Com o crescimento do adventismo ao redor do mundo, a comunidade LGBTQIAP+ encontrou desafios que ameaçaram sua plena afirmação no contexto adventista, a exemplo da epidemia de HIV/AIDS, interpretada pela denominação como resultado da prática homossexual


Série História dos LGBTQIAP+ no adventismo (Parte 4)

Para conhecer o texto em seu contexto mais amplo, leia a parte 1, a parte 2 e a parte 3. Este texto foi traduzido e adaptado para a revista Zelota do original publicado pela Spectrum

Filmes adventistas LGBTQIAP+

Quando os membros LGBTQIAP+ da San Francisco Central Church [“Igreja Central de São Francisco”, no português] foram rejeitados, eles se retiraram e finalmente formaram uma nova congregação independente. Juntaram-se a eles alguns aliados heterossexuais, incluindo o casal de cineastas, Daneen Akers e Stephen Eyer. Suas vivências os convenceu de que deveriam produzir um filme para ajudar os adventistas heterossexuais a entender e apreciar seus irmãos e irmãs LGBTQIAP+. O resultado foi o filme Seventh-Gay Adventists (2012), que conta as histórias de três casais homoafetivos. O filme já foi assistido por milhares de adventistas em diversos países. Um segundo filme, Enough Room at the Table [“Espaço suficiente na mesa”, em português], foi produzido em 2016. Mais recentemente, eles lançaram uma série de curta-metragens com foco nas histórias de adventistas LGBTQIAP+. Essas produções têm sido importantes para ajudar muitos adventistas a tornarem-se solidários.

Os cineastas, Stephen Eyer e Daneen Akers, com David e Colin do filme Seventh-Gay Adventists. Fonte: cortesia do site SGA.

Ted Wilson, o presidente conservador da Associação Geral (AG), viu o “perigo” do impacto desses filmes na opinião adventista. Ele respondeu abraçando o Ministério “Coming Out” como a frente  de adventistas LGBTQIAP+ aprovada oficialmente.

Guiando as famílias

Depois que a Divisão Norte-Americana (NAD) emitiu uma declaração em 2015 com ênfase no termo “comportamento sexual” em vez de “orientação sexual”, ela tornou-se cada vez mais consciente das questões práticas relativas à resposta dada aos jovens LGBTQIAP+ adventistas, cada vez mais presentes, por pais, igrejas, associações, ministérios jovem e da família, escolas e faculdades, líderes de desbravadores e diretores de acampamentos de verão. Um número crescente de adolescentes adventistas estava se declarando LGBTQIAP+, pais e líderes da igreja e do programa estavam buscando respostas com urgência, mas a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) parecia não ter respostas boas a oferecer. Vários livros relacionados aos adventistas com foco na teologia da orientação sexual foram publicados nos últimos anos, mas não havia nada que abordasse as questões que estavam sendo levantadas. Os relatos que os líderes da NAD estavam recebendo sobre pais rejeitando filhos LGBTQIAP+ porque acreditavam que era isso que a igreja exigia, de estudantes LGBTQIAP+ sendo intimidados em escolas e faculdades, de igrejas que não sabiam como responder à sua juventude LGBTQIAP+ e de suicídios entre eles, fez com que a NAD decidisse preparar materiais para os familiares de pessoas LGBTQIAP+. Percebendo que o diretor do Ministério da Família da NAD não era um candidato adequado para fazer isso, porque acreditava que a orientação sexual era uma escolha pessoal, os oficiais deram a responsabilidade a Debra Brill, uma vice-presidente aposentada da NAD, e Kyoshin Ahn, o subsecretário da NAD (o atual secretário executivo).

Brill presidiu uma comissão da NAD com foco exclusivo em sexualidade humana, e o subsecretário Ahn atuou como secretário do projeto. Nenhum membro da SDA Kinship foi chamado para trabalhar no projeto porque os líderes da igreja ainda os viam de forma negativa, mas uma entre os sete membros escolhidos era uma mulher transgênero. A Comissão considerou várias opções e optou por usar um livro existente, o Guiding Families [“Orientando famílias”, em português], escrito por Bill Henson, um evangélico conservador com experiência considerável no trabalho com pessoas LGBTQIAP+. Henson concordou em deixá-los modificar seu texto para se adequar à cultura adventista. Havia alguma preocupação em bater de frente com a liderança da AG: “Não queremos ser demonizados por eles.” Houve alguns protestos de fundamentalistas adventistas como o website Fulcrum7, que queria uma abordagem mais doutrinária, e o Ministério “Coming Out”, que havia representado a igreja nesses assuntos sob o comando de Ted Wilson, e que se ressentiu ao perder essa posição. No entanto, tudo ocorreu sem problemas, pelo que me disseram, graças ao forte apoio de Dan Jackson, o presidente da NAD.

