O Decreto Dominical não contradiz as Escrituras, mas não é uma leitura convincente para Apocalipse 13:13-17, que sugere diferentes possibilidades de interpretação sem constranger o leitor a uma única perspectiva


*Série Decreto Dominical (parte 2)

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Dr. Jon Paulien | The Battle of Armageddon — Traduzido e adaptado por Erick Faria para a Revista Zelota

Jon Paulien é um teólogo adventista norte-americano. Pastor em Nova Iorque por muitos anos, Paulien lecionou Interpretação do Novo Testamento no Seminário Teológico da Universidade Adventista de Andrews. Ele também foi reitor da Universidade Adventista de Loma Linda de 2007 a 2019, e atualmente leciona na mesma Universidade. Estudioso do Apocalipse já em sua dissertação de doutorado, Paulien publicou vários livros a respeito do assunto para a IASD norte-americana.

A porção das Escrituras que é amplamente citada como previsão do decreto dominical no tempo do fim está em Apocalipse 13:13-17. Vou examinar novamente essa passagem, tendo em mente a crença adventista sobre esse elemento do futuro. Deixe-me dizer, primeiramente, que a crença da igreja a respeito de um determinado tópico deve ser exegeticamente defensável, mas não precisa ser exegeticamente convincente. Doutrinas existem sob o guarda-chuva da teologia sistemática, onde a Bíblia, a tradição, a razão e a experiência têm os seus papéis. Nem todas as crenças adventistas e cristãs  estão fundamentadas somente na exegese bíblica. Para os adventistas, a visão dos pioneiros, compreensões atuais e os ensinos de Ellen G. White têm seu papel na formulação da doutrina. Mas, na compreensão adventista, a doutrina não deve contradizer as Escrituras e deve ser, pelo menos, defensável à luz da Bíblia.

Dado que o Apocalipse nunca utiliza a palavra “sábado” ou “domingo”, é possível que a certeza exegética em relação ao decreto dominical no tempo do fim não esteja acessível somente através das Escrituras. Mas essa falta de clareza exegética é uma realidade de muitas doutrinas. Por exemplo, a palavra “Trindade” não aparece na Bíblia, e muitas das fórmulas do credo calcedoniano sobre Jesus Cristo não estão em lugar nenhum da Bíblia. Mas embora elas possam ir além dos dados específicos contidos nas Escrituras, essas doutrinas podem ser defendidas a partir das evidências encontradas na Bíblia. Elas são uma contextualização das Escrituras à luz das questões levantadas através dos séculos depois do Novo Testamento. E isso é suficiente para que os crentes se comprometam com elas, ainda que enxerguemos “apenas um reflexo obscuro, como em um material polido”. Nós vamos descobrir que o conceito de um decreto dominical no tempo do fim não contradiz as Escrituras, sendo compatível com as evidências, ainda que as evidências não sejam convincentes.

O texto chave está em Apocalipse 13:13-17 (tradução do autor):

“E ela [a besta que emerge da terra] realiza grandes sinais, a ponto de fazer com que fogo desça do céu na presença dos homens. E ela engana aqueles que vivem na terra por causa dos sinais que lhe fora permitido realizar […] dizendo àqueles que vivem na terra que deveriam fazer uma imagem para a besta […] E ela [a besta que emerge da terra] recebeu permissão para dar fôlego à imagem da besta, a fim de que a imagem da besta pudesse falar e pudesse causar a morte de qualquer um que não adorasse a imagem da besta. E ela [a besta que emerge da terra] controla a todos [] a fim de colocar uma marca sobre suas mãos direitas ou suas testas, para que ninguém seja capaz de comprar ou vender a menos que possua a marca, o nome da besta ou o número do seu nome.”

