Ao debater a polêmica de Atkinson, especialistas em história do adventismo concluem que o envolvimento de Tiago e Ellen White com o evento era marginal, mas que o adventismo provavelmente nasceu de um berço carismático e amadureceu com o tempo
Ellen G. White e as noites de Atkinson (Parte 2)
Por Jonathan Butler, Ronald Graybill, Frederick Hoyt e Rennie Schoepflin | Texto editado por Rennie Schoepflin, traduzido e adaptado do original em inglês1 para a revista Zelota por André Kanasiro.
Edição sobre imagem publicada na Revista Adventist Currents, 1988 (Por Jayder Roger)
Vários dos historiadores que mais ativamente publicam e pesquisam material sobre a história dos adventistas do sétimo dia passaram horas analisando a importância do relato do julgamento de Israel Dammon, publicado anteriormente. Frederick Hoyt, professor de história e ciência política na Universidade de Loma Linda, descobriu o relato quatro anos antes, e ficou tão perturbado com o que encontrou que seus colegas na historiografia adventista só descobriram a reportagem esse ano [1987]. Eles o leram poucas semanas antes de se reunirem para conversar. Rennie Schoepflin, professor assistente de história na Universidade de Loma Linda, editou as extensas transcrições de suas conversas gravadas, e recebeu permissão de todos os participantes para a publicação da mesa redonda, conforme consta abaixo.2
Jonathan Butler, professor visitante na Universidade da Califórnia em Riverside, tem um mestrado em divindade pelo Seminário Teológico da IASD na Universidade Andrews, e fez seu doutorado com Martin E. Marty na Universidade de Chicago antes de ensinar história religiosa norte-americana no Union College e na Universidade de Loma Linda. Ele publicou muitos artigos sobre história adventista em periódicos como Church History e o volume de ampla recepção organizado por Edwin Gaustad, The Rise of Adventism: Religion and Society in Mid-Nineteenth-Century America (Nova Iorque: Harper & Row, 1974). Ele coeditou The Disappointed: Millerism and Millenarianism in the 19th Century (Bloomington: Indiana University Press, 1987), e atualmente está escrevendo um livro chamado Ellen G. White and Victoriam America: A Study of Prophecy, Culture, and Social Change.
Ronald Graybill, professor associado de história na Universidade de Loma Linda, tem um mestrado em divindade pelo Seminário Teológico da IASD e fez seu doutorado com Timothy Smith, na Universidade John Hopkins. Durante 13 anos, até 1984, Graybill trabalhou no Centro Ellen G. White em Washington, D.C. Além de dezenas de artigos, ele escreveu Mission to Black America: The True Story of James Edson White and the Riverboat Morning Star (Mountain View: Pacific Press Publishing Association, 1971). No momento ele está escrevendo um ensaio sobre a guarda legal dos fanáticos adventistas antitrabalho nas décadas de 1840 e 1850, e preparando um curso por correspondência sobre “O dom da profecia”.
Frederick Hoyt, professor de história e ciência política na Universidade de Loma Linda, fez seu doutorado na Escola Claremont de Pós-graduação. Posteriormente recebeu uma bolsa Fulbright para estudar mais profundamente a área de sua dissertação, história diplomática filipina. Por muitos anos ele se concentrou no período e local em que Ellen Harmon e o adventismo emergiu do millerismo – o norte da Nova Inglaterra, em meados dos anos 1840. A partir de uma vasta quantidade de fontes originais que examinou – jornais, dados de tribunais, registros eclesiásticos – Hoyt está preparando um estudo que ele pretende chamar de Growing Up Down East. Este vai recontar qual era a impressão que os adventistas davam a seus contemporâneos.
Rennie Schoepflin edita a seção de resenha de livros da Spectrum, além de ensinar história na Universidade de Loma Linda. Como um dos poucos historiadores da ciência no sistema educacional adventista, Schoepflin foca na história social e intelectual estadunidense. Além de pesquisar os missionários médicos do início do adventismo, ele está terminando sua dissertação de doutorado, The Theory and Practice of Christian Science Healing in Progressive America, na Universidade de Wisconsin.
Os editores [Spectrum Magazine]
No começo eu não conseguia lê-lo
Butler: Fred, como você encontrou essa transcrição do julgamento de Dammon?
Hoyt: Eu estava olhando todos os jornais em Maine no período de 1827-1846, para ver se eu conseguia encontrar referências ao início da vida de Ellen G. White na imprensa secular. Eu não tinha nenhum motivo em particular ao ler esse jornal, o Piscataquis Farmer. De fato, eu não encontrei nenhuma referência a ela pelo nome até ler este documento, e fiquei chocado com o que eu encontrei.
Graybill: Quando você achou esse documento, e por que não ouvimos nada a respeito dele antes?
Hoyt: Eu obtive o documento há cerca de quatro anos. Bem, eu acho que há muitos motivos pelos quais eu não o compartilhei. Em primeiro lugar, eu acho que não sabia como lidar com ele. De fato, quando eu o vi pela primeira vez na leitora de microfilme, eu não conseguia lê-lo. Primeiro, ele se referia a uma mulher no chão com um travesseiro sob a cabeça que alegava ter tido uma visão. Algo me disse, “Você não quer continuar lendo.” Eu simplesmente sabia que essa seria minha primeira notícia de Ellen Harmon em um jornal. Então eu continuei lendo e o texto dizia que ela era de Portland, Maine, mas não dizia seu nome. Você sabe como a reportagem vai crescendo. Ela é muito dramática. E então alguém subitamente deixa escapar que o nome dela é Ellen Harmon. Então eu fechei a leitora de microfilme e chamei minha esposa. E eu disse, “Eu tenho algo aqui, e acho que é melhor você me recomendar não lê-lo.” E ela achou que isso era besteira. Então eu voltei e tentei lê-lo novamente. Eu não cheguei ao nome Ellen Harmon até, creio eu, a terceira tentativa. E então eu o li e disse, “Bem, agora já era.” Sabe aquela sensação peculiar que você sente, tipo eu vou ler sobre o meu pai estar na cadeia ou algo do tipo? Sabe essa sensação? Mas ali estava eu.
