Ao contrário das genealogias da época, Mateus apresenta cinco mulheres associadas à prostituição, a maioria de origem estrangeira, fator que aponta à universalidade da graça de Cristo, reconhecida em ambos os Testamentos, desde Agar à mulher samaritana
(Homilia ministrada no dia 12/12 à missão anglicana Maria Madalena).
“O Senhor é minha luz e minha salvação, a quem temerei? O Senhor é a fortaleza da minha vida; de quem me recearei?” (Sl 27.1);1 “A tua casa e a tua realeza subsistirão para sempre diante de ti, e o teu trono se estabelecerá para sempre (1Sm 7.16)”. Estas são as palavras que ecoam no primeiro capítulo de Mateus, uma genealogia que podemos dividir em três grupos de 14 gerações: primeiro subindo de Abraão até Davi; depois sucumbindo de Salomão até o exílio babilônico; para novamente subir até Jesus. Mateus apresenta Jesus como aquele que está no Salmo 27 e como o Messias que estabelece para sempre o reinado da casa de Davi. Tudo isto nos faz ver que a genealogia de Mateus é uma grande apologética de Jesus Cristo, Rei do universo.2
Em Atos 11.1-18, Pedro tem a visão de um grande lençol que descia do céu e ia até as quatro pontas da terra; as quatro pontas representam, evidentemente, universalidade. Pedro então viu tudo aquilo que a lei proibira que um judeu comesse e ouviu o Senhor dizendo “imola e come, Pedro”, ao que Pedro se recusa por considerar tais alimentos impuros. “De modo algum”, diz ele. Ao que tornou a falar, do céu, a voz de Deus: “Ao que Deus purificou, não chames de profano.” Após isto o lençol sobe aos céus e desaparece. É aqui que a genealogia davídica de Mateus é importante. Contrariando os costumes da época, onde as genealogias eram estritamente masculinas, Mateus apresenta cinco mulheres na genealogia de Jesus: Tamar, Raabe, Rute, a mulher de Urias e, por fim, Maria.
Não esqueçamos de que, ao falarmos da antiga Israel, estamos falando de uma sociedade integralmente patriarcal. Apesar de Gênesis 1.26-27 afirmar que a mulher é imagem e semelhança de Deus, assim como o homem, a cultura hebraica daquele período concedia à mulher um direito inferior ao homem. Alguns rabinos chegavam ao extremo de considerar a mulher como desprovida de alma e que era preferível queimar a Lei do que ensiná-la a uma mulher. É por isto que os pais desejavam filhos ao invés de filhas; isto é, por conta do lugar social da mulher na cultura israelita patriarcal. As mulheres só podiam participar de três festas anuais (caso estivessem autorizadas e acompanhadas do marido); da festa dos tabernáculos, da festa anual do Senhor e da Festa da Lua Nova. Pelo código mosaico, um pai endividado podia vender sua filha para quitar uma dívida. Caso a mulher fosse estéril, ela era considerada amaldiçoada por Deus e, em muitos casos, sem ninguém para ampará-la, recorria à prostituição como meio de sobrevivência. E, por fim, era costume a mulher se ausentar do centro da tenda caso o marido recebesse visita.3
E qual o significado, portanto, que Mateus nos aponta com estas quatro mulheres, tirando Maria, mãe de Cristo? Atos 11.15-18 nos relata o seguinte diálogo: “Ora, apenas começara eu a falar, desceu o Espírito Santo sobre ele, como a nós, no princípio. Lembrei-me, então, desta palavra do Senhor: João, na verdade, batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo. Portanto, se Deus lhes concedeu o mesmo dom que a nós, que cremos no Senhor Jesus Cristo, quem seria eu para impedir Deus de agir? Ouvindo isto, […] glorificaram a Deus, dizendo: ‘Logo também aos gentios Deus concebeu o arrependimento que conduz à vida’.” Isto, no entanto, já nos é mostrado quando percebemos que as quatro mulheres da genealogia de Mateus são gentias, o que significa a universalidade da graça de Cristo: ele nascerá para todos e todas de todos os lugares da terra, como nos diz Isaías ao falar de Sião.