Essa passagem exibe as duas características marcantes do método de Satanás para persuadir as pessoas no tempo do fim. Em Apocalipse 13:13-14 está o método do engano. Satanás faz com que desça fogo do céu em um falso Pentecostes, ou em um Monte Carmelo falsificado. Ele usa grandes sinais para persuadir os povos da terra de que ele é o verdadeiro Deus, digno de adoração. Ele não o é, de fato, mas usa “sinais e maravilhas” para enganar (veja também 2Ts 2:9) àqueles que vivem na terra. Em Apocalipse 13:15-17, entretanto, ele usa o método de intimidação ou força. Aqueles que se recusam a adorar a imagem da besta devem ser mortos. Aqueles que se recusam a receber a marca da besta não podem comprar ou vender. Assim, os métodos de Satanás são a força e o engano. Isso está em contraste direto com os métodos de Deus. Deus sempre fala a verdade, e nunca força ninguém a segui-lo ou adorá-lo. A crise final é um confronto entre as reivindicações rivais de divindade e seus diferentes métodos de persuasão.

A imagem da besta

O engano de Apocalipse 13:13-14 resulta na formação de uma imagem da besta, para a besta, presumivelmente a primeira besta de Apocalipse 13, que emergiu do mar.  

“E ela [a besta que emerge da terra] recebeu permissão de dar fôlego à imagem da besta, a fim de que a imagem da besta pudesse falar e pudesse causar a morte de qualquer um que não adorasse a imagem da besta” (Ap 13:15).

Típico da literatura apocalíptica judaica, o livro de Apocalipse nunca cita o Antigo Testamento (AT), mas faz alusões a ele muito frequentemente, usando palavras-chave, frases, ideias e estruturas para sinalizar a incorporação de conhecimento do AT na interpretação de uma passagem. Nós vimos essas alusões ao AT nos versos 13 e 14 do capítulo 13: a experiência de Elias no Monte Carmelo (fogo do céu) e os milagres enganosos dos magos de Faraó.

A combinação de imagem e fôlego é uma alusão inconfundível aos primeiros capítulos de Gênesis. Deus criou macho e fêmea conforme Sua própria imagem (Gn 1:26-27), usando Seu fôlego para instalar o software da vida no corpo terroso de Adão. Mais do que só oxigênio, Deus estava instalando o princípio da vida, com sua personalidade e traços únicos — e esse princípio da vida incluía a “imagem de Deus”. Essa frase não é usada para a criação dos animais. Existia algo muito semelhante a Deus em Adão e Eva. Em seu caráter, eles refletiam o caráter de Deus.

A besta que emerge do mar é descrita como à imagem do dragão (Ap 13:1, cf. 12:4), que também é definido como a antiga serpente, Satanás (Ap 12:9). A frase “imagem da besta” implica um relacionamento com Satanás semelhante ao que Adão originalmente tinha com Deus. Apocalipse 13:15 está nos dizendo que, no fim dos tempos, Satanás buscará implantar sua imagem na raça humana, em contraste à imagem e caráter de Deus. Assim como o fôlego de Deus instalou o Seu perfil na raça humana, Satanás no fim buscará instalar seu próprio perfil na raça humana. O contraste não poderia ser mais drástico. O caráter de Satanás valorizou a mentira e o engano (Ap 13:13-14), a intimidação e a força (Ap 13:13, 15-17). Essas qualidades são sumarizadas por Jesus em João 8:44. Em contraste, Deus sempre fala a verdade (Ap 3:14; 15:3) e valoriza a liberdade humana (Ap 22:17). Deus nunca força ninguém. Assim, os dois lados no conflito final se distanciam cada vez mais, conforme se modelam de acordo com o caráter do Deus a quem adoram.

O resultado final da formação de uma imagem para a besta é a exibição do caráter assassino de Satanás (Jo 8:44) em um decreto de morte. Quando a imagem da besta vier à vida, ela irá “causar a morte de qualquer um” que não a adore (Ap 13:15). Essa é uma alusão clara ao evento na Planície de Dura, em Daniel 3. Lá, uma imagem foi erguida para adoração. Todos que não adorassem a imagem de Nabucodonosor seriam lançados na fornalha ardente. Da mesma forma, no tempo do fim, um decreto é aprovado para que todos que não adorarem a imagem da besta, todos que não se conformarem com o caráter da besta (Satanás), sejam mortos. Dois outros decretos de morte do AT podem ser considerados aqui: o incidente da cova dos leões em Daniel 6 e o decreto genocida de Hamã no livro de Ester (3:6, 13). A era final da história da terra incluirá um replay das primeiras tentativas de destruir o povo de Deus. Mas isso não é tudo que Satanás tem em mente para o tempo do fim.