Graybill: Mas hoje, tendo estudado mais sobre o cenário da época, você não tem o mesmo tipo de reação, não é?
Hoyt: Não. Quando vocês me disseram que não ficaram nem um pouco chocados quando leram o texto, eu me achei bastante imaturo.
Graybill: A história apareceu em outros lugares? O quanto ela circulou na época?
Hoyt: Sim, ela apareceu em outros jornais da época. Eu tenho a história em um ou dois jornais de Boston, em um jornal de Portland, de alguns outros jornais de Maine, e do estado de Nova Iorque também. É essencialmente o mesmo relato todas as vezes.
Graybill: Eu também noto aqui que em uma notícia no The Midnight Cry, um jornal publicado por Joshua Himes, havia um comunicado avisando as pessoas sobre Israel Dammon, “cujo julgamento foi publicado em todos os jornais”. Então era algo amplamente conhecido, e teria informado a percepção que muitos dos primeiros adventistas e do público tinham de Ellen Harmon. Ao invés das coisas que lemos em Life Sketches,3 esse julgamento em particular formou a imagem pública do que faziam os adventistas em Maine. Eles eram vistos como fanáticos, e Ellen Harmon era vista como um deles.
Schoepflin: Eu não estou tão certo disso. A história do Sr. Dammon pode ter circulado, mas a longo prazo Ellen Harmon é uma personagem bastante pequena nesse julgamento. São as implicações de má conduta sexual que seriam mais escandalosas nessa história, e talvez as visões e o comportamento de Ellen Harmon não tenham recebido tanta atenção.
Graybill: Você pode estar certo, mas tenha em mente também que isso foi publicado em março de 1845, e no fim de abril de 1845 os líderes do movimento millerita, Himes e outros, convocaram a conferência em Albany, na qual condenaram a guarda do sábado, o lava-pés, e visionários. Então, mesmo que eles não estivessem cientes de Ellen Harmon em particular, eles estavam cientes de pessoas em Maine que estavam tendo visões, ficaram incomodados e não queriam ser associados com elas.
Schoepflin: Agora, Fred, você encontrou evidências de outros visionários em Maine além de Harmon e Dorinda Baker, não foi?
Hoyt: Sim, há quatro mulheres das quais sei pelo nome, além de William Foy. Então há cinco mencionados nos jornais que consigo citar de cabeça: Emily Clemons, Dorinda Baker, Phoebe Knapp, Ellen Harmon, e William Foy.
Graybill: Eu também encontrei outra, Mary Hamlin.
Hoyt: Deixe-me acrescentar mais uma coisa sobre a circulação dessa história. O jornal mais importante em Maine, nessa época, era o Eastern Argus, de Portland, Maine. Ele reportou o julgamento menos de uma semana depois. Embora não reportasse todo o julgamento, ele de fato mencionou Ellen Harmon de Portland, e afirmou que “Uma parte das evidências foi omitida, sendo muito nojenta para ser publicada.”
Schoepflin: Nós sabemos que os jornais são notórios por sua alteração dos eventos. Como podemos confiar que o que temos aqui é uma representação acurada o bastante do que aconteceu no julgamento? Você rastreou uma transcrição oficial do julgamento?
Hoyt: Transcrições do julgamento – se é que existiram – não existem mais. O único documento legal que resta é um registro legal do julgamento e da sentença.
Schoepflin: Quais foram as acusações?
Hoyt: Dammon foi acusado de ser “um vagabundo e um vadio, vagando pela vila de Atkinson … de lugar em lugar, pedindo esmolas.” Também foi acusado de ser “um brigão comum, negligenciando seu chamado, ou emprego, desperdiçando seus ganhos”, e de não sustentar “sua própria família, e contra a paz do Estado do Maine, e contrário à forma do Estatuto feito e providenciado em tais casos”.
Butler: Perturbação da paz?
Hoyt: Ele não usa o termo “perturbação da paz.” Isso é o que Ellen G. White usou posteriormente para comentar o julgamento. Mas este provavelmente seria o termo contemporâneo.
Graybill: Quem eram os juízes, os advogados?
Hoyt: Os juízes e advogados pelo estado eram juízes de paz, ou seja, juristas amadores. O único advogado profissional que encontrei foi o que defendeu Dammon, James S. Holmes. Ele era um advogado profissional que divulgava seus serviços no jornal.
Graybill: E quanto ao homem que prendeu Dammon?
Hoyt: Ele era um xerife adjunto.
Schoepflin: Que tipo de pessoa eram as testemunhas?
Hoyt: Elas eram cidadãs locais, todos homens adultos. Eu encontrei 23 das 36 testemunhas no censo de 1840, e cerca de uma dúzia delas está nos jornais da época. Um era um manufatureiro e os outros eram todos fazendeiros, mas isso não era incomum.
Schoepflin: Qual foi a decisão do tribunal?