Mas não é só isto. Todas estas quatro mulheres sofreram com a sociedade patriarcal de sua época. Tamar precisou se tornar prostituta para valer seu direito de herança e esposa. Raabe era uma prostituta, embora seja lembrada no segundo testamento três vezes por sua fé, não por sua prostituição. Por isso, é bom não esquecermos: há uma prostituta na genealogia de Jesus. A mulher de Urias — assim Mateus se refere a Bate-Seba, lembrando-nos que ela foi vítima de um abuso sexual graças ao poder do rei Davi. Ela não é posta na genealogia como a mãe do grande rei Salomão, ou como uma grande e sábia rainha, mas sim como aquela que, graças ao abuso sexual que sofrera, viu seu marido, Urias, a quem ela tanto amava, ser morto. Deste modo, as mulheres na genealogia de Mateus nos remetem, por um lado, à Nova Aliança; por outro, remetem à opressão feminina que Deus veio destruir. É por isto que a primeira palavra do anjo à mulher, mãe de nosso Senhor, é: “Alegra-te” (chaire, do grego Χαῖρε). Maria, sendo a última mulher da genealogia, se alegrará porque, por meio dela, Cristo irá romper com as cadeias patriarcais que oprimiram todas as outras quatro mulheres da genealogia. “Alegra-te, cheia de graça” (do grego χαρά [chara] = alegria; χάρις, [charis] = graça) são palavras formadas da mesma raiz. Na alegria existe a graça universal, na graça universal existe alegria, e nenhuma delas pode existir enquanto uma mulher for oprimida pelo patriarcado.
Hoje, na segunda semana do advento, lembramos que a graça universal e o fim do patriarcado já eram anunciados na própria genealogia de Jesus. Antes mesmo que ele nascesse, Tamar, Raabe, Rute e a mulher de Urias anunciavam as boas novas que Cristo nos traria, bem como o fim de toda estrutura que subordinasse as mulheres aos poderes masculinos, colocando-as, como vemos no exercício do ministério de Jesus, em pé de igualdade com os homens, pois ambos são imagem e semelhança de Deus. Este dia de advento deve nos impelir à ação: as boas novas estão sendo transmitidas para todas as pessoas? Existem grupos que são excluídos e subordinados a lógicas e estruturas de opressão dentro e fora das igrejas? A mulher tem o direito de exercer o seu pleno direito de igualdade em nossas congregações e também nas organizações civis? Somos convidados a agir por isto antes mesmo do nascimento de Cristo, e é por este caminho que, logo adiante, Jesus trilhará o seu ministério.
Khaire, cheia de graça!
Assim, um dos aspectos determinantes das mulheres na genealogia messiânica é que por meio delas podemos compreender a universalidade da graça de Cristo e a incompatibilidade do patriarcado com esta graça. A hipótese do nosso texto é a de que Deus não faz apenas uma aliança com Abraão, mas também com Agar, e que a promessa feita com Agar já nos mostra, em Gênesis, que a graça de Cristo também precisa alcançar todos aqueles e aquelas para quem a Torá não foi revelada, tal como as mulheres na genealogia de Mateus: tornando visível a graça universal de Jesus Cristo, de algum modo estas mulheres aludem à aliança de Deus com a escravizada egípcia, outra mulher para quem o Senhor se revelou. Encontramos um forte eco deste pensamento em Romanos 12.12-15, quando Paulo nos diz que
Portanto, todos aqueles que pecaram sem Lei, sem Lei perecerão; e todos aqueles que pecaram com Lei, pela Lei serão julgados. Porque não são os que ouvem a Lei que são justos perante Deus, mas os que cumprem a Lei é que serão justificados. Quando, então os pagãos, não tendo lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles, não tendo lei, para si mesmos são Lei; eles mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho sua consciência e seus pensamentos que alternadamente se acusam ou defendem.
O versículo 15, em que Paulo fala da “lei gravada em seus corações” é uma alusão a Jeremias 9.24-25, onde Deus, na boca do profeta, diz:
Eis que dias virão — oráculo de Iahweh — em que visitarei todos os circuncisos no prepúcio: Egito, Judá, Edom, os filhos de Amon, Moab, todos os que têm as têmporas raspadas, que moram no deserto. Porque todas estas nações e toda a casa de Israel são incircuncisas de coração.
