O luto pela morte da rainha Elizabeth II compartilhado por veículos adventistas não pode abafar a miséria, causada pelo colonialismo e imperialismo britânicos, que ainda enriquece a monarquia


Por Admiral Ncube | um adventista zimbabueano que escreve de Gaborone, Botswana, onde é um profissional humanitário e de desenvolvimento. O artigo foi traduzido por André Kanasiro do original em inglês para a revista Zelota.

“Rainha Elizabeth II” (Fonte: Paul Popper/GettyImages [1961])

No dia de sua morte, o serviço de notícias da Divisão Transeuropeia publicou um artigo intitulado “Em memória de sua majestade, a rainha Elizabeth II”. O artigo foi republicado pela Rede Adventista de Notícias. Nele, os líderes da igreja celebraram seu “legado de fé, comprometimento e serviço”. Concluindo o artigo, Audrey Andersson, vice-presidenta geral da Associação Geral, afirmou que sua “vida de serviço estava fundamentada em sua profunda fé pessoal. Seu senso de dever a Deus, ao país e à Comunidade Britânica era uma fonte de estabilidade e esperança em tempos difíceis e uma inspiração para muitos.” No entanto, a julgar pelos comentários e reações nas mídias sociais, embora a morte da rainha Elizabeth II seja lamentável, a perspectiva sobre sua história é uma questão controversa mesmo entre os adventistas do sétimo dia em todo o mundo.

A história global da falecida rainha Elizabeth II remonta a 1952, quando, após a morte de seu pai, o rei George VI, a jovem de 25 anos foi chamada para assumir o trono. Como rainha da Comunidade Britânica [Commonwealth], ela se tornou chefe da Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Paquistão, África do Sul, Sri Lanka e Reino Unido, bem como a chefe cerimonial de 56 países soberanos adicionais. Seu reinado como monarca constitucional coincidiu com grandes mudanças políticas, como a descolonização da África, a adesão do Reino Unido às Comunidades Europeias e sua saída da União Europeia. O número de seus reinos variou ao longo do tempo, à medida que os territórios conquistaram independência e alguns reinos se tornaram repúblicas. De fato, a história do declínio do Império Britânico, da descolonização da África e do atual Reino Unido não pode ser contada sem ela. Em parte devido à sua longevidade, para muitos britânicos ela continua sendo uma lenda, uma heroína e uma figura notável em sua história.

Há uma questão fundamental: é possível um luto que não higienize a história do imperialismo britânico ou os efeitos diabólicos do colonialismo? O debate que surgiu se concentra no papel desempenhado pelo império britânico no Sul global, e como ele usou a escravidão, a exploração e a pilhagem para crescer. Que a monarquia foi e continua a ser beneficiária do projeto colonial é indiscutivelmente evidenciado por vilas, cidades, hospitais, escolas, ruas e locais turísticos em todo o mundo com nomes de ex-monarcas britânicos, incluindo a rainha Elizabeth II. Para muitos, até mesmo a criação da Comunidade Britânica foi uma tentativa insidiosa dos britânicos de manter o controle sobre as antigas colônias, preservando e protegendo sua influência. Embora sua morte seja muito infeliz, para muitos no Sul, memórias dolorosas de pilhagem, morte, deslocamento e desumanização não podem ser divorciadas de seu reinado ou da história da monarquia. É o que a monarquia representa que irrita muitos, a riqueza obscena adquirida pelo império através da violência e desumanização de milhões em todo o mundo. É por isso que, embora muitos digam sinceramente “descanse em paz”, reconhecem rapidamente que a instituição representada pela rainha Elizabeth II não deixou paz em muitas partes do mundo. Esta não é uma celebração insensível de sua morte, mas um pedido por equilíbrio e honestidade enquanto refletimos sobre seu legado. Os efeitos da monarquia e do Império Britânico continuam a ser sentidos nas ex-colônias. Mas, compreensivelmente, “o que um come a prato pleno, pode ser de outro o veneno”. Portanto, a opressão e exploração obscena sobre a qual a monarquia britânica é construída não pode ser negligenciada, mesmo quando lamentamos a morte de uma irmã, mãe, avó, líder, para alguns.

Portanto, o desafio é que os líderes adventistas em todos os níveis apreciem que a forma como a morte da rainha Elizabeth II é retratada e recebida não é universal. Embora a grande mídia tenha amplificado isso ao nível de um evento global, é necessário cautela para evitarmos ser surdos ou parecer ignorar as dolorosas realidades da história. Muitos nas ex-colônias britânicas viram nossos heróis locais difamados ou ignorados na mídia ocidental, mas agora estão sendo chamados a celebrar a vida de uma pessoa que liderou uma instituição que lhes trouxe miséria. Soma-se a isso toda a ideia de que o privilégio real vai contra o evangelho, que promete liberdade e igualdade. Ter um grupo de seres humanos ainda acreditando ser de nascimento real, crendo possuir algo geneticamente nobre em sua linhagem que lhes dá o direito ao controle, contradiz tudo o que Jesus representa.

Olhando de perto, a rainha Elizabeth II pode ser uma heroína e uma lenda para alguns, mas há uma necessidade de ser sensível com aqueles que veem o contrário. Questões de identidade claramente permanecem sem solução na igreja, e a morte da rainha Elizabeth II expõe ainda mais o quanto estamos polarizados. A raça continua sendo um problema. Muitos na minha parte do mundo, o Sul global, esperam que a igreja reconheça a história, desafie o presente e também dê igual atenção às suas histórias locais.

O conflito na Ucrânia é outro caso em que vimos declarações oficiais e pedidos de oração sendo emitidos pela liderança da igreja, o que não foi o caso com tragédias em outras partes do mundo. Enquanto falamos, o Paquistão está inundado, a África Oriental enfrenta seca e fome devastadoras, o norte de Moçambique permanece instável. Onde estão essas histórias na mídia adventista? Quais líderes da Associação Geral estão falando publicamente sobre esta notícia? São esses dois pesos que cada vez mais convidam a comentários e reações duras dos membros da igreja no Sul global. Há uma agitação para que a igreja fale mais sobre questões de justiça social usando sua influência moral e seu poder de convocação. Se nós, como igreja, podemos “celebrar” o bem em nossa sociedade, devemos igualmente ser honestos e desafiar o mal. Este é um apelo por sensibilidade à necessidade de equilibrar narrativas relacionadas a figuras políticas, independentemente de sua raça, nacionalidade ou como a grande mídia os retrata.

Para aqueles no Sul global, este também é um desafio para contar nossas próprias histórias e celebrar nossos heróis. Que as seguintes palavras de Chinua Achebe, em seu livro intitulado Things Fall Apart (1958), ressoem conosco: “Até que o leão aprenda a escrever, toda história glorificará o caçador”.