Hoyt: Culpado. Sentenciado a 10 dias na prisão em Bangor, aparentemente o local mais próximo a ter uma prisão. Mas aparentemente ele nunca foi para lá. Ele apelou, a sentença foi segurada pela apelação até o próximo julgamento do distrito, que seria em maio, antes que o tribunal sequer se reunisse, o caso foi anulado. Holmes tinha assumido esse caso não porque fosse um millerita ou simpático aos milleritas, mas porque achava que era uma clara invasão da liberdade religiosa. Ele era respeitado como um homem de fortes princípios, e só assumiu o caso por isso.
Graybill: Então nesse ponto, pelo menos, o relato do julgamento feito por Ellen G. White em Spiritual Gifts, volume 2, é bastante acurado. Ela simplesmente diz “Acho que os custos do julgamento foram cobrados dele, e ele foi solto.” Ele nunca foi encarcerado por essa acusação.
Hoyt: Sim, ele foi solto. Ele nunca cumpriu nenhuma pena.
O relato tem credibilidade
Butler: Tudo isso é muito interessante, mas para nós os personagens mais importantes não são Dammon ou as testemunhas ou o advogado, e sim os fundadores adventistas do sétimo dia, Tiago e Ellen White, que aparecem nessa transcrição.
Hoyt: Mas não estavam sendo julgados, não estavam lá, e não foram convocados como testemunhas. Acho que isso precisa ficar claro.
Butler: Dammon parece estar lá por ser o líder; ele era o ancião que cuidava das reuniões, então era considerado responsável.
Hoyt: Acho importante notar que Ellen Harmon e Tiago White não estavam em julgamento; não havia qualquer razão para que as testemunhas os atacassem. Eles simplesmente falaram dos dois incidentalmente, então acho que seu testemunho sobre Tiago e Ellen tem que ser levado mais a sério por causa disso. Para mim parece, quando você vai lendo, que as testemunhas eram bastante neutras e justas com Ellen e Tiago. Elas não usavam palavras coloridas ou adjetivos carregados; elas só descreviam.
Butler: Eu também acho que a transcrição tem credibilidade. Havia histórias conflitantes, mas o fato de que havia diferenças de opinião sobre detalhes que meio que foram resolvidos dá credibilidade. Pareceu para mim que havia certo consenso quanto ao que acontecia lá;
Graybill: A mim parece que as testemunhas da defesa corroboram virtualmente todas as acusações das testemunhas de acusação, com exceção da acusação de que Ellen Harmon era chamada de “Imitação de Cristo”.
Hoyt: É verdade, essa expressão enigmática é a única exceção. Então aceitamos que o testemunho do Sr. Dammon no julgamento é em essência acurado.
Graybill: Então temos que assumir que havia alguns beijos acontecendo, gente engatinhando e gritando. No entanto, parece que as testemunhas de acusação tendiam a alegar mais contato físico entre homens e mulheres, como um sentando entre as pernas do outro, ou no colo do outro, e a alegação de irem para a sala dos fundos. A defesa não aceitava nada disso.
Schoepflin: Eu acho que todas as testemunhas concordaram que pessoas se tocavam e sentavam perto umas das outras. A diferença está no significado daquilo. Para as testemunhas de defesa, os toques eram incidentais pelo fato de que a casa estava cheia e muita coisa estava acontecendo. Para as testemunhas de acusação era mais que isso, os toques tinham tons sexuais.
Graybill: Eu acho que as testemunhas de acusação enxergavam as próprias visões como uma espécie de fanatismo.
Schoepflin: Eu também acho.
Graybill: Mas havia uma base teológica para engatinhar e beijar. Eles mesmos argumentaram que a Bíblia diz “cumprimentem todos os irmãos com o beijo santo.” Aparentemente eles também cumprimentavam as irmãs com o beijo santo. Engatinhar, acreditem ou não, tinha uma base bíblica. Se você quer ir para o céu, precisa se humilhar como uma criança pequena, e esse foi o texto que eles usaram. Crianças engatinham, então alguns usavam isso para mostrar que estavam prontos para a vinda de Jesus, e outros, que acreditavam que Cristo já tinha vindo espiritualmente, para mostrar que já estavam no céu.
Schoepflin: Você tem pessoas que estavam tão obcecadas com um tipo de literalismo bíblico que chegavam a extremos absurdos.
Butler: Eu não sei. Eu não estou convencido de enraizar esse tipo de comportamento em literalismo bíblico ou em uma restauração de temas bíblicos. Há, é claro, 19 séculos de literalistas bíblicos, e esses episódios irrompem periodicamente, mas não é biblicismo que cria os latidos, desmaios e outros tipos de êxtase que aconteciam nos Estados Unidos de fronteira.
Schoepflin: Eu concordo com você, Jon, mas temos que lembrar que eles defendiam isso em termos bíblicos.
Butler: Eu acho que eles foram tomados por uma espécie de êxtase. O Espírito estava neles. Eles não precisavam de textos-prova. Eles estavam experienciando. Essa era a Bíblia deles. Não que eles não acreditassem na Bíblia; eles também queriam ser conectados às línguas de fogo no passado. Mas nós queremos mesmo dizer que a diferença em suas demonstrações, ou nas dos Shakers e Metodistas de Kentucky, é que uns eram mais literalmente bíblicos que outros? Eu os vejo mais como parte do mesmo tipo de entusiasmo radical.
Graybill: Eu quero insistir que seu biblicismo é parte do cenário. Eu acho que a Bíblia e sua familiaridade com a Bíblia formaram uma parte importante de suas expectativas sobre como as pessoas devem se comportar sob a influência do Espírito. E isso é particularmente relevante para as visões de Ellen G. White. Gente mergulhada nas profecias de Daniel, lendo que o fôlego de Daniel o deixou, ressoaram com as experiências similares de Ellen G. White.