A maior mudança no manuscrito original de Henson foi a decisão de empregar dados recém-lançados de um estudo adventista sobre LGBTQIAP+ realizado por professores de ciências sociais da Universidade Andrews, liderados por David Sedlacek e Curt VanderWaal, em um segmento de perguntas e respostas. Isso mostrou que os jovens adventistas LGBTQIAP+ estão seriamente em risco de suicídio, especialmente se enfrentarem bullying considerável ou forem rejeitados por suas famílias, ambas experiências comuns. Os dados mostraram que 81% deles tinham medo de contar aos pais e que eram muito mais propensos a receber apoio de amigos do que de suas famílias ou igrejas. O livro aconselha os pais sobre como responder a seus filhos LGBTQIAP+ para manter laços próximos com eles, como expressar aceitação e evitar linguagem alienante, como receber seus parceiros e amigos LGBTQIAP+ em suas casas. O livro ensina que responder com amor e aceitação é uma condição necessária para ser fiel à Bíblia.

Debra Brill e Kyoshin Ahn supervisionaram uma comissão com foco exclusivo da NAD em sexualidade humana, que acabou levando ao recurso Guiding Families of LGBT+ Loved Ones [“Orientando Familiares de pessoas LGBT+”, em português].

Guiding Families é, portanto, um tipo muito diferente de publicação adventista. Infelizmente, ele não foi divulgado pela mídia controlada pela AG, como as revistas Adventist Review, Ministry e a Sabbath School Quarterly. Nenhum relatório dos dados da Universidade Andrews apareceu na Adventist Review. Mudanças no treinamento ministerial são extremamente necessárias, mas isso também está sob o controle da AG. Assim, 18 mil exemplares do livro foram distribuídos; 6 mil deles foram para professores em escolas adventistas, mas a NAD não tinha recursos para capacitar os professores para aplicar as orientações do livro. Disseram-me que o principal objetivo era disponibilizar cópias para aqueles que precisavam muito, mas qual seria a melhor forma de informá-los sobre a disponibilidade do livro? A sugestão de que era melhor não distribuí-lo entre os membros que poderiam ficar incomodados com tais ideias destaca o problema adventista.

A abordagem adotada em Guiding Families, juntamente com as mudanças dramáticas em relação aos estudantes e membros do corpo docente LGBTQIAP+ em faculdades e universidades adventistas na América do Norte, representam grandes mudanças nas respostas adventistas à sua juventude LGBTQIAP+.

Adventistas LGBTQIAP+ pelo mundo

O adventismo cresceu rapidamente nas últimas décadas, especialmente no mundo em desenvolvimento. Isso resultou em um declínio na proporção de membros localizados nos Estados Unidos e Canadá, que agora é de apenas 6% do total. O número de membros na maioria das outras partes do mundo desenvolvido – Europa, Austrália, Nova Zelândia e Japão – é bem pequeno. No entanto, a IASD é agora uma igreja global, com membros em quase todos os países, e é especialmente forte na África, América Latina, Caribe, partes da Ásia e ilhas do Pacífico Sul.

Foi observado anteriormente que a SDA Kinship cresceu rapidamente desde 2001. Em janeiro de 2020, 1.278 (38,6%) de seus membros estavam localizados em 79 países fora da América do Norte. A Europa e a Austrália têm seus próprios acampamentos. Os países com grupos de membros ativos incluem Austrália, Nova Zelândia, Alemanha, Inglaterra, Holanda, Brasil, Colômbia, México, Filipinas, Quênia, África do Sul, Zimbábue e Lesoto.

Evento da SDA Kinship Colômbia. Fonte: Facebook.

A situação dos adventistas LGBTQIAP+ em grande parte do mundo em desenvolvimento é sombria. Há, sem dúvida, milhares que vivem em isolamento total porque nunca ouviram falar na Kinship ou não têm meios de entrar em contato. Muitos dos que entraram em contato com a Kinship ainda não encontraram outro adventista LGBTQIAP+ cara a cara. Além disso, eles normalmente enfrentam uma igreja que rejeita os homossexuais ainda mais que na América do Norte, e muitas vezes vivem em culturas hostis.

Enquanto viajava pelo mundo fazendo pesquisas sobre o adventismo internacional, perguntei a pastores e administradores onde quer que eu fosse quantos membros homossexuais eles tinham, e tentei encontrar oportunidades para conhecer e entrevistar membros gays pessoalmente. Um deles, em Lima, Peru, explicou que deixou a igreja quando jovem porque percebeu que não havia espaço para ele. De fato, ele estava ciente de muitos homossexuais que haviam sido adventistas – todos haviam saído da igreja, ou porque ela os disciplinou com remoção ou porque perceberam que era um ambiente hostil. Um casal gay cresceu em uma das maiores congregações de Buenos Aires, Argentina, mas solicitaram sua remoção do rol de membros depois de descobrirem sua homossexualidade. Ainda sendo adventistas de coração e desejando adorar a Deus em um ambiente adventista, eles começaram a frequentar a sede da igreja como visitantes, não como membros. No entanto, eles logo foram informados explicitamente de que não eram bem-vindos em seus serviços de culto.

