06 nov., 2021 | Da redação Zelota
Embora a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) seja uma organização mundial, sua articulação administrativa acontece em nível local. Segundo os manuais da IASD, a hierarquia da igreja é representada por uma pirâmide invertida, justamente por conferir mais poder e autonomia às instâncias baixas da hierarquia. Assim, comunidades locais, Associações e Uniões têm autonomia e independência frente a órgãos administrativos como a Associação Geral (AG) e a Divisão Sul-Americana (DSA). No entanto, na IASD brasileira, cujos líderes se pretendem neutros e apolíticos, ao mesmo tempo que se articulam na extrema direita, também transparecem contradições na governança: a autonomia de igrejas locais às vezes pode ser violada por instâncias superiores, após difamações promovidas por iniciativas às margens da instituição.
A influência das instâncias superiores da IASD em assuntos locais, por conta de polêmicas na internet, foi recentemente notada em São Paulo, entre os membros da Comunidade Adventista de Jovens Universitários (CAJU). Após convidarem o adventista Felipe Maciel para falar em um culto, no sábado, a comunidade foi atacada por publicações da página do Facebook “Conservadorismo Adventista”, que acusaram o CAJU de ser, pejorativamente, uma “igreja gay”. Maciel era líder da Kinship Adventista do Sétimo Dia Internacional (SDA Kinship) no Brasil, uma iniciativa adventista mundial para o acolhimento da comunidade LGBTQIAP+.
O fenômeno assumiu novas proporções quando o CAJU, em vez de desconvidar Maciel por conta da polêmica, resolveu tomar uma atitude drástica e cancelar a programação como um todo. Segundo membros da comunidade, a decisão ocorreu por conta da influência da Associação Paulistana (AP), que teria expressado uma ameaça contra o pastor da comunidade. Durante o último Concílio Pastoral, no dia 26 de outubro, o pastor que atuava no CAJU entregou sua credencial em público.
O caso abre precedentes preocupantes para a IASD, e ilustra os perigos de priorizar o silenciamento de escândalos públicos em detrimento das comunidades locais, sujeitando a instituição às demandas de milícias virtuais reacionárias. Ao invés de castigar as comunidades afetadas pelas polêmicas levantadas contra ela, a instituição deveria zelar por suas igrejas, defendendo-as de difamações que, além de possuírem implicações legais, nutrem um discurso de divisão da membresia entre “fiéis” e “hereges”, e a marginalização da comunidade LGBTQIAP+.
Dom Quixote e as sobras de tinta
O CAJU é uma IASD pertencente à União Central Brasileira (UCB), sob a jurisdição da AP, e está localizado na Zona Oeste de São Paulo, próximo à Cidade Universitária da Universidade de São Paulo (USP). De acordo com Pablo*, membro do CAJU que não quis se identificar, a localização é estratégica: “Somos uma missão urbana que visa dialogar com o público universitário, conforme consta no projeto entregue à Associação,” explica. Os cultos de sábado também têm um formato estratégico: “os nossos encontros não acontecem como numa igreja convencional, onde só uma pessoa tem a palavra e prega sem qualquer interrupção. O convidado propõe um tema a ser discutido entre todas e todos os presentes, como costuma ocorrer nas universidades.”
Apesar da horizontalidade das discussões, o CAJU também tem um voto de comissão de só convidar membros da IASD para mediá-las, dando preferência a membros da própria comunidade; “quando pensamos em chamar o Felipe Maciel, a primeira coisa que fizemos foi verificar se ele era membro regular da IASD, algo que de fato ele é”, conta Pablo. Felipe também frequentava as reuniões da comunidade assiduamente, sendo assim natural que fosse um dos convidados. “O convite também é uma forma de botar a pessoa na roda, botar ela na mesa, pra que ela se sinta ainda mais parte da comunidade”, explica.
Em resposta à Zelota, Felipe Maciel, de 36 anos, confirma que se sentiu extremamente acolhido desde sua primeira participação nas reuniões, em meados de março deste ano: “Eu fui convidado pra cantar no momento artístico, junto com as minhas irmãs, e sempre pude falar abertamente da minha orientação sexual, sendo muito bem recepcionado,” conta. “Eu não ficava sendo questionado, e sempre vi um lado muito afetuoso, de acolhimento, de aceitação, e sempre fui incentivado a participar, comentando nas reuniões assim como os outros presentes”.