Aqueles que “têm as têmporas raspadas, que moram no deserto” são os descendentes de Agar, os filhos de Ismael, o povo árabe. Este trecho do livro de Jeremias é fascinante porque nele encontramos um Deus que julgará a todos, até mesmo os que não possuem a lei escrita, porque a todos ele inscreveu sua lei no coração, de modo que ninguém pode se declarar inocente diante de Iahweh. Aqui, acompanho integralmente o que fala o comentador da Bíblia de Jerusalém: “a Lei não é princípio de salvação, mas guia — neste sentido, a lei natural, inscrita no coração de todo homem, pode substituí-la”. Deste modo, estou bastante certo de que a aliança com Agar, sendo ela uma estrangeira cuja descendência não terá a Lei escrita da Torá, faz com que Deus, sendo aquele que jamais esquece nenhuma promessa, seja bondoso a ponto de dar uma lei inscrita no coração dos povos gentios, estrangeiros. No entanto, sendo a graça o meio universal em razão do qual todos podem beber da água de Cristo, a própria lei, estando escrita ou inscrita, precisa ser substituída por um novo princípio, um princípio de vida que apenas por meio da ressurreição de Deus se pode alcançar.
As mulheres na genealogia de Cristo, representando a universalidade da graça de Cristo, significam, portanto, o signo em vista do qual Jesus passa a ser a singularidade em que todos e todas podem se fazer corpo. No entanto, ainda há mais: e Maria? Todas as quatro mulheres que se encontram na linhagem de Cristo são estrangeiras, mas e Maria? Ela não era uma judia pobre de Nazaré? É verdade! Contudo, ao pensarmos em Maria, a primeira tarefa que precisamos nos colocar é a de entender o próprio significado do seu nome. O que Maria quer dizer? Ao olharmos a origem de tal nome, não podemos esquecer duas das principais possibilidades etimológicas para a raiz do nome hebraico מרים (Maryam), o nome da irmã de Moisés: a primeira é que ela pode ter origem na palavra egípcia mry (“amada”) e mr (“amor”); a segunda é que ela pode vir das palavras assírias Yamo Mariro (Yam Mar formam Maryam).4 De qualquer modo, caso seu nome esteja de acordo com a primeira possibilidade, então devemos dizer que o nome da mãe de Deus é de origem gentia, mais precisamente egípcia, tal como Agar também foi. Mas, caso a segunda alternativa seja a mais adequada, então Maria tem o seu nome originado da região onde existiam “os povos incircuncisos no coração”, para quem a graça aponta em Romanos. O nome Agar tem origem árabe هَاجَر (Ayar), que significa recompensa preciosa, tal qual a recompensa de Maria em Jesus, ou também pode ser lido como Hajar, aquela que emigra, tal qual a migração de Maria para Belém,5 além, claro, das duas serem agraciadas por uma teofania. De uma forma ou de outra, seja etimologicamente ou nas ações e aparições de Deus a cada uma, Maria está inscrita na descendência de Agar. Mas existem ainda outros elementos que Maria nos oferece. Ao terminar de examinar a descendência cristológica, Ratzinger nos coloca algumas importantes observações:
Mas, acima de tudo, a genealogia termina com uma mulher — Maria — que, na realidade, constitui um novo início e relativiza a genealogia inteira. Através de todas as gerações, tal genealogia avançara seguindo o esquema: “Abraão gerou Isaac…”; no final, porém, aparece uma coisa muito diversa. Relativamente a Jesus, já não se fala de geração, mas afirma-se: “Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado Cristo” (Mt 1.16). Na narrativa seguinte do nascimento de Jesus, Mateus nos diz que José não era o pai de Jesus, tendo ele a intenção de repudiar Maria em segredo por causa do suposto adultério; e então lhe foi dito: “O que nela foi gerado vem do Espírito Santo” (Mt 1.20). Assim, a última frase dá uma nova orientação para toda a genealogia. Maria é um novo início; o seu filho não provém de um homem, mas é uma nova criação: foi concebido por obra do Espírito Santo […] A genealogia dos homens tem a sua importância no que diz respeito à história do mundo. E, apesar disso, no fim das contas é em Maria, a Virgem humilde de Nazaré, que acontece um novo início: recomeça de modo novo o ser humano.6
A interrupção do modelo genealógico em Maria, onde Mateus deixa claro que não foi José que gerou Cristo, mostra que é por meio desta interrupção, este “curto-circuito”, para usar um vocabulário mais próximo da psicanálise, que tudo recomeça. Aqui, uma mensagem geralmente passa despercebida: se José não gerou Jesus, então Cristo só passa a fazer parte da genealogia de Davi por adoção; mesmo que Maria esteja na linhagem davídica, para ser filho, Jesus precisava da adoção e aceitação de José, do contrário, essa linhagem de nada serviria e Maria seria chamada prostituta. Por isso, não é o sangue, o gene, o DNA de Jesus que faz dele o Messias — é a própria eclosão da lógica sanguínea e etnológica que faz dele o Rei —, mas o fim deste signo cujo laços de sangue, nacionais e culturais determinam o conjunto dos filhos de Deus. Sua aliança tal como vista por Israel é interrompida… em Maria. É por ela aceitar, de livre e espontânea vontade, ser a mãe do Messias, que esta lógica racial e tribal pôde, na história da humanidade, ser vista como irracional, dando origem a uma vida onde todos são um só em Cristo Jesus, independente do seu lugar, sua cultura, raça, etnia ou orientação sexual.