Quando eu entrevistava na África, quase sempre me diziam que não havia homossexuais lá. No entanto, um grupo LGBTQIAP+ em Uganda, liderado por um ex-pastor adventista, entrou em contato com a Kinship há mais de uma década. Tinha mais de 100 membros, 12 dos quais se juntaram à Kinship. Cerca de 20 membros eram adventistas e os outros vinham de outras denominações, incluindo cerca de 10 membros muçulmanos; todos compartilharam a experiência de serem expulsos por seus grupos religiosos. Vários foram expulsos de suas escolas e lares quando sua sexualidade foi descoberta. Todos eles também enfrentaram a situação de que a homossexualidade é ilegal e pode resultar em longas penas de prisão. Ou seja, eles enfrentam assédio e ostracismo, tanto da comunidade religiosa quanto do Estado. O grupo foi formado quando o ex-pastor adventista os reuniu em uma comunidade de adoração não sectária. O pastor, que foi desassociado após a descoberta de sua homossexualidade em 2002, falou comigo com entusiasmo sobre encontrar a Kinship na Internet. Uma jovem o auxiliava, conduzindo as mulheres em atividades separadas.

O pastor me disse que sentia que Deus o havia chamado para ministrar aos homossexuais, especialmente aos homossexuais adventistas, em Uganda. Ele disse que muitos adventistas gays continuavam escondidos na igreja, vivendo vidas miseráveis ​​no armário. No entanto, uma vez descobertos, ou mesmo quando suspeitos, eram desassociados – muitas vezes secretamente. Ele mencionou que alguns adventistas gays cometeram suicídio depois de serem descobertos. Quando perguntei a outro ex-pastor gay, que havia fugido para os Estados Unidos depois de ser descoberto e demitido, sobre o impacto de crescer como um adventista LGBT em Uganda, ele respondeu: “É a coisa mais difícil que você poderia imaginar – dizem que você já está condenado, indo para o inferno. Ninguém te diz que Deus te ama.” A vida LGBTQIAP+ ali se tornou ainda mais difícil depois que foi promulgada legislação criminalizando a intimidade entre pessoas do mesmo sexo com longas penas de prisão e exigindo a pena de morte para infratores reincidentes.

Esta lei foi promulgada por incitação de uma associação de clérigos em Kampala, numa época em que o presidente da União Adventista de Uganda era seu líder. Em 17 de dezembro de 2012, o jornal diário de Uganda, New Vision, publicou um artigo relatando que o presidente da Divisão Centro-Leste Africana, o ugandense Dr. Blaisious Ruguri, fez um discurso em uma IASD em Uganda no qual declarou que os adventistas apoiavam “totalmente” a “Lei Anti-Homossexualidade” do governo. O artigo cita Ruguri dizendo:

Nossa posição é de “tolerância zero” a esse vício e à influência ocidental nesta questão crucial, porque Deus diz não a isso. Estamos com o presidente e apoiamos totalmente a Lei Anti-Homossexualidade. Convido todos os ministros religiosos, todos os ugandenses e todos os africanos a dizer não à homossexualidade. Vamos defender nossa soberania como ugandenses e como pessoas tementes a Deus, mesmo que os céus caiam.

A Kinship perdeu contato com o grupo ugandense desde aquela época, e está profundamente preocupada e incerta com o destino de seus membros.

Em outras partes da África, como no Quênia, o número de membros da Kinship cresceu consideravelmente, e seus líderes trabalharam com grupos de pastores durante as campais nos últimos dois anos. Os grupos no Zimbábue, Lesoto e África do Sul também estão ativos.

O adventismo tornou-se muito proeminente no estado insular da Jamaica, no Caribe. Aproximadamente 10% de sua população é adventista, e vários adventistas ocuparam posições de destaque no governo. Na última década, eles subiram para as posições mais altas. Em 2009, Patrick Allen, um pastor adventista que era então presidente da IASD na Jamaica, foi empossado como Governador-Geral, o chefe de Estado, cargo que continua a ocupar. Em março de 2016, Andrew Holness, outro adventista, e seu Partido Trabalhista da Jamaica, venceram uma eleição e ele iniciou seu segundo mandato como primeiro-ministro, cargo que ainda ocupa.