Butler: Eu não estou discordando de você. Eu só estou meio que te suplementando. Eu acho que casamentos espirituais servem de ilustração aqui. Adventistas tomarem outras mulheres porque já tinham entrado no reino seria, sob a etiqueta social ordinária, promíscuo. Há literalismo bíblico na prática, mas ela pressupõe que o fim já veio e que eles agora estão no novo mundo. Você sabe como opera o literalismo bíblico. Os Shakers, os Mórmons, e os perfeccionistas de Oneida, todos os três justificaram suas visões completamente diferentes da sexualidade e do casamento com o mesmo texto: “nem casam, nem se dão em casamento, mas são como os anjos no céu”. Um diz celibato, o outro diz poligamia, e o terceiro diz casamento complexo. O literalismo bíblico está ali. Mas, em certo sentido, o entusiasmo mata a letra da lei e a substitui com o Espírito, não é?
Graybill: Bem, esse certamente parece o caso no julgamento de Israel Dammon. E se afastar disso pode ter sido a chave para que Ellen G. White emergisse dessa multidão.
Hoyt: Talvez vocês não queiram lidar com o termo fanatismo, mas parece que precisamos de uma definição. Ellen G. White alega que não era uma fanática, mas que estava lutando contra o fanatismo. O que ela quis dizer com isso?
Schoepflin: Fanatismo é comportamento bizarro e extremo.
Graybill: Nós poderíamos tentar posicionar Ellen G. White nos termos dos comportamentos que essas pessoas poderiam considerar fanáticos?
Hoyt: Claro, você pode listá-los.
Grupo: Transes, gritos, rebatismo, engatinhar, rolar no chão, beijar os pés, beijo espiritual (beijo santo), condenação, curas, lava-pés, porta da graça fechada, e não trabalhar.
Graybill: Eu acho que dá para identificar Ellen G. White com gritos, rebatismo, beijo (o beijo santo), transes, porta da graça fechada, e lava-pés. Mas não o lava-pés misto. Mulheres lavam os pés dos homens, mas os homens não lavam os pés das mulheres. É algo muito curioso. Em seus livros publicados ela fala da existência de um precedente bíblico para que mulheres lavem os pés dos homens. Dá para ver que ela está traçando uma linha estrita. Ela está indo o mais longe que consegue. E, é claro, nada de beijar os pés. E quanto a chamar os visitantes de nomes feios, nós não temos Ellen G. White envolvida com isso. Mas nós de fato a temos endossando a porta da graça fechada, seja lá o que isso significa.
Schoepflin: Ela de fato dizia a indivíduos que sua visão lhe mandava dizer que eles iam para o inferno.
Graybill: Essa é uma pergunta que eu tenho. Ellen G. White, em sua autobiografia, fala de uma conversa que teve com sua mãe na infância, não sei quando, na qual ela expressou seu medo do inferno, e sua mãe expressou suas dúvidas sobre um Deus amoroso permitir que pessoas queimassem eternamente, e ela ficou chocada mas aliviada ao ver que sua mãe tinha essas perguntas sobre o inferno. Então o que Ellen G. White estava dizendo ali em Atkinson? Que eles iriam para o inferno? Ou essas pessoas que acreditavam no inferno estavam interpretando suas afirmações fortes de que elas estavam perdidas?
Hoyt: Certamente não é possível responder isso a partir da transcrição, não é?
Butler: Não há realmente uma discrepância com seu pensamento, não é? Ela podia usar o termo “ir para o inferno” sem querer dizer “fogo que queima eternamente”, não podia?
Graybill: Ela podia. E ela também poderia dizer que essas pessoas estariam perdidas de uma forma ou de outra, e elas simplesmente a suplementavam com o “ir ao inferno”. Simplesmente não temos como saber.
Schoepflin: E nós não sabemos o que está acontecendo teologicamente na sua cabeça nessa época, se ela fez a transição a deixar de acreditar em um inferno que queima eternamente ou não, ou sequer se isso a incomodava.
Graybill: Mas nós de fato sabemos, a partir de evidências independentes, que Tiago e Ellen White promoviam e praticavam o rebatismo de cristãos por imersão até pelo menos 1850. Ser rebatizado era considerado um dever religioso dos que aceitavam a mensagem do advento – a guarda do sábado, os mandamentos de Deus, e a fé de Jesus. E o próprio Tiago rebatizou Ellen. Agora, eu não tenho nenhuma evidência de que Ellen promoveu esses múltiplos rebatismos. E esse é o único lugar em que a encontramos promovendo o batismo na calada da noite, no gelo do inverno. O quão frio estava, Fred?
Hoyt: Bem, eu não consigo achar nenhuma temperatura no jornal em Dover, mas a temperatura média era medida em Portland. Em fevereiro fazia -7ºC, numa média tirada de um período de 10 anos. E isso durante o dia. E você vê que eles chegavam em trenós. Há neve no chão. Isso é comum no início da primavera.
Butler: Charles Fitch tinha morrido uma semana antes do Grande Desapontamento [22 de outubro de 1844] de pneumonia, pois estava batizando gente nos rios da região nordeste.
Eles tiveram que sair dali
Butler: Eu quero me deter nessa questão do fanatismo. A razão para listarmos comportamentos fanáticos é questionar o quanto Tiago e Ellen estavam implicados nessas assim chamadas atividades fanáticas. E qual é a impressão que alguém tem ao ler a transcrição e ouvir sobre essa mulher? Coloque-se nos Estados Unidos na época vitoriana. Você tem uma jovem garota deitada no chão sobre um travesseiro durante seis a sete horas por noite, com toda essa bagunça acontecendo à sua volta. Há supostamente gente rolando, engatinhando. Ela ocasionalmente entra em transe, sai dele e ordena que alguém vá ao rio se batizar, e então se vai novamente, enquanto um homem segura sua cabeça. Há pessoas beijando pés à sua volta. Pessoas sentando no chão, deitadas no chão “promiscuamente”, excessivamente barulhentas, outra visionária entrando em um quarto com homens, embora haja discordâncias quanto a com quem e porquê. Há muita coisa acontecendo ali, e Ellen é parte daquilo.