Saindo um pouco do terreno genealógico de Mateus, vamos caminhar até o momento de anunciação de Deus a Maria, em Lucas 1.28-42. Mais uma vez, de modo abrupto, somos levados a mais uma alusão aos gentios: “Alegra-te (do grego Χαῖρε, chaire), cheia de graça, o Senhor está contigo” (Lc 1.28). A palavra usada pelo anjo Gabriel para saudar Maria deveria ter sido šālōm (do hebraico שָׁלוֹם, “a paz esteja convosco”), tal como o costume judeu daquela época. No lugar disto, o anjo vem lhe anunciar Deus-filho com a saudação grega, ou seja, de um vocabulário estrangeiro, chaire. Também é importante lembrar que a palavra chaire é correlata de charis (do grego χάρις, “graça”), também usada pelo anjo (“cheia de graça”). Charis é exatamente a mesma palavra que o segundo testamento utilizará para significar a graça de Cristo, a sua salvação. chaire (“alegra-te, Maria”) charis (“que Deus te escolheu para alimentar a graça em teu peito”). Impressiona, mais uma vez, que seja na mulher Maria que a graça universal é expressa, tal como em Agar e na genealogia de Mateus.
Uma viagem inesperada
Chegou, então, a uma cidade de Samaria, chamada Sicar, perto da região que Jacó havia dado a seu filho José. Ali se achava a fonte de Jacó. Fatigado da caminhada, Jesus sentou-se junto à fonte. Era por volta da hora sexta. Uma mulher da Samaria chegou para tirar água. Jesus lhe disse: “Dá-me de beber!”. Seus discípulos haviam ido à cidade comprar alimento. Diz-lhe, então, a samaritana: “Como, sendo judeu, tu me pedes de beber, a mim que sou samaritana?” (os judeus, com efeito, não se dão bem com os samaritanos) (Jo 4.5-9).
Antes de nos concentrarmos de modo pormenorizado na relação do que expomos brevemente na introdução com a aliança feita por Deus com Agar, gostaria de utilizar, como mediação, João 4. Logo no início, um gesto feito por Jesus chama nossa atenção: “Uma mulher da Samaria chegou para tirar água. Jesus lhe disse: “Dá-me de beber!” (Jo 4.7). Aqui, Deus, Criador do universo, Aquele que tem todo o poder, pede água humildemente a uma mulher samaritana, colocando-se, na relação dialógica que acabara de inaugurar, na posição de servo. Quando pedimos algo a alguém, nos colocamos, imediatamente, na posição de quem precisa de algo, na posição de alguém que necessita de uma coisa que nos falta; ao mesmo tempo, colocamos a pessoa a quem pedimos na posição daquele que pode suprir esta falta. Já na frase inaugural do diálogo (“Dá-me de beber!”) Jesus opera uma inversão completa dos papéis que geralmente são atribuídos na relação entre Deus e ser humano. Neste momento, Jesus, Deus, precisa de algo que apenas ela, naquele instante, pode lhe dar: água. É o próprio Deus quem se coloca nesta posição; afinal, ele poderia esperar, tranquilamente, que os seus discípulos voltassem da cidade e lhe dessem de beber. mas Jesus se coloca, livremente, na posição de quem necessita de uma coisa tão básica para a sobrevivência humana, e põe alguém de quem ninguém pediria nada na posição de quem poderia saciar a sua falta.