É embaraçoso que a Jamaica seja amplamente descrita, por organizações de direitos humanos, como um dos lugares mais perigosos do mundo para ser homossexual, com as autoridades muitas vezes fechando os olhos para agressões e assassinatos de pessoas LGBTQIAP+ e seus aliados. Em 2004, a Human Rights Watch publicou um relatório contundente: “Odiados até a morte: homofobia, violência e epidemia de HIV/AIDS da Jamaica”. Em 2012, ela informou que “ataques a pessoas homossexuais ou pessoas apontadas como homossexuais ou transgêneros parecem permanecer comuns”. Leis severas anti-LGBTQIAP+ ajudam a sustentar a atmosfera antagônica.

Os adventistas que agora ocupam as posições mais altas, e a própria IASD, apoiam as leis anti-LGBT. Em uma entrevista de novembro de 2011 ao The Gleaner, Andrew Holness, ainda em seu primeiro mandato como primeiro-ministro, rejeitou os pedidos do primeiro-ministro britânico David Cameron para que revogasse as leis “anti-sodomia” da Jamaica, que criminalizam a intimidade entre pessoas do mesmo sexo com penas de prisão de até dez anos. Em novembro de 2012, Sir Patrick Allen reclamou em um discurso: “Há uma pressão crescente sobre estados como a Jamaica para que reconheçam direitos específicos para lésbicas e gays, com até mesmo ameaças de reter assistência financeira daqueles que não reconhecem”. Em agosto de 2013, a União Jamaicana dos Adventistas do Sétimo Dia publicou um artigo, “Casamento entre pessoas do mesmo sexo não é uma questão de direitos humanos”, em seu site. Isso confirmou que a IASD na Jamaica “tem sido muito estridente em sua oposição a qualquer abrandamento ou revogação da lei de sodomia”.

Na primeira década deste século, um membro jamaicano do Metro New York Adventist Forum, que vivia nos Estados Unidos com visto de estudante, apelou para obter residência permanente alegando que ele, como homem gay, estaria em sério perigo pessoal se fosse obrigado a retornar à Jamaica. As autoridades americanas concordaram com sua avaliação da situação na Jamaica e atenderam seu pedido.

AIDS no adventismo

A Síndrome da Imunodeficiência Humana (AIDS) foi diagnosticada pela primeira vez em 1981, embora fosse conhecida inicialmente como Deficiência Imunológica Relacionada aos Gays (GRID) porque foi encontrada pela primeira vez entre homens gays na América. Na primeira conferência adventista focada na doença, patrocinada em 1990 pela Adventist Review e a Sligo Church no subúrbio de Washington DC, Fritz Guy desafiou os adventistas: “Parece que responder à AIDS seria natural para o adventismo, porque afirmamos que curar e cuidar fazem parte de nossa missão, e porque uma infecção sexualmente transmissível é imediatamente relevante para nossa compreensão da totalidade do ser humano.”

Na verdade, porém, os líderes da igreja demoraram a reconhecer que a AIDS estava presente no meio adventista. Uma vez que era vista como uma doença gay, muitos adventistas a viam como o julgamento de Deus sobre os pecadores deliberados e um sinal de que o fim do mundo era iminente. Ou seja, eles ficaram afastados e paralisados em inação por sua própria homofobia. Enquanto a doença se espalhava e os adventistas gays morriam, a AG ampliou a definição adventista de adultério para incluir o comportamento homossexual como um motivo legítimo para o divórcio, e processou a SDA Kinship na tentativa de forçá-los a mudar seu nome. Quando a Message, revista missionária dirigida aos afro-americanos, publicou um conjunto de artigos sobre a AIDS, omitiu qualquer referência à homossexualidade e ao abuso de drogas, temendo que isso pudesse ser interpretado como uma aprovação de tais estilos de vida.

Nem os hospitais da grande rede adventista nos Estados Unidos se esforçaram para tratar pessoas com AIDS. De fato, o Centro Médico da Universidade de Loma Linda tornou-se alvo de críticas após relatos de negligência e comportamento humilhante contra pessoas com AIDS. As razões dadas para explicar esse padrão incluíam medo de infecção, desgosto moral com os pacientes e o risco de problemas financeiros decorrentes da prestação de cuidados a pacientes que muitas vezes não tinham seguro médico, mas muitas vezes exigiam longas estadias em hospitais.

Esse padrão era muito diferente do papel desempenhado pelos hospitais adventistas durante a epidemia de poliomielite da década de 1950, quando estavam na vanguarda. De fato, seu trabalho com crianças que contraíram a doença impressionou tanto os membros de uma proeminente família de Ohio que eles doaram um hospital de 400 leitos, o Charles F. Kettering Memorial Hospital, no subúrbio de Dayton, para a igreja. Os adventistas viam as crianças como inocentes, mas viam os infectados com AIDS de maneira diferente.