A testa e a mão direita

O texto de Apocalipse 13 continua com o verso 16:  “E ela [a besta que emerge da terra] controla a todos […] a fim de colocar uma marca sobre suas mãos direitas e suas testas.” No mundo bíblico, a testa representa a mente, a vontade, a personalidade. A mão é a representação da ação. Esses símbolos representam dois tipos de resposta ao chamado de adoração à imagem da besta. Há aqueles que estarão completamente comprometidos com a agenda de Satanás e seus aliados e aqueles que realmente não se importam, mas a aceitarão a fim de preservar seus empregos e suas vidas (Ap 13:16-17).

O tema central de Apocalipse 13 e 14 é adoração. Apocalipse 13:14 alude ao confronto por adoração no Monte Carmelo. Essa porção do livro faz referência à adoração ao dragão (Ap 13:4), à besta do mar (Ap 13:4, 8, 13; 14:9, 11) e à imagem da besta (Ap 13:15; 14:9, 11). No total, existem exatamente sete ocorrências da palavra “adoração” na parte central de Apocalipse. Em contraste está o chamado único para adorar àquele que “criou o céu, a terra, o mar e as fontes das águas” (Ap 14:7). O chamado à adoração da imagem da besta é universal, e abrange todas as classes sociais. “E ela [a besta que emerge da terra] controla a todos; os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os livres e os escravos;  a fim de colocar uma marca sobre suas mãos direitas e suas testas” (Ap 13:17).

Junto com a disposição em adorar a imagem da besta, um novo elemento é introduzido. Uma marca é colocada sobre todos que estão dispostos a adorá-la. A marca é definida como o nome da besta ou o número do seu nome; provavelmente correspondendo à testa e à mão. Nomes no contexto hebraico representam caráter. Alguns são marcados por causa de seu comprometimento de coração e alma à agenda de Satanás em moldar os seres humanos conforme sua própria imagem (nome na testa). Outros são marcados porque estão dispostos a aceitar essa agenda a fim de preservar suas próprias vidas e a prosperidade neste mundo (mão e número).

Esses textos refletem uma drástica polarização no mundo conforme nos aproximamos do tempo do fim. Apocalipse projeta três tipos de pessoas no fim. Um grupo é o dos santos, que são chamados por muitos nomes (o remanescente, os 144 mil, a grande multidão, os reis do oriente, os chamados, escolhidos e fiéis seguidores do Cordeiro). O segundo grupo é uma aliança mundial da religião, chamada de Babilônia, a Grande Cidade, a Grande Prostituta, a mulher que monta a besta, e é representada pela trindade profana: o dragão, a besta e o falso profeta (Ap 16:13). O terceiro grupo é aquele que não possui um compromisso de coração e alma com nenhum dos lados. São os poderes políticos, seculares e militares do mundo, também mencionados por muitos nomes e símbolos (Rio Eufrates, reis do mundo, muitas águas, reis da terra, a besta de Ap 17, os dez chifres, as cidades das nações, as sete montanhas e os sete reis). Quando esses poderes seculares concordam em aprovar o decreto de morte de Apocalipse 13:15, eles comprometem sua “mão” com a besta e sua imagem. Satanás deseja a adoração de todos, mas está disposto a aceitar uma adoração forçada, egocêntrica. O contraste entre o seu caráter e o de Deus não poderia ser mais drástico. Esse contraste é realçado ainda mais conforme exploramos o significado da marca da besta em Apocalipse.

A marca e o selo

Como entenderemos a “marca da besta” no contexto de Apocalipse 13? O paralelo mais óbvio para a marca da besta é o selo de Deus. O selo é colocado nas testas dos servos de Deus (os 144 mil) para protegê-los dos esforços destrutivos de Satanás quando os quatro ventos da terra são liberados (Ap 7:1-3). Os 144 mil possuem o nome do Cordeiro e o nome de seu Pai escrito em suas testas — esse é um paralelo evidente com o selo de Deus. No contexto hebraico, o nome está associado ao caráter de uma pessoa. Sendo assim, o selo de Deus parece ter algo a ver com o caráter daqueles que estão sendo selados.