A frase inaugural de Jesus dita o terreno em razão da qual ocorrerá o diálogo entre ele e a mulher samaritana. E é apenas a partir desta posição que, logo em seguida no capítulo, Jesus irá subverter estes termos iniciais para mostrar que também tem algo para oferecer à mulher. No entanto, Jesus só faz isso ao se colocar, primeiramente, no lugar do servo que pede. É importante notar esta inversão de papéis para entendermos como, neste capítulo, o evangelista nos põe diante de uma cena-padrão que faz claras referências às narrativas veterotestamentárias. Trata-se da típica cena que alude a um encontro matrimonial. A cena-padrão do encontro matrimonial, tal como descrito no primeiro testamento, nos mostra os seguintes elementos aparecendo respectivamente, tal como apresentados a seguir:
- Um homem (o noivo) viaja por território estrangeiro;
- O viajante se detém sempre junto ao poço;
- Ele se encontra com uma mulher da região junto ao poço;
- Algum deles tira água do poço; normalmente este ato está atrelado a um favor que algum deles faz ao outro;
- Eles conversam no local e nessa conversa se identificam;
- A mulher corre para casa e conta à família sobre seu encontro com o viajante;
- O viajante é recebido e começam as negociações para o casamento deles.7
Robert Alter8 baseia esta cena-padrão em quatro casos. O primeiro deles é o casamento de Isaque e Rebeca (Gênesis 24). É necessário acrescentar, contudo, que os elementos citados podem sofrer alterações, as quais também dizem muito sobre os personagens envolvidos. Deste modo, podemos, por exemplo, ver algumas diferenças. Comparemos o caso de Rute e Boaz (Rt 2.1-4,13), por exemplo, com o de Moisés (Êx 2.15-21). Rute era uma estrangeira em terra desconhecida; Moisés era um estrangeiro que havia fugido do Egito — ambos se adequam ao (1). Moisés se senta num poço em Midiã e livra sua futura desposa de homens que a importunavam; Rute não vai a um poço, mas a um campo de espigas, onde encontra o seu futuro esposo (2). Rute conversa com Boaz que lhe dá um presente (3, 4, 5); Moisés deseja beber água, mas não conversa com a sua futura esposa, o que marca mais uma alteração (3, 4). A moça volta a sua família, conta sobre Moisés ao seu pai, e este vai ao seu encontro para lhe dar a filha como esposa (6, 7); Rute volta à casa de Noemi, que a instrui sobre o casamento, e Boaz vai negociar a consumação do matrimônio (6, 7). O primeiro caso examinado por Robert Alter é o de Isaque e Rebeca. Ao que tudo indica, esta narrativa também obedece a esta cena-padrão.
O primeiro caso de cena-padrão de casamento no Antigo Testamento ocorre em Gênesis 24, no casamento de Isaque e Rebeca. Percebe-se também uma peculiaridade no relato: não é Isaque quem vai à cidade da noiva, mas é Eliezer, servo de Abraão, seu pai, que o representa. Todavia, ainda que Eliezer o represente, podemos verificar no relato a seguinte sequência: ele é estrangeiro e encontra Rebeca junto a um poço (esses são os elementos 1, 2 e 3 que constituem a cena-padrão). Rebeca, como era de se esperar, tira água para ele e seus camelos (4), depois eles conversam e o homem diz que é servo de Abraão, tio de Rebeca (5). A moça então corre até sua casa e conta tudo à família (6). Logo eles começam a negociar o casamento e Rebeca é levada até Isaque, consumando-se a união matrimonial (7). O padrão é seguido quase que estritamente nesse exemplo; a única diferença foi encontrada na substituição do noivo por um servo (1), algo que condiz com a passividade de Isaque como personagem.9
Além destes três exemplos, Robert Alter também cita o casamento entre Jacó e Raquel (Gn 29.1-20). Embora considere bastante sólida a argumentação para se interpretar João 4 a partir desta cena-padrão de matrimônio veterotestamentária, acredito que o significado teológico de João 4 só ficará realmente manifesto se acrescentarmos mais um caso a esta série de exemplos. A cena-padrão que nos permite compreender o relato sobre Jesus em Samaria não conta a história de um matrimônio, tal como nos tipos apresentados anteriormente. Trata-se de um caso que antecede, na cronologia do Gênesis, todos os quatro episódios trazidos em nossa argumentação, antecipando e criando as próprias condições para aquilo que João está nos apresentando. Assim, acredito que a viagem de Jesus a Samaria só é bem compreendida numa relação com a história da aliança — no caso, da aliança de Iahweh com Agar.