A principal resposta do adventismo à epidemia de AIDS foi afirmar sua posição contra a “imoralidade sexual”. A epidemia nunca se tornou um foco, embora os adventistas fossem conhecidos como “a Igreja acolhedora”. Não havia educação sistemática aos ministros ou membros da IASD na América do Norte, e pouca cobertura dela nas escolas adventistas, apesar de estudos que mostravam que os alunos estavam engajados em comportamentos de risco. A IASD tampouco ergueu sua voz em defesa das pessoas com AIDS. A maioria dos adventistas portadores de HIV escapou de suas congregações sem colocá-las à prova, e suas famílias se envergonharam em silêncio. Entrevistei várias mães de portadores do vírus durante as décadas de 1980 e 1990, e nenhuma delas havia contado ao pastor, aos membros da Escola Sabatina ou aos amigos da igreja sobre a nuvem que pairava sobre sua família.

Alguns membros da igreja tornaram-se proeminentes ativistas [de conscientização  sobre a] AIDS. Uma foi Eunice Diaz, que se tornou ativa em 1981, praticamente assim que a doença foi identificada, enquanto trabalhava com o Departamento de Saúde do Condado de Los Angeles. Mais tarde, enquanto trabalhava para o Adventist White Memorial Medical Center [“Centro Médico Adventista White Memorial”, em português], localizado no principal bairro de Los Angeles, ela tentou conscientizar as pessoas em relação à AIDS. No entanto, a administração do hospital exigiu que ela abandonasse o assunto, porque a visibilidade que trouxe ao hospital criava uma “imagem negativa”. Como resultado, ela renunciou ao cargo em 1988 e tornou-se consultora de saúde para agências governamentais e privadas. Poucos meses depois que ela deixou o hospital adventista, o presidente George H. W. Bush a nomeou para a Comissão Nacional de AIDS, que foi incumbida de aconselhar o presidente e o Congresso em todos os assuntos relativos ao HIV e a AIDS. Quando os periódicos da igreja alardearam essa notícia, Diaz respondeu com tristeza: “Com a resposta mínima de nossa igreja, não saio por aí agitando uma bandeira dizendo que sou adventista do sétimo dia.” Ela explicou: “A igreja deu as costas à questão da AIDS porque não consegue lidar com a questão da homossexualidade. A liderança da igreja tem medo de se identificar com algo que considera embaraçoso.”

Eunice Diaz foi nomeada por G. W. Bush para a Comissão Nacional de AIDS. Fonte: Cortesia da SDA Kinship Connection/junho de 1992.

Outro ativista adventista proeminente foi Harvey Elder, médico e especialista em doenças infecciosas do Hospital de Veteranos em Loma Linda, Califórnia. Quando teve seu primeiro paciente de AIDS em janeiro de 1983, ele percebeu que tinha um forte preconceito contra homossexuais e usuários de drogas. No entanto, ao interagir com seus pacientes e aprender suas histórias, ele percebeu que, se Jesus estivesse em seu lugar, ele alcançaria esses pacientes, e aceitou isso como seu chamado. Em meados da década de 1980, ele pôde ver que uma epidemia assustadora estava se espalhando e, depois de se encontrar com Eunice Diaz, os dois começaram a estimular a IASD a se envolver. Ambos foram nomeados para a Comissão de AIDS da AG quando foi criada em 1987, e serviram nela por uma década. No entanto, eles ficaram frustrados quando suas reuniões não resultaram em ações. O Dr. Elder respondeu com uma ação solitária destinada a persuadir os adventistas a aceitarem a doença e os portadores de HIV.

A Comissão de AIDS falhou em sua tentativa de inserir a AIDS como um dos assuntos no cronograma da Assembleia da AG em 1995. No entanto, seus membros tiveram vinte minutos para discursar no Concílio Anual de líderes da igreja em 1996. Como muitos pastores interessados ​​na doença descobriram que falar sobre o assunto fez com que as pessoas suspeitassem que eles ou seus filhos eram gays, os palestrantes da Comissão recomendaram a AG a reconhecer que a AIDS era uma grande crise. Eles também pediram que a igreja aconselhasse os casais heterossexuais em áreas com altas taxas de infecção a serem testados antes do casamento e a usarem preservativos se um deles fosse soropositivo. Eles também pediram que os seminários adventistas ensinassem sobre AIDS, mesmo porque os alunos precisavam estar preparados para pregar sermões adequados nos funerais de portadores de HIV. Apesar da grande oposição ao uso do preservativo em qualquer circunstância, todos os itens foram aprovados. No entanto, os membros da Comissão ficaram profundamente desapontados quando houve pouca tentativa de implementar as medidas votadas.

