem sido condenada a perecer gratuitamente na miséria e na insignificância, justamente pela falta de méritos. Dessa maneira, importa compreender como a Justificação pode ser pertinente para um continente como o americano, no qual muitos lutam contra um mecanismo mortífero legitimado por leis que conduzem à escravidão e à morte gratuita pela exclusão econômica, social e cultural. Para responder a essas perguntas de hoje, buscaremos fazer uma releitura da justificação pela fé.3 Desenvolveremos a discussão em três passos. Em primeiro lugar, colocaremos as questões da história em uma compreensão da justificação defasada da realidade; em seguida, partiremos para a fonte bíblica – aqui, Romanos – em busca de novos critérios para uma reconstrução da justificação em estreita relação com a justiça; e, finalmente, refletiremos sobre a justificação a partir da ótica dos excluídos.

Justificação ao pecador?

A fome e a insignificância de uma multidão desafiam a compreensão usual da justificação pela fé. Ao mencionar a vida ameaçada dos pobres e excluídos, o tema da justificação passa necessariamente por outra lógica, distinta da conhecida. Quer dizer, a afirmação sem mais de que “Deus justifica o pecador”. Porque os pobres vivem em uma história concreta na qual eles são as primeiras vítimas do pecado. Não são as únicas vítimas, mas sim as primeiras, as mais visíveis.

A presença dos pobres faz referência a seres responsáveis por sua existência. Seus sofrimentos não são arbitrários ou gratuitos: há uma motivação histórica que os gera. Por isso, não se pode falar de justificação pela fé, ou justificação ao pecador “em via direta”, de maneira abstrata. Os seres humanos têm rosto, situação social, cor e sexo. A justificação atravessa esta situação social e cultural.4 Hoje é difícil permanecer com um discurso abstrato, que não considera a particularidade a partir de onde se pronuncia. Ao não tocar as realidades da vida cotidiana dos sujeitos distintos, o discurso perde sua força, e não se observa, portanto, nenhuma realidade visível que manifeste o poder do evangelho do qual falava Paulo sem se envergonhar (Rm 1.16). Assim, falar da justificação como afirmação da vida e da justiça implica que essa vida seja tocada e transformada no plano concreto da história. Implica, dessa maneira, tratar da negação da vida dos sujeitos concretos. Essa mediação histórica faz com que as afirmações universais, tais como “Deus justifica pela fé”, não caiam no vazio, na manipulação ou na simples subjetividade das pessoas.

É claro que os pobres e discriminados não são santos, pois todos os seres humanos se movem sob uma estrutura de relações sociais de pecado. Inclusive, a prática mostra que o justificado sempre se reconhece pecador. O que é afirmado aqui é que uma aproximação à justificação orientada para a afirmação da pessoa como ser humano digno, é indispensável em um contexto onde os rostos dos seres humanos têm sido deformados pela pobreza, pela violação de seus direitos e pela humilhação.

Hoje, refletir sobre a justificação implica em discorrer sobre a graça de Deus e a desumanização da vítima e do vitimário – isto é, de quem faz vítimas. Isso exige discernir com clareza as distintas expressões de desumanização pelo pecado, para não cair nem na “graça barata”,5 nem em uma reconciliação a-histórica. Entretanto, requer sobretudo acentuar a boa nova aos condenados à morte pela fome e pela insignificância: a revelação da justiça de Deus em um mundo afogado pelo pecado da fome e da insignificância.

Retorno a Romanos

As contribuições da tradição nos momentos cruciais da história têm sido muito esclarecedoras. Independentemente das controvérsias interconfessionais, deve-se reconhecer que os desafios e as propostas teológicas dos pensadores da Reforma e da Igreja do século 16 contribuíram para que esta – e muitos cristãos – descobrissem uma nova experiência libertadora da fé. A leitura de Lutero da justificação pela fé significou para muitos uma libertação: da ansiedade da salvação, do temor de um Deus juiz, da escravidão das leis e da instituição. Chegar à compreensão de que o Deus que demanda justiça é um Deus misericordioso que perdoa, abriu caminho para a experiência de se sentir livre, digno e justo diante de Deus na sociedade.6

Hoje, as exigências da história são outras. O que está em jogo é a exclusão do acesso de milhões de seres humanos à vida digna, devido à ordem socioeconômica internacional, e a uma cultura dominante que tende a discriminar as mulheres, os negros e os indígenas. O retorno à fonte bíblica se torna imprescindível para redescobrir novos ângulos libertadores para os caminhos atuais. E a carta de São Paulo aos Romanos é a epístola privilegiada para essa busca.