Graybill: A pergunta precisa ser feita: nós sabemos que Ellen G. White não condenava nenhuma dessas atividades?
Butler: Não é possível, a partir desse documento, dizer que ela se distanciava do fanatismo.
Graybill: É verdade. É só que mais tarde, sim, ela diz que sempre condenou algumas destas práticas. Não é possível dizer isso a partir desse texto; essa transcrição certamente a coloca psicologicamente mais próxima do fanatismo do que imaginávamos. Parte disso é simplesmente nossos sentimentos com a diferença entre uma mulher deitada no chão e uma mulher andando enquanto tem uma visão.
Butler: É uma diferença gritante. Aqui você tem uma jovem garota em repouso, com suas costas em um travesseiro, e tudo à sua volta é essa tremenda frenesi e agitação. Poucos anos depois, você tem uma mulher parada de pé em transe, e a sala é silenciosa; há essa audiência solene reunida e olhando para ela com atenção. Você tem essa comunidade de êxtase no primeiro caso, e ela é parte da comunidade extática; posteriormente ela é a única extática, que é o tipo de coisa estabelecido pelo trabalho de Graybill.
Schoepflin: Se assumimos que o conteúdo dessas experiências de transe era em boa medida um reflexo do que estava acontecendo à sua volta, então, conforme as pessoas em seu entorno tornavam-se mais equilibradas e controladas, podemos esperar que o conteúdo de suas visões também ficasse mais equilibrado e controlado.
Graybill: Eu gosto de dizer que o Senhor satisfaz as necessidades das pessoas onde elas estão.
Schoepflin: Ela desempenhou o papel que precisava desempenhar. Ela satisfazia as necessidades da comunidade.
Hoyt: Para ser aceita por eles?
Schoepflin: Bem, eu acho que a comunidade precisava que as pessoas ficassem literalmente assustadas com o inferno, porque o mundo ia acabar, como Dammon disse. Então você não vai dizer às pessoas para abandonar a carne de porco porque terão uma vida mais longa e saudável.
Butler: É claro, você está mencionando o fato de que essa era uma comunidade radicalmente milenarista; olhando para o fim, a porta estava fechada.
Schoepflin: Ronald e Janet Numbers nos lembraram de que, recordando o que se passou logo após o desapontamento, Ellen G. White escreveu que “No período da decepção, depois da passagem do tempo em 1844, levantou-se o fanatismo em várias formas. […] Fui a suas reuniões. Havia excitação, com ruído e confusão. […] Alguns pareciam estar em visão, e caíam por terra. […] Em resultado de movimentos fanáticos como os que acabo de descrever, pessoas que não eram de modo algum responsáveis por eles, em alguns casos, perderam a razão. Não podiam harmonizar as cenas de excitação e tumulto com sua preciosa experiência passada; foram extraordinariamente pressionadas a receber a mensagem do erro; foi-lhes representado que a menos que o fizessem, iriam perder-se; e em resultado disso, ficaram desequilibradas, e algumas loucas” [Mensagens Escolhidas, vol. 2, p. 34, 35.] Em Spiritual Gifts [p. 51, 69] ela descreveu o mesmo período como de “doença extrema”, quando sua mente vagou por duas semanas, e ela temia que também ficaria louca. É provável que essa passagem estendida de Mensagens Escolhidas fosse quase autobiográfica, pelo menos subconscientemente. O que nós temos aqui é uma pessoa que estava experimentando sérias dúvidas sobre si mesma, seu movimento, e seu papel dentro dele.
Graybill: Aquela noite de fevereiro de 1845 com Dammon foi praticamente a primeira viagem de Ellen G. White para longe.
Hoyt: É verdade. O texto diz várias vezes que ela tinha saído de Portland para relatar a visão que tivera. É por isso que ela teve essa reunião em Atkinson, para relatar sua visão.
Graybill: Eu não sei quanto desse comportamento fanático ocorreu em Portland. Mas de certa forma foi em Atkinson que ela teve sua primeira exposição a ele. Depois de passar por essa experiência, ela viajou calmamente para a próxima cidade com Tiago e a irmã Foss na carroça. Tiago pode ter dito, “Rapaz, eu espero nunca cair em uma daquelas novamente.”
Schoepflin: Ou ela pode ter dito, “Rapaz, será que eu não fiz papel de tonta na noite passada? O que foi que eu disse no fim das contas, Tiago?” Ela pode ter ficado constrangida.
Hoyt: Se você voltar e ler todos os seus escritos autobiográficos, ela só faz referência a esse incidente em Atkinson uma vez. As outras vezes ela o deixa de fora, e se refere a outras reuniões em que houve fanatismo. Por exemplo, ela trata de Exeter em peso, uma visita que precedeu essa reunião. Ela fala de denunciar o fanatismo. Mas não consigo encontrar nenhuma referência em que ela cita Atkinson e alega ter denunciado o fanatismo ali. Talvez isso seja acidental, mas eu duvido muito.
Graybill: Esse incidente ao qual você se refere é relatado por Ellen G. White em Spiritual Gifts, volume 2, que foi publicado em 1860, e em mais nenhuma versão posterior de sua história de vida, o que inclui as edições de 1880, 1888 e 1915 de Life Sketches.