É verdade que a IASD na América do Norte nunca fez da AIDS sua preocupação. De acordo com a Comissão, “não temos ideia da prevalência de HIV/AIDS na igreja norte-americana. Ainda há tanta vergonha e estigma que os membros da família não falam e aqueles em risco não frequentam a igreja”. Embora os hospitais adventistas agora tratem portadores de HIV como fazem com qualquer outra doença, o Dr. Elder me disse que “não estava ciente de nenhum hospital adventista que tenha feito da AIDS uma prioridade”. Quando o ministério de saúde da AG patrocinou uma comissão sobre AIDS na Universidade Andrews pouco antes da sessão da AG, em junho de 2005, apenas dois dos cem participantes eram da América do Norte. Uma pesquisa nas igrejas estadunidenses, na tentativa de descobrir níveis de interesse pelo tema, descobriu que a AIDS não era vista como um grande problema quando comparada a outros problemas médicos. Apenas cerca de 20% dos entrevistados expressaram algum interesse, a maioria de congregações negras.

Uma epidemia de AIDS eclodiu na África logo após a doença ter sido identificada nos Estados Unidos. Ela também era transmitida por contato sexual, mas desta vez era uma epidemia principalmente heterossexual. Quando entrevistei Bekele Heye, presidente da então Divisão África Oriental da IASD, onde a AIDS era galopante, em 1990, ele me disse que “a AIDS não é uma questão adventista!” Isso porque ele a associava à promiscuidade sexual e, como a igreja proibia, ele não estava interessado na doença. A falta de interesse sem dúvida contribuiu para o fato de eu ter achado os hospitais adventistas em sua Divisão ignorantes sobre o risco de  espalhar o contágio pelo uso de suprimentos de sangue não testados e pela reutilização de agulhas quando os visitei em 1988-1989. Heye também ignorou os fatos de que milhares de novos membros estavam entrando na igreja e ele não podia falar sobre seus hábitos sexuais antes do batismo. Na verdade, também encontrei evidências consideráveis ​​de promiscuidade sexual entre membros da igreja e pastores durante minhas três visitas relacionadas à pesquisa na África. A atitude de Heye foi, portanto, totalmente irreal.

Ainda em 1996, em um artigo intitulado “AIDS e a Igreja na África”, Saleem Farag, ex-diretor de longa data do Departamento de Saúde da Divisão África Oriental, e Joel Musvosvi, secretário ministerial da Divisão, não mencionaram que os adventistas eram portadores do HIV ou que a doença havia afetado a igreja. Nem houve reconhecimento de que os adventistas africanos eram muitas vezes altamente promíscuos. Em vez disso, os autores se referiram aos dados dos EUA e pediram ênfase na moralidade e nas oportunidades evangelísticas entre os portadores de HIV.

A Comissão de AIDS da AG decidiu concentrar seus esforços na educação para prevenir a propagação da doença no mundo em desenvolvimento e, assim, promover o “comportamento moral” lá. Esse foco permitiu que os líderes da igreja mais uma vez evitassem lidar com homossexuais, pois a AIDS nessas regiões foi encontrada principalmente entre os heterossexuais. Com a evidência de que uma epidemia aumentava pela África, os líderes da igreja começaram a perceber que a AIDS era apenas mais uma doença, e não o julgamento de Deus sobre a homossexualidade. No entanto, a igreja levou muito tempo para reconhecer que a taxa de infecção entre os adventistas na África era alta. De fato, o presidente da AG, Robert Folkenberg, não percebeu que a igreja estava infectada até que o Dr. Elder o alertou de que um número significativo de pastores lá tinha a doença, e o próprio Folkenberg viu em primeira mão, durante uma visita subsequente à África, que pastores e administradores de igreja de nível médio estavam morrendo. O Dr. Allan Handysides, diretor do Departamento de Saúde da AG, chamou a atenção dos administradores quando apontou que o custo dos cuidados médicos para um funcionário da igreja com AIDS igualava os salários de quatro ou cinco pastores. Apenas no novo século os líderes da IASD na África reconheceram que múltiplos parceiros sexuais, incesto e estupro são grandes problemas dentro das igrejas do continente africano. Estudos independentes mostram que o número médio de parceiros sexuais que os adventistas africanos têm é apenas um pouco menor que para a população em geral. O desencorajamento dos adventistas em relação ao uso de preservativos, principalmente por causa das opiniões de Saleem Farag enquanto diretor de Saúde na Divisão da África Oriental e o apoio que ele recebeu da AG, tornaram a situação ainda mais perigosa. Os africanos tendem a ver as coisas em tons de preto e branco, e os ultraconservadores entre eles cunharam slogans como “conduta, não camisinha” (“conduct not condoms”, no original em inglês). Essa visão começou a mudar somente depois que a Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA) abraçou a questão e introduziu um novo slogan pró-preservativo, “Proteção para Pessoas com um Coração Não Regenerado” (“Protection for People with an Unregenerate Heart”, no inglês). No início do novo século, o presidente da AG, Jan Paulsen, endossou o uso de preservativos em uma conferência sobre AIDS na África.