A releitura atualizada da justificação em Romanos leva em conta o contexto histórico em que a carta foi escrita. Não apenas a disputa teológica entre Paulo e os judaizantes, mas o sistema escravista do Império Romano durante o primeiro século.7

Nesse sentido, não se pode ler sobre justificação pela fé sem ter como fundo os escravos explorados por aquele sistema e os inocentes crucificados pelos oficiais romanos – os vagabundos pobres das cidades do império, que rondavam por todas as zonas urbanas recém-construídas ou reconstruídas; a sociedade altamente estratificada que considerava dignos apenas os nobres e os que contavam com riqueza, quer dizer, os pertencentes aos ordines (senadores, cavalheiros ou decuriontes).8 Tampouco pode-se passar por cima da experiência de luta do autor da carta: Paulo, judeu da diáspora e artesão, que sofreu injustamente a prisão e esperou em um momento de sua vida ser julgado por um sistema de leis discriminatórias.9

Romanos 1.1—3.19 descreve as práticas de injustiça (adikia) dos seres humanos, diametralmente opostas à vontade de Deus. Estas práticas geraram uma lógica perversa que aprisionou a verdade na injustiça, ao ponto de chamar de verdade a mentira, e de mentira a verdade. Esta lógica condenou todos os homens e mulheres a sua submissão, e Paulo começou a nomeá-la pecado (hamartia)10 em Romanos 3.9. Por isso, revelou-se a ira de Deus (orge theou). Para Paulo, nenhum ser humano era capaz de condenar o pecado eliminando-o de uma vez, nem sequer fazendo a justiça. A lei dos judeus, dom de Deus para cumprir a justiça, também fora aprisionada pelo pecado, e “reduzida à impotência pela carne” (8.3). Por isso, tampouco poderia ser uma resposta eficaz em uma realidade invertida, pois “o pecado atua através da lei […], opera através da estrutura e sua lei vigente, e não através da transgressão da lei”.11

Dada a situação, é equivocado afirmar que o problema prioritário que Paulo percebe é a necessidade de que o ser humano seja declarado justo diante de Deus, ou de que seus pecados sejam perdoados. O problema fundamental era que não havia “nem um justo” (dikaios) capaz de fazer justiça para transformar essa realidade. Deus, para ser justo e fiel a sua criação, e fiel e misericordioso com os débeis, tem que intervir com uma justiça e um poder distinto e superior ao do pecado reinante, oferecendo novas alternativas de vida para todos. Somente assim pode se mostrar como justo e não esquecido ou surdo ao clamor da criação inteira, sobretudo dos pobres, vítimas da injustiça ao extremo.

Encontramos duas dificuldades na mesma situação: o poder do pecado estrutural que escraviza toda a humanidade e, em relação dialética, a impossibilidade dos seres humanos de fazer a justiça por causa do aprisionamento desta. Como consequência, há o abandono total dos pobres e debilitados nessa lógica pervertida. Tudo isso em relação dialética com o não conhecimento ou a rejeição a Deus. Por isso, Deus deve se revelar para que seja conhecido verdadeiramente.

É nesse momento climático que Paulo anuncia a manifestação (faneroo) da justiça de Deus (3.21-26), como a aparição de outro eon radicalmente superior e diferente.12 Trata-se da irrupção de Deus na história, mediada agora pela vida libertadora de Jesus Cristo. Se Israel com sua lei não pode levar adiante os planos de Deus, Jesus de Nazaré sim o fez por sua fé. É nesse contexto que se dá o evento da justificação.

O autor anuncia essa boa nova (3.21-26) com a frase “mas agora” (Nuni de) – é uma frase escatológica de oposição13 que traz o anúncio da libertação.

Nessa boa nova lemos três grandes notícias para nos alegrarmos: 1) A justiça de Deus se manifestou; 2) Esta justiça é factível, porque é dom de Deus que já se revelou na história por meio de Jesus Cristo; e 3) Alcança a todos, não apenas ao povo judeu, porque é acolhida pela fé, independentemente da lei.