Quando Agar encontra Cristo
Somos apresentados a história de Agar em Gênesis 16.1-15.10 Egípcia escravizada, ela foi comprada por Sarai, esposa de Abrão. Como é notório, Iahweh havia feito uma Aliança com Abrão, selada com a seguinte promessa: “a tua posteridade darei esta terra, do rio do Egito até o Grande Rio, o rio Eufrates” (Gn 15.17). Mas sua esposa, Sarai, não podia ter filhos, pois ambos já eram velhos. Diante deste cenário, Sarai pede que o seu marido engravide Agar. É importante notarmos que a palavra שִׁפָּה (šipāh), que traduzimos por “escravizada”, é correlato de מִשְׁפָּחָה (mišpāḥā), que pode ser traduzido como “clã” ou “núcleo familiar”. Isto significa que, na condição de escravizada que participava do núcleo familiar do clã, Agar poderia participar da “família” de duas formas: a primeira era que, em sua condição de šipāh, ela poderia ser dada de presente para uma filha quando ela se casasse (Gn 29.24-29); a segunda forma era que, caso a šipāh pertencesse a uma mulher estéril, ela poderia entregar a escrava ao seu marido com o objetivo de adquirir um filho por meio da šipāh (Gn 16.2; 30.3-4). Caso a šipāh desse a luz a um homem, ele seria o herdeiro, a menos que, mais tarde, a própria esposa tivesse também um filho. Neste caso, o filho da escravizada perderia o seu lugar enquanto filho e enquanto herdeiro. Este costume, hoje estranho, estava justificado pela lei de Nuzi e também pela legislação mesopotâmica do Código de Hamurábi.
As leis de Nuzi, especificamente as relacionadas aos contratos de casamento, mencionam um caso semelhante ao de Sarai e Hagar. A noiva Kelim-ninu havia garantido ao seu noivo, Shennima, sob forma escrita, que daria a ele uma escrava, como segunda esposa, se ela mesma não lhe desse filhos. E também prometeu que não expulsaria de sua companhia a prole de tal união. Em nenhum outro período da história, salvo na era patriarcal, podemos encontrar tão estranho costume.11
O caso de Agar e Sarai também se encontra justificado no Código de Hamurábi:
Comentando sobre o contexto cultural da época de Abraão, Santos Benetti afirma que Abraão e Sara aplicaram literalmente a legislação mesopotâmica do Código de Hamurabi. Segundo Benetti: em tendência monogâmica que concede ao marido o direito ao repúdio se a mulher for estéril. A mulher pode evitar esta situação dando-lhe uma escrava para que engendre filhos. O marido pode tomá-la como concubina, esposa de segunda ordem, ou mantê-la como escrava fora da tenda ou casa. Claro que a lei prevê que, quando a escrava, ao ter o filho desejado, se levantar “como rival da senhora; então esta não poderá mais vendê-la, mas sim marcá-la e contá-la como uma de suas escravas.12
Assim, embora a história de Agar seja de uma escravizada egípcia, não devemos esquecer de uma coisa: toda a sua opressão foi produzida debaixo da Lei de sua época, sob a qual Abrão e Sarai também estavam. Voltando à narrativa de Gênesis, nos é contado que Agar engravidou de Abrão. No entanto, Sarai, após Agar engravidar, diz que a escravizada passou a olhar com desprezo sua senhora, e, como já vimos, a lei lhe dava o direito de “marcá-la” caso a shipha se “levantasse” contra a sua dona. Por isto, respaldada na lei, Sarai עָנָה (‘ānā, “torturou”, “humilhou” fisicamente e psicologicamente) Agar. A palavra ‘ānā, geralmente traduzida por “maltratou”, não condiz com o real significado do que foi infligido à egípcia. O termo ‘ānâ é utilizado na Bíblia em Êxodo 1.1, com o objetivo de mostrar as torturas ao qual estava submetido o povo judeu nas mãos dos egípcios. É por isto que ‘ānā não representa tão somente um “maltratar”, mas sim uma tortura física e psicológica de dimensões gigantescas, do tipo de tortura que apenas os escravizados sofriam nas mãos dos seus senhores e senhoras. Esta crueldade de Sarai para com Agar foi de tamanha perversidade que ela fugiu. Após sua fuga,
O anjo de Iahweh a encontrou perto de certa fonte no deserto, a fonte que está a caminho de Sur. E ele disse: “Agar, serva de Sarai, de onde vens e para onde vais?” Ela respondeu: “Fujo da presença de minha senhora Sarai”. O anjo de Iahweh lhe disse: “Volta para a tua senhora e sê-lhe submissa.” O anjo de Iahweh lhe disse: “Eu multiplicarei grandemente a tua descendência, de tal modo que não se poderá contá-la.” O anjo de Iahweh lhe disse: “Estás grávida e darás à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Ismael, pois Iahweh ouviu a tua aflição. Ele será um potro de homem, sua mão contra todos, a mão de todos contra ele; ele se estabelecerá diante de todos os seus irmãos”. A Iahweh, que lhe falou, Agar deu este nome: “Tu és EL-ROÍ, pois, disse ela, “vejo eu ainda aqui, depois daquele que me vê?” Foi por isso que se chamou a este poço de poço de Laai-Roí; ele se encontra entre Caldes e Barad. Agar deu à luz a um filho a Abrão, e Abrão deu ao filho que lhe dera Agar o nome de Ismael (Gn 16.7-15).