Quando visitei a África do Sul e o Zimbábue em 1999, encontrei igrejas na Suazilândia que tinham apenas mulheres e crianças como membros, porque os maridos estavam trabalhando nas minas. Os pastores de lá me disseram que os homens voltavam uma vez por ano para ver suas esposas e “passar AIDS para elas”, que muitos contraíam como resultado de vidas sexuais ativas enquanto estavam fora. No Zimbábue, vi os resultados de uma pesquisa confidencial entre membros solteiros da maior congregação adventista em Bulawayo, onde mais de 80% dos homens e 75% das mulheres admitiram ser sexualmente ativos. Fiquei consternado ao saber que a promessa de confidencialidade para os entrevistados que admitiram ter tido uma experiência homossexual havia sido quebrada.

Dr. Handysides tornou-se diretor do Departamento de Saúde da AG em 1998. No ano seguinte, ele percebeu que a AIDS era um problema enorme para a igreja por causa do grande número de membros na África, onde a epidemia era pior. Ele impulsionou com sucesso a implantação de um departamento de AIDS na África, com sede em Joanesburgo. Esse departamento trabalhou para persuadir as universidades adventistas na África a ministrar um curso sobre AIDS em seus programas de treinamento ministerial, como uma advertência e um chamado para ministrar aos portadores de HIV, para tornar cada igreja adventista um centro de apoio à AIDS onde os portadores pudessem costurar e assar produtos para venda, e para ajudar a reduzir a transmissão da AIDS de mãe para filho por meio de testes e tratamento. No entanto, o orçamento apertado do escritório prejudicou severamente os esforços do diretor.

A cruzada do Dr. Elder levou-o à África muitas vezes depois de 1989, onde ele se esforçou para conscientizar a igreja sobre a epidemia. Quando ele sentiu que muito pouco estava sendo dito aos jovens nas igrejas, ele projetou um curso sobre AIDS que foi ministrado em quatro das universidades adventistas africanas. “Espero fervorosamente que [o curso] mude a atitude em relação aos infectados e ajude os alunos a perceber quais são os comportamentos perigosos”, ele me disse. “Quando se trata de proteção, ser adventista não funciona tão bem quanto um preservativo!” O Dr. Handysides concordou; ele explicou que o HIV/AIDS desafia algumas crenças que os adventistas têm sobre sua pureza, como a suposição de que não serão infectados por tal epidemia.

Uma conferência adventista sobre AIDS em Harare, Zimbábue, em 2003, representou um ponto de virada, pelo menos ao reconhecer que o adventismo demorou a responder à epidemia, que muitos adventistas foram infectados e que aqueles que contraíram a doença frequentemente enfrentavam estigmatização em suas igrejas. Pardon Mwansa, então presidente da Divisão, reconheceu corajosamente que um membro de sua família estava infectado com AIDS. Ele insistiu que os adventistas reconhecessem a doença como um problema. Elder insistiu que a conferência agendasse uma reunião separada para presidentes de Associações/Uniões, educadores de saúde, e adventistas portadores do HIV. Como resultado de sua insistência, os presidentes que participaram da reunião confessaram aos portadores de HIV que haviam pecado contra eles, mentindo para eles sobre Deus e sobre eles para seus membros.

A IASD aprendeu a responder aos africanos heterossexuais que transmitiam AIDS por meio de múltiplas relações ao perceber a quantidade de adventistas que foram infectados. No entanto, continuou a fazer quase nada sobre a doença nos Estados Unidos, porque lá ela havia começado como uma doença gay – e continua a rejeitar tanto adventistas gays que se colocam em risco de contrair AIDS quanto aqueles que vivem em relacionamentos sérios como sendo igualmente promíscuos, pois nenhum dos grupos está dentro do casamento e sexo heterossexual.

Conclusão

Até que ponto seu antigo slogan, “A Igreja Acolhedora”, descreve o adventismo? Conforme medido aqui, a IASD oficial falha no teste porque se mostrou mais preocupada com regras e com sua imagem do que com as necessidades de seu povo.

Apesar do fracasso do programa de “reorientação sexual” que ela apoiou e da exploração sexual do diretor aos aconselhados jovens e frágeis, os líderes da igreja ajudaram a restaurá-lo a um lugar onde ele pudesse retomar suas atividades, e eles continuaram a insistir que apenas homossexuais em luta para mudar sua orientação ou ser celibatário serão aceitos. O preconceito desses líderes os levou a processar a SDA Kinship para se distanciar dos adventistas LGBTQIAP+, e os impediu de ver a relevância da epidemia de AIDS no adventismo, especialmente em lugares onde inicialmente a consideravam uma “doença gay”. Também continua a recusar o apoio aos direitos civis dos grupos LGBTQIAP+. De fato, ela endossou tentativas da direita religiosa de retirar ganhos recentes.