Isso é demonstrado pelo uso mais abrangente do selamento no Novo Testamento. Em Efésios 1:13, o selamento pelo Espírito Santo é a consequência de uma resposta de fé ao evangelho. Ele representa o trabalho santificador do Espírito na vida de uma pessoa. Esse selamento é uma experiência do Espírito que dura a vida toda após a conversão (Ef 4:30). É a evidência de que uma pessoa é verdadeiramente conhecida por Deus e pertence a Ele (2Tm 2:19). No segundo século cristão, o selamento estava associado com o batismo. Portanto o selo de Deus está relacionado com a transformação de caráter que acontece como consequência de um relacionamento genuíno com Deus.

Apocalipse 7 e 14 colocam esse selo no contexto do tempo do fim, assim como Ellen G. White: “[O selo de Deus] não é algum selo ou marca que pode ser visto, mas a consolidação na verdade, tanto intelectual como espiritualmente, de modo que não possam ser abalados” [EF, 163(219-220)]. Ellen G. White entende o selamento dos últimos dias como um aprofundamento do comprometimento e a completude da maturidade cristã. Aqueles que precisarão passar pelas provas do tempo do fim não podem ser o tipo de crente que Paulo descreve em Efésios 4:14, “levados de um lado para outro pelas ondas, nem jogados para cá e para lá por todo vento de doutrina”. Da mesma forma, no fim, Satanás estará formando sua imagem naqueles comprometidos com o seu lado do conflito. Isso faz com que a marca da besta reflita a contrafação do selo de Deus. Os três anjos (Ap 14:6-12) e também os três sapos (Ap 16:13-14) se dirigem às nações do mundo. O resultado final é três tipos de pessoas, como mencionado acima. Aqueles completamente comprometidos com Deus (os selados); aqueles completamente comprometidos em oposição a Deus (marcados na testa); e aqueles que aceitam a besta e sua imagem a fim de preservar suas vidas e oportunidades econômicas. Assim como o selo de Deus provê proteção ao povo de Deus no Fim (Ap 7:1-3; cf. Ez 9:1-7), a marca da besta provê “proteção” contra o decreto de morte e o boicote econômico de Apocalipse 13:15-17.

Existe mais um elemento na marca da besta. Ela é parte da contrafação da besta dos quatro primeiros mandamentos do Decálogo. A testa e a mão ecoam o chamado de Moisés para que Israel se comprometa completamente com os mandamentos de Deus (Dt 6:4-8). Em contraste, a besta e sua imagem violam os quatro primeiros mandamentos. O primeiro mandamento diz que não haja outros deuses perante Yahweh. O dragão e a besta buscam ser adorados como deuses (Ap 13:4, 8). O segundo mandamento proíbe a adoração de imagens, e a besta ergue uma imagem para ser adorada (Ap 13:15). O terceiro mandamento proíbe tomar o nome de Deus em vão, e a besta está coberta de blasfêmias (Ap 13:1, 5-6). A marca da besta desafia o sábado, que é apresentado do lado de Deus em Apocalipse 14:7 (cf. Ex 20:11). Se a lei de Deus é a transcrição do Seu caráter, é visível o que está acontecendo aqui — a rejeição do caráter de Deus e a afirmação do caráter de Satanás. O caráter de Satanás, em contraste com o de Deus, será completamente revelado no conflito final.

O parágrafo anterior ressaltou que o sábado é uma questão crucial no conflito final. Ele também sugere que alguma contrafação do sábado será central para as ações da besta nesse conflito. O que é menos claro no texto é que forma exatamente essa contrafação tomará. Eu posso pensar em quatro opções: 1) outro dia de descanso (como o domingo); 2) nenhum dia é um dia de descanso (abolição); 3) todo dia é um dia de descanso (não muito diferente dos outros dois); e 4) trabalho forçado ou adoração proibida no sábado. Ao lidar com Apocalipse 13, a perspectiva de Ellen G. White normalmente assume a primeira posição acima, mas em pelo menos uma ocasião ela menciona a quarta. Nos próximos textos, examinaremos as evidências de Ellen G. White no contexto da história religiosa americana.