Agora, bem, a pergunta crucial é como se manifesta esta justiça. Em primeiro lugar, para Paulo esta justiça se revelou próxima e factível por meio de Jesus Cristo (seu evangelho, ver Rm 1.16). Jesus Cristo é a revelação da prática de um justo, cuja vida de fé garante a chegada de uma nova humanidade, um novo eon; crê até o final na fidelidade de Deus, apesar de o terem matado. É essa fé-confiança-obediência (Rm 5.19) de Cristo que faz possível a justificação de todo ser humano (Rm 3.26; Gl 2.16; Fp 3.9) que acolhe o dom da justiça de Deus, com a mesma fé de Jesus. Por isso, Paulo estabelece que a justiça de Deus se revela por meio da fé de Jesus Cristo (dia pisteos ‘lesou Xristou)14 para todos os que creem (eis pautas tous pisteuontas). Ressuscitando Jesus de Nazaré, o acusado – e perseguido – pelas leis de seu tempo, Deus não apenas o justifica diante de toda criatura, mas também justifica todo ser humano (Rm 4.25).

Nesse sentido, Jesus é iniciador e consumador da fé na luta contra o pecado (Hb 12.2-4). Sua fé tem caráter soteriológico,15 provê as bases para a fé resposta de outros, que, pelo dom do Espírito, pode ser como a fé de Jesus.16 A fé de Jesus é anterior e distinguível – ao menos conceitualmente – da fé do crente, enquanto inaugura a fé escatológica, e essa fé é o meio pelo qual Deus manifesta sua justiça a todas as pessoas que se apropriam da atitude de Cristo, e assim participam na consumação do propósito histórico de Deus.17

Agora, bem, para tirar da raiz todo exclusivismo de salvação de um povo, Paulo introduz um fragmento cúltico já conhecido da comunidade primitiva que fala da obra libertadora de Cristo e o perdão dos pecados (apolytrosis-hilasterion-paresis-hamartema). Com isso, ele anula da lei judaica seu caráter salvífico. No fragmento, é recordado o ato da morte de Jesus em sua função redentora e expiatória. Possivelmente se tratava de uma tradição soteriológica, vinda dos helenistas de Antioquia, que proclamava Jesus como reconciliador, tendo em mente não apenas a tradição de Levítico 16, mas também a prática de todos os anos do Dia da Grande Expiação dos pecados no Templo de Jerusalém.18 Jesus é apresentado como hilasterion – termo difícil e extensamente discutido –, lugar de sacrifício e vítima ao mesmo tempo, e o próprio Deus expiando, de uma vez por todas, os pecados de toda a humanidade. Dessa maneira, a função expiatória dos funcionários do Templo ficava anulada, e com ela a lei ritual. A salvação é estendida, pois, para todas as nações. Paulo usa com a palavra ambígua hilasterion simplesmente uma imagem sacrificial, a qual não dá conta de toda a pessoa e obra de Cristo.

Esse fragmento cúltico pode ser lido também a partir da perspectiva histórica de Jesus. A morte de Jesus Cristo na cruz nos mostra a expressão máxima do pecado nos tempos de Paulo, assim como também a verdade de que a justiça não vem pela lei.19 As autoridades romanas já haviam crucificado muitos escravos inocentes, mas sua inocência não estava clara devido à lei mentirosa, cúmplice das injustiças. Com a condenação injusta e morte de Jesus Cristo, claramente um inocente “que não conheceu pecado” (2Co 5.21), o Filho de Deus, o pecado se mostra como tal, com nitidez. Seu poder pode, por fim, ser destruído. Deus o destrói ressuscitando Jesus Cristo, o condenado. A lei judaica, por sua vez, amaldiçoava a todos os condenados no madeiro, fossem estes inocentes ou não. Ao amaldiçoar o Filho de Deus, fica evidente sua inutilidade. Assim, a morte de Jesus na cruz em Jerusalém e sua ressurreição deslegitimam ambas as leis, a romana e a judaica, ambos os modos de vida: o eon presente. Essa morte possibilita a Paulo discernir os símbolos de justiça de Deus, discerni-lo como justo e justificador. Jesus, por sua vida de fé, marca o fim dos sacrifícios de inocentes. Ele os assume de uma vez e para sempre, e abre as possibilidades para uma nova maneira de viver. A fé do cristão consiste em acolher e fazer sua a fé de Cristo (viver em Cristo). Participa de sua morte e ressurreição (ver Fp 3.10 em diante; 2Co 4.11) porque crê que nele chegou a justiça de Deus, e porque crê que Deus já o ressuscitou.