Felipe também era coordenador da Kinship Brasil, um movimento internacional de acolhimento a adventistas da comunidade LGBTQIAP+, sejam estes membros ativos ou afastados. Segundo Felipe, o movimento sentia a necessidade de ambientes em que seus membros e membras tivessem encontros espirituais, onde pudessem ter apoio em suas experiências com Deus. O acolhimento experimentado no CAJU fez com que Felipe levasse vários membros da Kinship com ele às reuniões, e alguns se tornaram membros ativos, orando, cantando, opinando e compartilhando suas experiências de vida. “Eram momentos de cura, carinho e libertação, onde éramos de fato ouvidos pela comunidade”, relembra Felipe.
Os problemas começaram quando o convidado foi apresentado na quinta-feira (30/09), dois dias antes do encontro, em uma postagem do Instagram. De acordo com Pablo, a apresentação também foi feita como de costume: “pedimos que o Felipe Maciel se descrevesse como preferia, e ele quis colocar seu papel de liderança na Kinship”, explica. “Não vimos problema, porque não temos nada a esconder e não fizemos nada de errado.” No dia seguinte, a página de Facebook “Conservadorismo Adventista” fez uma publicação atacando o CAJU e seu convidado, Felipe Maciel, por serem uma “igreja gay” e convidar um membro de um “movimento dissidente”. A publicação ainda implicava o presidente da AP, Pr. Romualdo Larroca, como simpatizante da causa LGBTQIAP+, e exigia intervenção imediata da DSA e da UCB para “cobrarem explicações” do Pr. Larroca.
Esta não foi a primeira vez em que o CAJU foi atacado pela página “conservadora”. No dia 28 de junho, após a criação de um fake que se passava por um homossexual em busca de acolhimento no CAJU, a página publicou os prints recebidos, acusando a comunidade de ser a “Primeira Igreja Adventista Inclusiva (LGBTQ) Oficial” do Brasil. Sobrou até para a fachada do prédio, que, por ser colorida, foi tachada de “sugestiva” pela página. Conforme explica Pablo, a pintura da fachada foi feita há dez anos, com sobras de tinta, e os membros já estavam em busca de doações para reformar a fachada desbotada. Em resposta à Zelota, a membra que teve suas conversas com o fake vazadas desabafa: “fake ou não, eu teria agido da mesma forma. Sempre convido as pessoas para irem à minha igreja, pois nela há acolhimento e também a Verdade”.
As “tochas de Satanás”
A página do Facebook responsável pelas publicações persecutórias nem sempre se chamou “Conservadorismo Adventista”. Com mais de 20 mil curtidas, ela foi criada em 2015 por Diego Fortunato Flores, membro da IASD de Alvorada (RS), que ainda coordena a página, com o nome de “Apologética Adventista”, e só teve seu nome atual estabelecido em 2018, ano da eleição presidencial de Jair Messias Bolsonaro (sem partido).
A publicação inicial contra Felipe Maciel possui pouco mais de 200 curtidas, cerca de um décimo das curtidas da página. Entre os comentários na publicação, é possível encontrar adjetivos que vão de “tocha de Satanás” a “aberração” e “abominação”. Outros comentários chamam o pastor responsável pelo distrito em que se encontra o CAJU de “pastora”. A publicação ainda foi compartilhada e endossada por Patrick Siqueira, ex-pastor demitido recentemente pela AP que costuma fazer publicações contra o Pr. Larroca, e teria circulado anonimamente em grupos de pastores do WhatsApp.
No mesmo dia da publicação, a presidência da AP teria entrado em contato com o pastor distrital do CAJU e exigido que alguma providência fosse tomada, assim como a remoção da publicação na página do Instagram. “Jamais fomos consultados ou questionados quanto às nossas propostas ou intenções”, conta Pablo à Zelota. “Talvez se tivessem conversado com a gente e quisessem entender, teriam entendido”.
A decisão, por parte do CAJU, de cancelar definitivamente o encontro, teria vindo acompanhada de uma ameaça: “caso não cancelássemos o evento, recebemos a resposta de que o nosso pastor seria punido”, conta Pablo. “Considerando que ele é muito querido e estava numa posição vulnerável, sendo passível de demissão, decidimos em meio a lágrimas que a opção ‘menos pior’ era cancelar o evento”.
Ironicamente, o tema escolhido por Felipe Maciel para a discussão, no sábado, era sobre a necessidade de acolher a comunidade LGBTQIAP+ nos espaços religiosos:
“O meu entendimento hoje é que não estamos num momento de discutir teologia. Nós estamos num momento de garantir direitos fundamentais — à moradia, à alimentação, à saúde, a afeto, a uma família — para a comunidade LGBTQIAP+, que tem esses direitos constantemente cerceados. Nós estamos em lugares diferentes, e nem conseguimos discutir uma questão teológica do ‘ser homossexual’, porque antes disso precisamos definir: eu tenho direito à vida? Eu tenho direito a me relacionar de maneira afetiva com outras pessoas? Eu tenho direito a ter uma religião e estar aqui assim como vocês?”, explica Maciel à Zelota.