(Quase) tudo está aqui. Agar é uma mulher egípcia que, contra a sua vontade (sendo escravizada), viaja para um território estrangeiro (1). Após ser maltratada por Sarai, ela foge da presença de sua senhora, e, agora, passa a se encontrar junto a um poço (2). O anjo de Iahweh13 a encontra e eles conversam; nesta conversa não apenas existe uma identificação, mas uma aliança é formada (3, 5). Ela volta para a casa de sua senhora (6) e concebe Ismael. No entanto, ainda faltam 2 elementos, isto é, o item 4 (algum deles tira água do poço; normalmente este ato está atrelado a um favor que algum deles faz ao outro) e o 7 (o viajante é recebido e começam as negociações para o casamento). Também poderíamos problematizar o item 6, afinal, a casa de Agar era no Egito, de forma que o retorno para a casa de Sarai não é um retorno para a sua própria casa. No entanto, em Gênesis 16 temos apenas um fragmento da narrativa, uma parte da história que é concluída no capítulo 21.8-20. Depois que Agar deu à luz a Ismael e Sarai concebeu Isaque:
Sara percebeu que o filho nascido da egípcia Agar, brincava com seu filho Isaac, e disse a Abraão: “Expulsa esta serva e seu filho, para que o filho desta serva não seja herdeiro com meu filho Isaac”. Esta palavra, acerca de seu filho, desagradou muito a Abraão, mas Deus lhe disse: “Não te lastimes por causa da criança e de tua serva: tudo que Sara te pedir, concede-o, porque é por Isaac que uma descendência perpetuar o teu nome, mas do filho da serva eu farei uma grande nação, pois ele é da tua raça”. Abraão levantou-se cedo, tomou o pão e um odre de água que deu a Agar; colocou-lhe a criança sobre os ombros e a mandou embora. Ela saiu andando errante no deserto de Bersabeia. Quando acabou a água do odre, ela colocou a criança debaixo de um arbusto e foi sentar-se defronte, à distância de um tiro de arco. Dizia consigo mesma: “Não quero ver morrer a criança!” Sentou-se defronte e se pôs a gritar e chorar. Deus ouviu os gritos da criança e o anjo de Deus, do céu, chamou Agar, dizendo: “Que tens, Agar? Não temas, pois Deus ouviu os gritos do menino, do lugar de onde ele está. Ergue-te! Levanta a criança, segura-a firmemente, porque eu farei dele uma grande nação”. Deus abriu os olhos de Agar e ela enxergou um poço. Foi encher o odre e deu de beber ao menino. (Gn 21.9-21)
Agora sim temos o quadro completo da narrativa e do encontro matrimonial. Novamente, Agar se encontra no deserto após ser expulsa da tenda do seu clã. No entanto, dessa vez, os elementos que faltavam (Agar tirar água do poço e o seu retorno para sua verdadeira casa, sem ser como escravizada) finalmente nos é mostrado. Aqui algo deve, ainda, nos inquietar: Deus abriu os olhos de Agar e ela enxergou o poço; só após isto, como um favor do Senhor para ela, foi que o seu filho pôde beber das águas concedidas por Deus. A questão é que o poço já estava lá, o favor de Deus para com Agar já havia se presentificado, mas a sua tristeza e desespero não lhe deixavam ver o poço. Mas Deus abriu os seus olhos, ela o viu, e lhe foi retirar água. E o que significa esta água, caso a enxerguemos por meio da cena-padrão do encontro matrimonial? Ela quer dizer vida! Não é isto que Jesus fala para a mulher samaritana? E não é a água o elemento principal que dá origem ao seu diálogo junto ao poço (“Dá-me de beber!”)?