De todo modo, dizer que a justiça de Deus se manifesta neste mundo pela obra libertadora de Jesus Cristo não muda nada na realidade, o problema central. Paulo tem que reler dois elementos importantíssimos em relação a Jesus Cristo que afetam profundamente os seres humanos: o ato de justificar – pela fé de Jesus Cristo – e a fé dos seres humanos que acolhem o dom da justiça de Deus.

Ele havia dito no versículo 23 que todos pecaram e estavam destituídos da glória de Deus; agora, afirma que são justificados (dikaioumenoi) pelo dom de sua graça, em virtude da redenção-libertação (apolytroseos) realizada em Cristo Jesus. 

O verbo justificar (dikaioó) traduz aqui o verbo hebraico tsedek, no causativo (hifil).20 Quer dizer, Deus faz com que os seres humanos façam Justiça. Se a grande calamidade que Paulo nos fez ver era que não havia nem um justo, ninguém que fizesse o bem, agora Paulo afirma o contrário: pela manifestação da Justiça de Deus mediante a fé de Jesus Cristo e sua ressurreição, abre-se a possibilidade de todos fazerem justiça, pois têm sido justificados, começando com Jesus.

A finalidade da justificação é transformar os seres humanos em sujeitos que fazem justiça, que resgatam a verdade aprisionada na injustiça. Na obediência da fé e não da lei, entra-se em uma nova ordem de vida, e os que optam por esta “vida fazem de seus membros armas da justiça” (Rm 6.13). Deus se entrega a si mesmo no dom da justiça21 e, portanto, o ser humano recobra sua capacidade de fazê-la. Paulo tem em mente, sem dúvida, a realidade de uma nova criação (como 2Co 5.17), não apenas de corações individuais, mas da sociedade inteira e de todo o mundo (Rm 8.19-21).

Essa é uma boa nova para toda a sociedade, principalmente para os pobres, que sofrem as impiedades e injustiças do opressor; mas também para todo ser humano, pois para todos é aberta a oportunidade de praticar a justiça. Do ponto de vista forense, observamos que, no ato gratuito da justificação, os homens e as mulheres podem se apresentar diante de Deus e dos demais como justos e como pessoas dignas; Deus, no evento da recriação, não leva em conta os pecados cometidos anteriormente (Rm 3.25; 2Co 5.19).

Temos, pois, um Deus “justo e justificador” (Rm 3.26) que, em seu direito, recupera suas criaturas como filhos e filhas com o fim de que transformem o mundo que ainda está sob a ira, sob o juízo, e que assim estará até o fim dos tempos. O dom da justificação é parte do escatón mas não o escatón,22 e por isso a criação ainda geme (Rm 8.22). Isso é importante para os pobres e discriminados, pois o juízo de Deus presente, em relação à dialética com a justiça de Deus também presente, garante que seja feita a justiça aos debilitados, ameaçados sempre pelas injustiças dos seres humanos.

Em Romanos, Paulo insiste que Deus justifica pela graça a todos os que têm fé, e não pelas obras da lei. A nova humanidade é inaugurada com Jesus Cristo (seguindo Adão) pela fé. Para fundamentar seu argumento, Paulo recorre ao exemplo de Abraão em Rm 4. E é através desse capítulo que o apóstolo explica o conteúdo da fé do crente. Abraão foi justificado porque creu que Deus dá vida (zoopoieo) aos mortos e chama as coisas que não são para que sejam (Rm 4.17). Trata-se de crer no que é impossível para o ser humano.

Com um exemplo concreto, o apóstolo afirma que Abraão, transgredindo as leis da física – um homem de sua idade não pode conceber descendência –, crê contra toda esperança (elpida ep elpidi episteusen) que gerará (ver Rm 4.18 em diante). Abraão, diante da promessa de Deus, saiu fortalecido na fé, plenamente convencido de que Deus tem poder para cumprir o que promete (Rm 4.20-21). Imediatamente depois, Paulo faz um paralelo com a fé do crente a quem se dirige: é a descendência que também crê n’“Aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos, Senhor nosso” (Rm 4.24). 