Hoyt: Você pode perceber que a cidade e os nomes de Dammon e Dorinda Baker desaparecem dessas versões posteriores. Aquele episódio foi uma aberração da qual ela se arrependia. Olhe para como ela tratava Dammon mais adiante. Ele era um herói para ela no começo. Então ela quis se distanciar dele.
Schoepflin: Então ela revisou o passado de modo a solidificar sua posição posterior como profetisa mais madura e responsável.
Butler: Adventistas começaram a se lembrar do passado com uma memória seletiva, de certa forma querendo esquecer todo esse comportamento fanático. Este fora como o combustível do movimento e o fizera andar, mas, posteriormente, passou a ser visto negativamente; lembrar disso era retardar o progresso do movimento. Então nós temos toda uma mudança de orientação que precisamos considerar.
Graybill: Os metodistas do clamor passaram por essa mesma transição mais ou menos na mesma época. Conforme os adventistas entraram na Era Dourada dos EUA e se tornaram mais prósperos e mais organizados, sua tendência foi deixar para trás muitas de suas práticas iniciais. Ellen e Tiago White acreditavam que elas eram incontroláveis, e então gradualmente foram cortadas disciplinarmente.
Butler: E você não pode ter médiuns em transe competindo. Então, enquanto em 1845 você tem Dorinda Baker, Ellen Harmon, e várias outras visionárias mulheres, e todas são aprovadas, isso não pode durar em um movimento religioso único e integrado. Você precisa distinguir o “verdadeiro” do “falso”.
Graybill: Basta enxergar isso sociologicamente, por assim dizer. Por que Ellen G. White foi bem sucedida e Dorinda Baker, Emily Clemons, ou William Foy não foram?
Butler: A resposta está implícita nos documentos. A cabeça dela estava nas mãos de Tiago White. Eu acho que o relacionamento entre Ellen e Tiago é crítico. Você olha por todo o mundo e vê incontáveis movimentos milenaristas que surgem como efemérides e então desaparecem. Eu acho que a diferença entre o adventismo do sétimo dia e outros movimentos assim similares que se desmancham é que Ellen White se acomodou ao mundo moderno. Ela colocou as coisas por escrito. Eles construíram uma casa publicadora. Ela teve uma visão sobre saúde, claro, mas eles construíram um Instituto Ocidental de Reforma da Saúde. Em outras palavras, há essa institucionalização, e em um cenário moderno você tem os recursos para fazer isso. Na África central, como você vai publicar uma visão se você não consegue nem escrever?
Schoepflin: Mas a pergunta de Ron é sobre as outras visionárias que estavam todas naquele mesmo cenário moderno.
Butler: Certo. Mas para “se modernizar”, você precisa das habilidades de um Tiago White.
Graybill: Mas quem teria sido Tiago White sem Ellen G. White?
Butler: É verdade. É uma relação simbiótica; sem carisma fica o vazio, e carisma sem ordem vai desaparecer.
Schoepflin: Alguém aqui diria que no conteúdo das experiências visionárias de Ellen Harmon havia algo único que contribuiu para o sucesso das instituições que os adventistas estabeleceram?
Graybill: Com base nos documentos à sua frente, não é possível dizer isso. mas eu poderia argumentar dessa forma até certo ponto ao comparar as visões de William Foy com as de Ellen G. White. Há toda uma combinação de fatores a considerar no sucesso de Ellen e Tiago White. Mas não melhora muito a situação em Atkinson naquele sábado à noite.
Hoyt: Mas você começa em algum lugar, não é?
Schoepflin: Fred, você rastreou os Whites até Michigan, não é? Eles tiveram sucesso depois de Atkinson?
Hoyt: Bem, minha conclusão muito putativa é que eles fracassaram em Maine e na Nova Inglaterra. Ela mesma escreveu a Loughborough em 1874, dizendo que o fanatismo em Maine fez com que “uma mancha temível fosse lançada sobre a causa de Deus, e que se prenderia ao nome do adventismo como lepra”. Eles estavam em problemas sérios. Então custou tempo e distância para que as pessoas se esquecessem disso, e eles tiveram que sair dali – se mudar para o oeste, rumo a Michigan e Califórnia.
Butler: Os líderes mileritas em Albany estavam dizendo, com bastante razão, que esse Movimento do Sétimo Mês tinha se transformado em um grupo estranho e bizarro de pessoas. E Ellen G. White devia sua iniciação como visionária a esses esquisitões.
Schoepflin: Ela sobreviveu porque se afastou deles.
Butler: Em absoluto. Há uma ironia aqui. Uma pessoa visionária começa porque existe esse comportamento estranho, louco e caótico. Esse é o contexto que produz essa gente. Mas, caso queiram sobreviver e ter um impacto histórico, ela precisa transcender rapidamente este mundo. E ela fez isso. Então seus comentários sobre ser contra o fanatismo parecem verdadeiros para mim. De certa forma ela devia sua existência ao fanatismo, e ainda assim teria morrido antes da hora como visionária se o permitisse continuar.
Graybill: Antes que as pessoas pensem que estamos tirando muitas conclusões a respeito da conexão entre Ellen G. White e os fanáticos dessa era inicial com base neste único documento, permita-me lembrá-los dos fanáticos antitrabalho em Paris, Maine. J. N. Andrews exclamou em 1849, quando Ellen G. White visitou o local, “Eu trocaria mil erros por uma verdade”, o que provavelmente era a taxa de câmbio em Paris na época. Seu pai era um fanático antitrabalho. Seu futuro sogro engatinhava no chão!
