Por Caio Marçal | Educador, Teólogo, Mestre em Sociologia e coordenador da Rede Fale.

Li o tweet de um teólogo que dizia que “Cuba é uma ditadura”, e que o “bloqueio econômico não pode ser usado como desculpa para defender a Ilha”. Essa é a reprodução de um argumento da política externa estadunidense, e por vários motivos está equivocada. Aliás, não é nada incomum, entre colegas teólogos, a reprodução das lógicas da “Terra do Tio Sam”. Mas para além da mentalidade colonizada de nossos pares, vale a pena discorrer algumas linhas sobre Cuba, democracia e bloqueio econômico.   

O debate sobre o que é uma democracia tem diferentes abordagens conflitantes. É o caso do dissenso entre a visão elitista de Schumpeter1, que entendia que as massas deveriam apenas votar em uma camada “bem formada”; e Robert Dahl2, que, em seu conceito de poliarquia, defendia como modelo adequado a ampla e irrestrita participação popular, controle social e ampliação da democracia direta em contraposição à “democracia representativa”. Embora seja um conceito em disputa, e sempre passível de aprimoramento, a Democracia, nas palavras de Becker e Raveloson3, pode ser definida quando “o poder surge do povo, está a ser exercido pelo povo e no seu próprio interesse”.

Em contraposição à democracia, um sistema ditatorial concentra poderes sobre os rumos da vida de um país nas mãos de um único indivíduo. Conforme Stoppino4, o que qualifica um regime ditatorial é a ausência de qualquer freio constitucional para que uma pessoa ou grupo restrito tenha concentração ilimitada do poder. Ou seja, todo o processo de gestão da política é concentrado nas mãos de um ditador, ou de uma pequena camarilha.

Pois bem, mal sabe o colega teólogo, citado no início, que em Cuba o povo tem mais chances de participar das decisões e rumos do país do que na “democracia” brasileira. Além dos plebiscitos e referendos (instrumentos fundamentais da política cubana) e da Assembleia Nacional do Poder Popular, eleita pelo povo para gerir e legislar as leis do país, Cuba tem as Assembleias populares, onde todos podem decidir os rumos locais e nacionais.5 No sistema político cubano, o Partido Comunista não controla o processo de indicação, muito menos os candidatos da Assembleia Nacional do Poder Popular e das Assembleias Provinciais do Poder Popular precisam ter filiação partidária. Todos os cidadãos podem participar das decisões da governança do estado cubano. Um exemplo de livre participação foi a articulação de religiosos católicos e evangélicos que barrou a inclusão do casamento igualitário em Cuba. 

Via de regra, na “democracia brasileira” a única chance dos pobres entrarem no Congresso Nacional é com o financiamento de burgueses, como Lemann, para defender os interesses de… Lemann. Quer um exemplo? Tiago Mitraud, Tábata Amaral e Felipe Rigoni, parlamentares com campanhas financiadas pelo baronato, via Think Tank RenovaBR, como é descrito na matéria de Beatriz Montesanti para o site da UOL. Sinceramente, é possível chamar isso de democracia? Nesse sentido, é preciso requalificar a possibilidade de identificar a possibilidade da democracia no capitalismo; ou mesmo a falsa percepção de que o pensamento liberal é o “patrono da democracia”. Aqui vale o arremate de Julio Zaldívar6:

Qual é a relação entre desigualdade, diversidade e democracia? Que relação existe entre capitalismo e democracia? É livre quem depende de outro para sobreviver? A “economia” tolera a universalização dos direitos de cidadania? Como evitar a usurpação do poder político em mãos de poderes privados como o mercado e as burocracias?

Em suma, Cuba dá muito mais chances e possibilidades de um cidadão participar da vida política nacional do que no Brasil ou nos EUA, “o grande defensor dos valores democráticos”. Por fim, achar que o bloqueio econômico americano, fruto de violência imperial, seja compatível com valores democráticos, chega a ser risível de tão grotesco. O bloqueio econômico americano proíbe a Cuba a compra e a venda de qualquer mercadoria, pois todos os possíveis parceiros que pretendam fazer parte dessa negociação são passíveis da punição estadunidense. Sendo o dólar a  moeda-referência nos negócios internacionais, quem resolve furar o bloqueio é bloqueado comercialmente pelos EUA. Em tempos de pandemia, a situação é dramática. Atualmente, fornecedores de seringas não podem disponibilizá-las à Cuba para combater a disseminação da Covid-19. Ademais, embora Cuba tenha cinco vacinas diferentes, duas em estágio de desenvolvimento final, as sanções dos EUA impedem a fabricação de vacinas pelo governo local.