A justificação e a ressurreição estão intimamente relacionadas. Jesus foi ressuscitado para nossa justificação (egerthe dia ten diakaiosin hemon); ou, em outras palavras do próprio Paulo, foi ressuscitado para que frutifiquemos para Deus (hinha karpoforesomen to theo) (Rm 7.4). Quando Paulo compara a participação de Cristo e de Adão na história, destaca o caráter de vida do dom da justiça (ver Rm 5.17-18,21) por Cristo. O mesmo ocorre quando escreve sobre o trabalho do Espírito (de Deus ou de Cristo) (Rm 8.6,10-11). A esperança-fé do crente habitado pelo Espírito do ressuscitado está em que ele receberá vida como Jesus, o primeiro de muitos, a recebeu (ver 1Co 15).  O fundamento da esperança consiste em que a justiça de Deus está na terra23 e que, portanto, o mundo invertido que tem a verdade cativa pode ser transformado pelo ser humano que crê porque foi justificado pela graça mediante a fé para que seja feita justiça aos debilitados, ameaçados sempre pelas injustiças dos seres humanos. Com essa certeza, pode-se seguir adiante nessa história, que, apesar de viver em tempos de graça, segue tendo presente a lógica do pecado, da lei e da morte. São tempos de luta entre a vida e a morte, a lógica da carne e a do espírito.

A justificação a partir dos excluídos24

Temos entendido a justificação como sinônimo de humanização, e isso é correto. Contudo, geralmente só se toca em uma questão psicológica do ser humano: o sentir-se livre de culpa e reconhecer-se como sujeito finito sem a necessidade de se autoafirmar constantemente frente a Deus, aos demais e a si mesmo. Isso não é suficiente em um mundo dividido e onde os excluídos irrompem na história. Existe uma relação profunda entre desumanização psicológica – sob a dimensão de sentir a necessidade de aprovação como ser humano – e a desumanização corporal, cultural e social; ou seja, onde são palpáveis os vestígios da desnutrição e da insignificância.

A morte ronda entre a fome e a insignificância. Ali está o reinado do pecado, legitimado pela lei da exclusão. É um reino de morte não porque está morto, mas porque mata; está vivo e sua vida se mantém ao absorver o sangue dos excluídos. Trata-se do ídolo que se impõe como senhor.25 A intenção de sua lógica não é matar em si; não obstante, como sua justiça está orientada para dar vida a alguns da humanidade, o restante fica excluído e sua vida é ameaçada pelos vaivéns das pulsações da lógica que se sustenta pela exclusão. A angústia se soma à experiência de fome ou à vida ameaçada.

Uma leitura teológica da justificação, em um contexto onde os pobres e discriminados são ameaçados em sua existência, exige que o acento seja posto na justiça e na graça de Deus que eleva o excluído à dignidade de filho e filha de Deus. Antes de falar de “reconciliação com o pecador”, ela fala da solidariedade de Deus com o excluído. A reconciliação de Deus com o pecador é um aspecto da justificação pela graça, mas não é o único. Considerar somente este aspecto é refletir a boa nova a partir de Caim, o assassino, sem estimar o clamor do sangue de seu irmão, Abel, a vítima.

A raiz da justificação é a solidariedade do Deus trino com os ameaçados de morte. Refere-se à solidariedade incondicional de Deus em Jesus Cristo, que vai até o padecimento da cruz, e à solidariedade de irmãos e irmãs – fedundidade da justificação, procedente do dom da filiação.

Graças à solidariedade de Deus, no evento da justificação pela fé os excluídos recuperam sua dignidade de filhos livres. A imagem de Deus, torturada, manifesta-se em Jesus Cristo, o excluído por excelência.26 E essa mesma imagem de Deus se manifesta em todos os crucificados de hoje. Os excluídos, ao ouvirem o grito do abandono na cruz, e crerem que Deus escutou o crucificado e o ressuscitou em seu justo juízo, têm fé de que também foram escutados por Deus. Ouvem o veredito da ressurreição do Excluído e creem que ele foi justificado por sua fé. É inaugurada assim a justificação de todos aqueles que creem que o Crucificado inocente foi ressuscitado pelo Deus da vida. Deus chama de amigo ao que crê. Não se “barganha” mais o direito divino de ser uma pessoa digna, amiga de Deus. Não são necessários méritos para ser reconhecido como tal. Por isso, quando se acolhe o dom da justificação, defende-se o direito à vida.