No primeiro testamento, Deus é a fonte de águas vivas: “Eles me abandonaram, a mim, fonte de água viva” (Jr 2.13); “Eles ficam saciados com a gordura de tua casa, tu o embriagas com um rio de delícias; pois a fonte da vida está em ti” (Sl 36.9-10). Aqui há ainda um belo contraste. Em Gênesis 16, embora Agar já estivesse junto ao poço, ela não bebe da sua água e retorna, após sua aliança com Deus, para junto de sua senhora. Já em Gênesis 21, Agar não vê o poço, entra em desespero, e o Senhor, renovando sua aliança, mostra o poço que ela ainda não tinha visto; ela bebe da água dada por Deus e toma o seu caminho como uma mulher livre, sem ser mais uma escravizada e sem possuir nenhuma senhora, pois aquele que bebe da água do Senhor “nunca mais terá sede. Pois a água que eu lhe der tornar-se-á nele fonte de água jorrando para a vida eterna” (Jo 4.14).
A aliança de Deus com Agar é selada após o Senhor lhe dar de beber junto ao poço, pois, ela, tendo sede, foi até o Senhor e nele encontrou sua salvação. Falando de que modo João 4 estabelece a cena-padrão em razão do qual lemos o relato bíblico sobre Agar, não nos restam muitas dúvidas: (1) Jesus é um estrangeiro que viaja até Samaria; (2, 3) Jesus decide descansar junto ao poço; (4) a mulher samaritana deixa o seu cântaro como favor a Jesus enquanto vai chamar os outros; (5) a mulher diz que não tem marido e Jesus revela que sabia de toda a vida da mulher, e nisto se identificam; (6) a mulher samaritana retorna para casa e fala do seu encontro à família; e (7) o povo samaritano foi ter com Jesus. Mais importante, a percepção das histórias de Agar e da mulher samaritana como parte desta cena-padrão possui profundo valor teológico: esta cena representa o encontro do Messias com “a mulher estrangeira”, para quem a Torá, enquanto Lei de Deus, não existia — para quem a aliança, tal como habitualmente compreendida, não se estendia. Mas se Deus também fez uma aliança com Agar, uma mulher escravizada egípcia, ele também veio para cumprir a promessa de jorrar a água da vida eterna para todas as pessoas, independente de etnia, identidade, gênero ou cor. Do poço de Cristo todas as pessoas têm o direito de beber, graças a sua Aliança com Agar.
Notas:
1.↑ As citações bíblicas foram retiradas de A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1995.
2.↑ RATZINGER. A infância de Jesus. Editora Planeta, São Paulo. 2012.
3.↑ BENTHO, A família no antigo testamento. CPAD: São Paulo: 2006, p. 200.
4.↑ MAAS, Anthony. The Name of Mary: The Catholic Encyclopedia. Vol. 15. New York: Robert Appleton Company, 1912. https://www.newadvent.org/cathen/15464a.htm
5.↑ CABELLO, Pilar Yuste. Agar em ti. Editorial San Pablo: Espanha: 2021, p. 7-8.
6.↑ RATZINGER. A infância de Jesus. Editora Planeta, São Paulo. 2012, p. 14.
7.↑ ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Companhia das letras, 2007.
8.↑ Ibidem.
9.↑ Ibidem.
10.↑ Na verdade, é muito provável que Agar estivesse entre as escravizadas egípcias que foram entregues a Sarai e Abrão em Gênesis 12.16, junto com camelos, ovelhas, jumentos… Enfim, dada como um objeto a ser utilizado.
11.↑ BENTHO, A família no antigo testamento. CPAD: São Paulo: 2006, p. 29.
12.↑ Ibidem.
13.↑ E aqui é impossível não notarmos a semelhança entre Agar e Maria mediante a manifestação de Iahweh por meio de uma teofania.