O neto se lembra do que o filho esqueceu
Graybill: Há uma coisa que não discutimos e que creio estar na mente de muitos leitores, e que deve ser posta em discussão antes de decidirmos a conclusão de toda a questão. No relato da própria Ellen G. White sobre este episódio, escrito em 1860, ela diz que o xerife era incapaz de prender Israel Dammon porque o poder do Espírito era tão grande que, embora Dammon não oferecesse resistência, os homens não podiam resistir ao poder de Deus, e tinham que correr para fora da casa para recuperar as forças.
Butler: E o documento sobre Dammon diz que havia mulheres se segurando nele, não deixando-o ir.
Schoepflin: Ellen G. White podia estar em transe e, portanto, inconsciente ou sem o completo controle de seus sentidos quando a prisão ocorreu.
Graybill: E o Senhor sabe que havia todo tipo de emoção ali.
Butler: Quem se importa? Qual é o problema?
Graybill: Bem, o problema é, será que Ellen G. White era uma fonte confiável? Ou será que ela estava mentindo para nós de modo a fazer a história parecer boa?
Schoepflin: Ela podia não saber o que estava acontecendo, mas não creio que ela mentiu. Com todo aquele barulho acontecendo, era possível que uma jovem inválida, que tinha lapsos entre transes visionários, distinguisse a bagunça que cercava as experiências extáticas da “gritaria contínua” em torno dos esforços para prender Dammon?
Graybill: Ellen G. White escreveu que “enquanto eu falava, dois homens olharam pela janela. Nós não nos importamos. Eles entraram e correram por mim até o Sr. Dammon. O Espírito do Senhor repousou sobre ele, e sua força foi retirada, e ele caiu desamparado no chão. O policial exclamou, ‘Em nome do Estado do Maine, segurem este homem.’ Dois seguraram seus braços, e dois seus pés, e tentaram arrastá-lo para fora. Eles só o moviam alguns centímetros, e então corriam para fora da casa. O poder de Deus estava naquela casa, e os servos de Deus, com seus semblantes iluminados por sua glória, não ofereceram resistência.” [Spiritual Gifts, vol. 2, p. 40. Itálicos acrescentados pela edição.]
Butler: Eu não sei o quanto isso é frutífero. É o tipo de explicação que nenhum adventista do sétimo dia na América do Norte experimentou ou acredita. Eles podem acreditar que aconteceu em 1845, mas a ideia de pessoas entrando em uma sala que está eletrificada por algum poder sobrenatural que as força para fora é só ficção para as pessoas; é coisa de filme. Eu não acho que este seja o problema. Sua memória do fanatismo e de como ela se relacionava com ele foi completamente distorcida. Se você só tivesse Ellen G. White e não essa transcrição, você nunca imaginaria Ellen G. White em uma cena como essa. Você a imaginaria chegando em uma sala cheia dessa atividade, e imediatamente repreendendo todos envolvidos nela, e esvaziando o local antes mesmo que os policiais chegassem ali. Sua memória daquilo era bastante diferente. Era memória seletiva. Mas o contexto que tentamos construir para explicar isso é que este foi um momento breve e efêmero no movimento; foi necessário, mas eles tiveram que crescer para fora dele, e parte desse crescimento incluía a forma como lembraram dele, assim como sua forma de estabelecer ordem e disciplina. Eu discordo da ideia de que “agora descobrimos que Ellen G. White era uma mentirosa ou uma historiadora ruim”. Eu não acho que isso seja verdade, e não acho que seja a questão. Foi só uma evolução ordinária na adolescência deste movimento, um rito de passagem; e ouvir de pessoas aqui desse lado, pessoas que não existiriam e não teriam suas instituições sem passar por essa etapa, que “Ó, descobrimos esse esqueleto no armário e estamos constrangidos”. Acho que essa abordagem está errada.
Hoyt: Você não está surpreso por descobrirmos isso?
Butler: Não. Eu ficaria surpreso se não encontrássemos documentos como esse, comparando os adventistas com outros movimentos religiosos. Eles são todos concebidos nesse tipo de fermento.
Hoyt: Se estamos maduros e temos esse tipo de perspectiva, nós deveríamos esperar por isso e não ficar em choque?
Butler: Sim. O neto se lembra do que o filho esqueceu.
Graybill: No entanto, ainda há uma sensação de violação. Eu não acho que seja necessariamente sexual, mas há uma sensação de violação, de sacrilégio na imagem dela deitada no chão a noite toda, com essas pessoas pisando e gritando no lugar todo.
Hoyt: Não é “apropriado”.
Pode a ordem nascer do caos?
Graybill: Eu ainda não ouvi de nenhum de vocês qual é a real importância dessa história. É só uma curiosidade do passado, ou realmente muda nossa visão de Ellen G. White e do nosso passado? O quanto devemos nos relacionar com ela hoje? Com constrangimento, reconhecimento, ou o quê?
Schoepflin: Eu acho que muitos adventistas vão se escandalizar com isso. Alguns vão ficar tão escandalizados que podem até acreditar que, se isso não foi inventado, pelo menos as testemunhas quiseram distorcer o que tinham visto. Depois desse estágio de negação, vai existir um período de depressão e ansiedade, e então uma desconfiança contínua e crescente das raízes iniciais do adventismo, assim como das mensagens que se acredita serem de Deus através de Ellen G. White. Por fim, muitos vão retomar suas vidas religiosas e recomeçar, mas não mais com a visão ingênua e excessivamente otimista sobre seu passado. E vai ser isso.
Butler: Eu acho que parte do problema é que os adventistas do sétimo dia têm sido estreitos e provincianos demais, com muito pouca compreensão do que acontece com outros movimentos religiosos.