Mais ainda, posto que é pela fé e não pela lei que se é justificado, o excluído humilhado toma consciência de seu ser como sujeito histórico. Não é mais objeto nem da lei, nem de um sistema que o reduz à escravidão. Ao ser justificado pela fé de Jesus Cristo e pela fé naquele que “dá vida aos mortos e chama às coisas que não são para que sejam” (Rm 4.17), o excluído entra, com poder, como um filho de Deus, na lógica da fé, na qual o critério fundamental é o direito de todos a uma vida digna e à paz.

Se a raiz da justificação é a solidariedade de Deus com o excluído, a solidariedade inter-humana é sinal da justificação. Esta solidariedade não provém das obras de uma lei que exige a justiça para alcançar justificação. Se os méritos próprios são o requisito, não há solidariedade real de Deus. A solidariedade se opõe à lei do mérito. A obra da graça (ou da fé) nasce da entrega livre dos filhos de Deus27 a sua vocação de dar vida, viver e celebrá-la com gratuidade. Em Mateus 25.31-46, ajuda-se o pobre por graça, sem segundas intenções, quer dizer, sem pensar interessadamente que Deus está presente neles e que é ele que está sendo servido. Na medida em que se faz por amor a Deus, independentemente da vida dos necessitados, trabalha-se de acordo com a lei e não com a graça. A solidariedade vem da graça e se desenvolve na graça.28 Quem age por amor a Deus, para acumular méritos, nega a justificação gratuita, porque segue submetido ao regime da lei e não ao da graça.

O justificado está a serviço da justiça e do próximo; no entanto, não é um escravo de Deus. Um Deus que exige a vida de seus fiéis, ou os torna seus escravos em troca da justificação, não é o Deus que justifica pela graça ou que chama de amigo aquele que tem fé na ressurreição dos mortos. Ao contrário, Deus desautoriza e condena à morte todo aquele que ameaça a vida de suas criaturas, e toda lei que condena o ser humano à escravidão. A glória de Deus está em ver seus filhos e filhas amadurecerem em liberdade e justiça à altura do Primogênito, pela fé – capacidade concedida pelo evento da justificação.

A confiança entre Deus e seus filhos é mútua. Por um lado, Deus os justificou pela fé, sem levar em conta seus pecados, porque tem confiança em suas criaturas, sua própria criação. Por outro, quem acolhe o dom da justificação recupera a confiança em si mesmo como sujeito que cria história, porque Deus o libertou da escravidão da lei, do pecado e da morte. Mas sua confiança em si mesmo é sólida, porque confia que em todo seu fazer é sustentado pelo Espírito Santo. E deposita sua confiança no Deus da vida, porque reconhece que o ser humano é pecador, que tem o potencial de matar a outros e destruir seu ambiente.

A solidariedade de Deus não se esgota na dor nem na amizade fraternal. O excluído crê também na solidariedade do Criador todo poderoso que vence a morte e manifesta sua soberania frente aos ídolos que matam. Em um mundo “objetivamente cínico”,29 onde a morte ataca à luz da legalidade, é necessária uma fé que afirme não apenas a presença solidária e escondida de Deus no excluído, mas a convicção daquele que vai para além do poder dessa realidade antivida. A fé recorre à esperança do impossível – não por ser falso; em termos bíblicos, equivale a crer na ressurreição dos mortos, ou no Deus que ressuscita os mortos. No plano do factível, equivale a ter a certeza escatológica de que o mundo da morte pode ser transformado, pois, na revelação da justiça de Deus, pôs-se manifesto o direito de todos de viver dignamente como seres humanos, sujeitos de sua história na terra, apesar do poder das forças que tendem a abandonar as maiorias à morte. 

A partir de seu lado ativo, equivaleria a afirmar que temos fé de que pode ser feita a justiça para transformar este mundo onde abunda a morte, apesar das leis ou inclusive as transgredindo, porque Deus, em sua graça, justificou pela fé de Jesus Cristo quem tem capacidade de crer que para Deus nada é impossível, pois ressuscitou Jesus como o primeiro de muitos. A solidez da fé está em crer que o Crucificado, pelo qual somos justificados, é o primeiro justificado de muitos, e que, portanto, vale a pena seguir a vida de fé que Jesus levou. O seguimento da vida entregue de Jesus dá solidez à fé.