No entanto, se nos concentrarmos na igreja mais ampla, começando com membros, congregações e educadores, em vez da hierarquia institucionalizada, há algumas razões para esperança. Os estudiosos e pastores que participaram dos Kinship Kampmeetings tiveram sua consciência da situação dos adventistas LGBTQIAP+ transformada e, consequentemente, muitas vezes se tornaram aliados. Nos últimos 20 anos, muitos deles serviram em um conselho consultivo, onde trabalham com a Kinship para tornar nossa igreja mais verdadeiramente acolhedora. Nos últimos anos, membros da igreja, congregações e outras entidades relacionadas à igreja tornaram-se mais conscientes da presença de pessoas LGBTQIAP+ na igreja, suas famílias e faculdades. Isso tem sido em grande parte o resultado dos esforços da SDA Kinship e de alguns membros individuais da igreja verdadeira e notavelmente atenciosos, e das publicações da Spectrum e Adventist Today, que encorajaram uma nova abertura entre os leitores.

Houve uma mudança notável no tom das histórias que os recém-chegados contam sobre crescer gay na IASD desde as primeiras reuniões da Kinship, 40 anos atrás. Sua designação inicial como “histórias de terror” raramente é adequada hoje na América do Norte ou em grande parte do resto do mundo desenvolvido, embora as histórias muitas vezes ainda reflitam dor, confusão, isolamento e rejeição. Vários fatores tiveram um impacto notável: a própria existência da SDA Kinship International; o fato de que os adventistas LGBTQIAP+ atualmente encontram a Kinship com mais facilidade e ainda mais jovens; a pronta disponibilidade de informações na internet; e mudança de atitudes na sociedade e na igreja, especialmente entre muitos pais adventistas. Este ainda não é o caso no mundo em desenvolvimento, onde tanto a igreja quanto a sociedade ainda rejeitam gays e lésbicas e onde “histórias de terror” continuam a abundar.

A SDA Kinship International continua a fazer uma contribuição extraordinária em nome da IASD, muitas vezes para o desgosto da igreja. A Kinship está alcançando com crescente eficácia os jovens adventistas que têm dúvidas sobre sua sexualidade; não é mais necessário enviar correspondências para campi adventistas, porque a maioria dos jovens homossexuais os encontra facilmente na internet e a maioria dos campi universitários americanos hoje têm alianças entre gays e heterossexuais (“Gay-Straight Alliance”, em inglês) ou um grupo de apoio LGBTQIAP+. Ela nutre espiritualmente os adventistas LGBTQIAP+, encoraja-os a pensar na ética de ser um cristão gay e promove relacionamentos estáveis ​​entre eles.

Em julho de 2019, a Kinship Adventista do Sétimo Dia Internacional celebrou seu 40º Kampmeeting anual em Portland, Oregon. Semelhante, mas diferente dos acampamentos adventistas tradicionais, este é um momento em que os adventistas LGBTQIAP+, suas famílias e aliados se reúnem para adorar, socializar e contar suas histórias. Fonte: cortesia de Floyd Poentiz.

Os adventistas LGBTQIAP+ têm razões para ter esperança por causa das recentes mudanças nas atitudes em relação a eles exibidas pelas principais universidades adventistas no mundo desenvolvido, como as Universidades de Loma Linda e Andrews; por causa de uma nova consciência na NAD, ilustrada por sua publicação de Guiding Families; o surgimento de algumas “congregações acolhedoras” nos EUA e na Austrália; e o apoio demonstrado a eles por um número crescente de adventistas progressistas, conforme ilustrado pelos muitos artigos ponderados e conscientes publicados pela Spectrum e Adventist Today. No entanto, a principal mensagem da IASD e da AG para seus membros LGBTQIAP+ continua sendo que os adventistas “amam o pecador, mas odeiam o pecado”. Essa atitude, na verdade, julga a fé e a vida das pessoas cujo pecado é “odiado”, e pode ser melhor traduzida como “nós só te amaremos verdadeiramente quando e se você atender aos nossos padrões”. Assim, ela oferece amor condicional em vez de incondicional. Isso não é nem acolhedor, nem carinhoso.

Consequentemente, um profundo desgosto pelas pessoas LGBTQIAP+ e o medo delas continuam a existir entre um grande número de adventistas. A pergunta feita no título de um artigo sobre uma pessoa intersexual que foi publicada na Spectrum em janeiro de 2020 – “Existe um lugar para Bob e outros como ele na Igreja Adventista?” — permanece verdadeiramente pertinente. Isso sugere que talvez o melhor caminho para os adventistas que desejam que sua igreja cuide de seus membros e filhos LGBTQIAP+ seja trabalhar para ajudar as igrejas onde congregam a se tornarem congregações verdadeiramente acolhedoras.