O cancelamento do programa e, por consequência, da participação de Felipe oferece resposta a essas perguntas — e da forma mais amarga possível. “Na sexta à noite eu recebi uma ligação do pastor responsável pelo CAJU, e ele disse que teria que me desconvidar devido a uma ‘orientação’ da presidência da Associação, feita por causa da publicação da página contra mim e a comunidade,” conta Felipe. “Eu fiquei muito constrangido por ter sido abordado dessa maneira. Me senti humilhado, fragilizado, impotente, e percebi os mesmos sentimentos nos olhos do pastor, que não queria nada daquilo. Não tinha o que ser feito; a diretoria decidiu que não haveria programação ao invés de só me desconvidar, numa atitude de respeito a mim, dentro do que lhes era permitido.”
Felipe enfatiza que foi uma situação difícil para todos: “por mais que eu sinta injustiça e impunidade dentro de mim, eu entendo que o CAJU e o pastor responsável fizeram até onde podiam, e que por estarem dentro da instituição eles também tiveram seus direitos cerceados”, explica à Zelota. “Tirando o pastor do CAJU, nenhum outro representante da IASD veio falar comigo, e eu permaneço sem entender as razões oficiais para a retirada do meu convite. A gente pressupõe o que seja, mas não houve qualquer comunicado, e muito menos preocupação com a minha vida emocional, minha dignidade, espiritualidade; e isso porque tratamos de uma instituição religiosa que propaga a breve volta de Jesus para todas as pessoas. Como estamos anunciando a volta de Jesus para todas as pessoas, se algumas pessoas não têm sequer o direito de serem ouvidas?”
Infelizmente, o cancelamento do encontro não foi o bastante para apagar as “tochas de Satanás”. No dia 23 de outubro, a página do Facebook fez outra publicação atacando o Pr. Larroca e o pastor responsável pelo CAJU, divulgando supostas informações sigilosas da reunião da AP sobre o caso e exigindo a demissão do pastor distrital. Na semana seguinte, o pastor entregou sua credencial, durante uma reunião do Concílio Anual de Pastores da AP.
A revista Zelota entrou em contato com o Pr. Romualdo Larroca para mais esclarecimentos sobre as ameaças da AP e sobre a saída do pastor da comunidade, mas Larroca preferiu não oferecer sua opinião sobre o assunto.
A lenha ou o escudo
Esta não é a primeira vez em que páginas reacionárias de membros da IASD usam a internet para tentar intimidar a administração da igreja e promover uma caça às bruxas. Em maio de 2009, conforme noticiado por artigo da Spectrum, um website criado anonimamente começou a promover ataques contra a Universidade Adventista de La Sierra (LSU), na Califórnia, EUA, por seus professores de Biologia ensinarem o “evolucionismo naturalista”. Enquanto isso, o físico criacionista Dr. Sean Pitman e o Pr. David Asscherick, nenhum deles funcionário da LSU, enviaram cartas ao presidente da União responsável pela universidade (União Pacífico), ao presidente da Divisão Norte-Americana (NAD), e ao presidente da Associação Geral (AG), na época o Pr. Jan Paulsen. As cartas pediam por intervenção na universidade, devido ao ensino de “doutrinas antibíblicas” em suas salas de aula.
Numa conclusão interessante, entretanto, a instituição não respondeu endossando ou cedendo à caça de hereges: o Pr. Ricardo Graham, presidente da União Pacífico na época, disse “não estar interessado numa caça às bruxas”, e o então presidente da LSU, Randal Wisbey, escreveu uma carta aberta, defendendo o rigor acadêmico da universidade e desmentindo boatos de que seus professores estariam “doutrinando alunos” no evolucionismo. Ele também teria se reunido com o conselho da universidade para entender melhor o que estava acontecendo.
Esse caso representa um exemplo positivo que pode servir de exemplo à IASD brasileira: frente a ataques online contra supostas heresias de comunidades e instituições adventistas locais, a administração do território se posiciona do lado das comunidades afetadas, ouvindo-as e defendendo-as contra denúncias e difamações, e não se rende às vontades de grupos externos, que gostariam de queimar os supostos hereges na fogueira da opinião pública reacionária. Cabe à administração servir como escudo de suas comunidades, e não servir como lenha para tais fogueiras.