Todos – os excluídos e aqueles que praticam a exclusão – tiveram e têm a oportunidade de serem justificados por Deus para fecundar uma vida mais justa e digna. Pois a “sentença” de Deus é contra toda condenação, inclusive contra seu próprio juízo justo, que é a morte para os assassinos e a justiça para os assassinados. Os pecados não são levados em conta, porque o desejo primordial de Deus é o de forjar uma nova humanidade, uma comunidade sem pobres nem insignificantes. Todos, inclusive os “Cains”, nesse novo eon inaugurado por Jesus Cristo, o Primogênito.

Os filhos de Deus que vivem na nova lógica do Espírito não esquecem seu passado de vítimas nem a potencialidade que sempre se tem, como ser humano, de submeter o outro à exclusão. Para que Deus acolha suas criaturas como filhos e filhas, depende somente de sua solidariedade misericordiosa, e não da santidade do ser humano. A morte do Crucificado lembra sempre a crueldade do pecado mortífero, e a presença do Espírito no justificado se torna uma interpelação crítica permanente.

No fim, o evento da justificação é a atualização histórica da justiça de Deus revelada em Jesus Cristo. Crer no impossível – ressurreição dos mortos –, mas sempre possível para Deus, é um caminho da fé que dá força ao justificado para lutar pela vida e transgredir toda lei ou lógica que legitima a morte. Estes chamados filhos de Deus, incorporados à lógica da fé cujo critério é a vida de todos, são os que apostam na superabundância da graça nos contextos onde abunda o pecado e a morte (Rm 5.20; 8.35-39). A lei não está excluída dessa orientação da fé (Rm 7.12), ela pode assumi-la. Pois toda lei que gira em torno dessa lógica e se ajusta às necessidades vitais de suas criaturas é consolidada por Deus (ver Rm 3.31).

Notas:

1. Texto original publicado pela Revista Pasos, do Departamento Ecumênico de Investigações, nº 47, de maio-junho de 1993, pp. 22-29.

2. À época de publicação do artigo, início da década de 1990, ainda eram usuais e relativamente disseminadas as concepções geopolíticas da “teoria dos três mundos”, desenvolvida durante a Guerra Fria sob o pretexto de interpretar a economia global a partir de blocos organizados em indicadores de “desenvolvimento econômico”. Contudo, a organização dos blocos tinha pouco que ver com indicadores econômicos, e sim distribuía os países de acordo com seu alinhamento ideológico, de tal modo que ao utilizar como paradigma critérios econômicos de uma sociedade baseada no modo de produção capitalista, separava como “Primeiro Mundo” os países inseridos nas dinâmicas de livre mercado cujo centro eram as economias dos Estados Unidos e de alguns países europeus ocidentais (que formariam os principais players da organização da União Europeia); incluía no “Segundo Mundo” países socialistas, cujo principal centro econômico e militar era a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas; e o chamado “Terceiro Mundo”, que correspondia ao que hoje tratamos como países periféricos, emergentes ou mesmo “subdesenvolvidos”, por vezes reunidos também sob a alcunha de “Sul Global”. Tratavam-se de países não alinhados a um dos blocos, caracterizados pela condição de ex-colônias dos países do chamado “Primeiro Mundo” e/ou países inseridos de modo dependente no mercado mundial – em geral passando por situações de crises internas e expostos à luta pela hegemonia no plano internacional. [Nota do tradutor]

3. Recorro aqui fundamentalmente à minha proposta teológica sobre a justificação pela fé que aparece no livro Contra toda condena. La justificación por la fé desde los excluidos. San José, DEI-SEBILA, 1993 (2ª ed) [TAMEZ, Elsa. Contra toda condenação: a justificação pela fé a partir dos excluídos. Paulus: São Paulo, 1995].

4. Ver Vitor Araya, “Justificación y práctica de la justicia”, em Vida y pensamiento 1 (1986), pp. 17.

5. Termo de Dietrich Bonhoeffer em El precio de la gracia, Salamanca, 1968.

6. Ver Richard Shaull, The Reformantio and Liberation Theology, Louisville, 1991, pp. 25-40.

7. Ver Contra toda condena. La justificación por la fé desde los excluidos. San José, DEI-SEBILA, 1993, pp. 60-75; 108-112.