O bloqueio é tão imoral que, há quase 30 anos, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprova todos os anos uma moção em favor de Cuba contra as sanções promovidas pelos EUA. Na última votação da moção, apenas os EUA e Israel tiveram posição contrária à moção. E somente os governos do negacionista Bolsonaro, do NarcoEstado Colombiano e dos neonazistas Ucranianos se abstiveram de votar a favor da referida moção

Porém, as contradições do discurso contra a “ditadura cubana” tormam-se mais bizarras quando comparadas com algumas das “democracias” latinoamericanas apoiadas pela Casa Branca. Enquanto os EUA chamam Cuba de “regime fracassado” e de “ditadura”, silenciam-se ante as 74 vítimas da violência do Estado da Colômbia durante os atos da Greve Geral que aconteceu entre 28 de abril e 28 de junho de 2021. No levante popular no Chile contra o governo liberal de Piñera, militantes foram abusadas sexualmente. Nesse período 28.210 foram pessoas presas e 26 mortas por agentes estatais, mas não houve nenhuma censura ou ameaça de sanção econômica contra o governo chileno e o colombiano. Talvez seja preciso desmontar o conceito de “liberdade” e “defesa da democracia” dos liberais. Liberdade na “democracia” burguesa só existe para as elites econômicas. Liberdade, para quem é pobre, é apenas aceitar por livre e espontânea opressão o chicote da classe dominante no lombo da classe trabalhadora.

Outro dado curioso: Por que os EUA não bloquearam a economia de Cuba no período de 35 anos de ditadura sanguinária de Fulgêncio Batista? Por que não houve sanções econômicas da Casa Branca contra Pinochet, ou no contexto da ditadura civil-militar de 1964 no Brasil? Não deixa de ser perversamente irônico que o único centro de tortura em território cubano é na base de Guantánamo, governada pelos “bastiões da Democracia”, não é mesmo… Ora, teólogos com os pés no chão, como Martin Luther King7, não faziam de conta que o imperialismo não existia. Enquanto discursava sobre a posição lamentável do governo americano sobre o Vietnã, o pastor batista declarou:

Mas, com razão, eles perguntavam: “E o Vietnã?” Eles me perguntavam se nossa própria nação não estava usando doses maciças de violência para resolver os seus problemas, para forjar as mudanças que desejava. As perguntas atingiram o alvo, e eu soube que jamais poderia levantar minha voz outra vez contra a violência dos oprimidos nos guetos sem antes falar claramente do maior fornecedor de violência do mundo hoje: o meu próprio governo.

Como afirmamos acima, democracia e ditadura são conceitos importantes. Igualmente, nenhum processo democrático é totalmente isento de críticas, inclusive em Cuba. Assim sendo, não podem ser tratados de forma leviana. Agir assim é, segundo o profeta Jeremias, afastar-se simultaneamente da Justiça e do próprio Deus (Jr 2.5), seguindo ídolos falsos e sem valor. O mundo já descobriu quais são os interesses por trás da “defesa da democracia” do Império ianque, mas nossos colegas teólogos ainda parecem viver em outro mundo: o mundo da Lua. O mundo dos levianos.

Notas:

1. SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.

2. DAHL, Robert. Poligarquia: Participação e Oposição. São Paulo: EDUSP, 2005.

3. BECKER, Paula; RAVELOSON, Jean-Aimé A. O quê é democracia?. Friedrich-Ebert-Stiftung, 2011.

4. STOPPINO, Mario. Ditadura. In: BOBBIO, Norberto. (Org.). Dicionário de política. Brasília: Editora UnB, 2010.

5. GUANCHE, Julio César. La participación ciudadana en el Estado cubano. Disponível em <https://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1148&context=yls_sela> . 2014. Acesso em: 13 de julho 2021.

6. ZALDÍVAR, Julio César Guanche. Democracy in Cuba. estudos avançados, v. 25, p. 19-28, 2011., p. 26.

7. KING, Martin Luther. As palavras de Martin Luther King. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2010, p. 54, grifo nosso.