8. Ver Géza Alföldy, Römische Social geschichte. Wiesbaden, 1984, pp. 94; e de Klaus Wengst, Pax Romana and Peace of Jesus Christ. Londres, 1987, pp. 9-26.

9. Ver Contra toda condena. La justificación por la fé desde los excluidos. San José, DEI-SEBILA, 1993, pp. 52-66.

10. Ser escravo do pecado é uma metáfora que Paulo toma de sua sociedade escravista. Ver Luise Scholtroff, “Die Schreckensherrschaft der Sünde und die Befreiung durch Christus nach dem Römerbrief des Paulus”, en: Evangelische Theologie 39 (1979), p. 497.

11. Ver Franz Hinkelammert, La fe de Abraham y el Edipo Occidental. San José: DEI, 1989, p. 28.

12. Ver Ernst Käsemann, Commentary on Romans. Michigan, 1980.

13. E. Käsemann, Commentary on Romans. Michigan, 1980, p. 92.

14. Seguindo os estudos de L. T. Johnson em “Rom. 3.21- 26 and the Faith of Jesus”, en: Catholic Bíblical Quarterly 44 (1982), pp. 77-90; de S. K. Williams em “Again Pistis Xristou”, em: CBQ 49 (1987). pp. 431-447; e de L. Ramaroson em ”La justification par la foi du Christ Jésus”, em: Science et Esprit 39 (1987). pp. 81 -92, traduzimos pistis Cristou como fé de Jesus Cristo (no sentido de vivida por Jesus) e não fé em Jesus Cristo. Esta tradução resolve a redundância de versos importantes como Rm 3.22-26, Gl 2.16; 3.22; Fp 3.9, e da consistência interna em Romanos com outras passagens como 1.17, 4.1-25, e 5.12-21. Nos inclinamos para essa alternativa porque, além do já mencionado, dinamiza a fé do crente orientada à prática da justiça, o que temos destacado em nossa interpretação.

15. Ver L. T. Johnson, “Rom. 3.21- 26 and the Faith of Jesus”, em: Catholic Bíblical Quarterly 44 (1982), p. 89).

16. Ver L. Ramaroson em ”La justification par la foi du Christ Jésus”, en: Science et Esprit 39 (1987), p. 90.

17. Ver S. K. Williams em “Again Pistis Xristou”, en: CBQ 49 (1987), p. 443.

18. Ver P. Stuhlmacher em “Zur neueren Exegese von Ro.3.24- 26”, em: P. Stuhlmacher (ed.). Versöhnung. Gesetz und Gerechtigkeit. Catinga 1981. p. 134.

19. Ver Porfirio Miranda, Marx y la Biblia, Salamanca, 1973, p. 82.

20. Ver: Ernst Käsemann, op. cit., p. 96. Cf. J. Míguez Bonino, “The Bíblical Roots of Justice”. em: Word & World 1 (1987), pp. 12- 21.

21. Ver: Ernst Käsemann, op. cit., p. 96. Cf. J. Míguez Bonino, “The Bíblical Roots of Justice”. em: Word & Worid 1 (1987), p. 101.

22. Ver: Ernst Käsemann, op. cit., p. 96. Cf. J. Míguez Bonino, “The Bíblical Roots of Justice”. em: Word & Worid 1 (1987), p. 101.

23. Ver Porfírio Miranda em Marx y la Biblia, Salamanca, 1973, p. 261.

24. Ver Contra toda condena. La justificación por la fé desde los excluidos. San José, DEI-SEBILA, 1993, pp. 137-183.

25. Ver Enrique Dussel sobre o capital como ídolo em Etica comunitaria. Buenos Aires. 1986 [Ética comunitária. Editora Vozes: Petrópolis-RJ, 1986].

26. Aqui, retomamos alguns elementos da cristologia de Jon Sobrino, tanto em Jesús en América Latina. Su significado para la fe y la cristología. Santander, 1982; como em Cristología desde América Latina. México. 1977.

27. Ver J.I. González Faus em Proyecto de hermano. Visión creyente del nombre. Santander, 1987, p. 650.

28. Ver Gustavo Gutiérrez, Beber de su propio pozo. Lima, 1983, p. 169.

29. Termo de Dorothee Sölle em Choosing Life, Filadelfia, 1986, p. 1.