Schoepflin: Mas você diz isso como se fosse algo que pudesse desaparecer e ainda termos o adventismo. Eu não tenho tanta certeza. Distinguir-se dessa forma parece ser parte da essência do adventismo.
Graybill: Há uma forma de olhar para tudo isso que ainda é muito única e que confirma nossa fé. Dizer a si mesmo, “Não é incrível?! Começando ali, chegamos onde estamos hoje!” O Senhor disse que escolheria o mais fraco entre os fracos. Nós não entendíamos todas as fraquezas inerentes nessa afirmação. E aparentemente ele levou um pouco mais de tempo do que pensamos para colocar esse negócio na rota mais bem sucedida.
Butler: O que você tem aqui é um movimento que, por um breve período de tempo, foi radicalmente milenarista. Eles achavam que o fim do mundo viria em questão de semanas ou meses. E os adventistas do sétimo dia não acreditam nisso hoje. Ainda existe dentro do sistema de crenças adventista do sétimo dia um componente de procurar o fim do mundo, mas, a menos que você vá às fronteiras do Terceiro Mundo, você encontra poucos que sejam radicalmente milenaristas, e eles frequentemente se envolvem em muito dessas outras coisas – curas, transes etc. O que é interessante nesse documento é levantar as cortinas para essa fase radicalmente milenarista do adventismo do sétimo dia. Ela foi extremamente breve, emotiva, extática, e frenética, mas notável, não por existir, e sim por existir por um tempo tão curto – só cerca de sete anos. E Ellen G. White foi instrumental para isso ao dizer: “Nós precisamos parar de estabelecer datas; nós precisamos superar esse milenarismo radical.”
Graybill: Isso também meio que perturba nossa visão estadunidense de progresso. Todos pensamos do adventismo primitivo como a era de ouro, em que todos eram tão dedicados, tão comprometidos, e tão bons. E quando você volta às experiências realmente primitivas, descobre que, ó uau, é melhor colocarmos a era dourada ali a partir de 1857.
Schoepflin: Adventistas têm um conflito em suas mentes quanto à era de ouro – alguns olham para o futuro, e outros idealizam a fé intocada de uma igreja mais antiga.
Hoyt: Eu acho que o que perturbaria o adventista médio mais que qualquer outra coisa é descobrir que o Centro White soube disso o tempo todo, e o manteve em segredo. Saber que a história foi encoberta.
Graybill: Francamente, eu mesmo estou um pouco constrangido. Quando eu li, hoje mesmo, o comunicado no The Midnight Cry sobre Israel Dammon, cujo julgamento fora reportado em todos os jornais, eu sabia que tinha lido isso antes, e quando o fiz deveria ter ido imediatamente achar todos os jornais.
Hoyt: Mas quem se importa com Israel Dammon? Ele não dizia Ellen Harmon. Caso contrário todos nós estaríamos lá 140 anos atrás.
Graybill: Eu sei. Mas ele menciona o julgamento. Eu devia ter pego no ar. De qualquer modo, eu estou tão certo quanto possível de que o Centro White nunca soube de nada disso.
Schoepflin: Também existem modelos reducionistas que podem explicar esse comportamento em termos que distanciaram o crente dele.
Graybill: Em que sentido?
Schoepflin: Por exemplo, alguém pode usar um modelo psicológico para explicar a origem e a natureza dos transes, assim como outros tipos de fanatismo que os acompanhavam. Não será fácil para um adventista aceitar que os princípios sedimentados e confiáveis do adventismo nasceram de experiências tão frenéticas e confusas. Como pode a ordem nascer da confusão? Todas as explicações que discutimos sobre a necessidade do casamento entre carisma e ordem são boas. Mas, no fim, o que resta é ordem e verdade nascendo a partir de confusão e caos.
Graybill: Esse é o ponto, Rennie. Nós sempre vimos nossas doutrinas e crenças como algo que não vinha mesmo das visões de Ellen G. White, e sim daquelas conferências sabatinas. Agora, se você conseguir colocar esse fanatismo nas conferências sabatinas, aí você teria um problema psicológico. Mas já que o adventismo nunca considerou suas doutrinas como provenientes das visões dela…
Schoepflin: Eu não acho que o adventista típico acredita nisso. Mas mesmo aceitando que as visões de Ellen G. White só confirmaram as doutrinas, então o crente continua com um dilema: a verdade foi confirmada a partir desse tipo de caso? Não importa como alguém retrata os transes, eles ainda eram transes. Você pode usar todas as relações públicas que quiser para embelezar o contexto das visões, mas qual era o estado mental de Ellen Harmon?
Butler: São transes, mas não é uma comunidade de médiuns em transe, extáticos, cuspidores e gente rolando no chão. Tudo aquilo hoje tornou-se um grupo de estudiosos da Bíblia, com essa única mulher. Os outros foram descartados.
Graybill: Eu olhei para o lado positivo dessa questão, mas tenho que olhar para o lado negativo também. Ponham de lado a formação da doutrina, ponham de lado ela crescendo para além disso, ponham tudo isso de lado. Vocês ainda a têm deitada no chão nesse contexto, tendo uma experiência que ela e adventista posteriormente identificaram como uma comunicação divina. É preciso forçar a credulidade de alguém para fazê-la aceitar que Deus tinha algo a ver com o que estava acontecendo naquele tipo de caos.
Butler: Não há adventista do sétimo dia vivo, ou que eu já tenha conhecido, que acreditaria nesse tipo de fenômeno.
Hoyt: Será que é isso o que incomodaria a maior parte dos adventistas? Que ela não pareça com a imagem de Harry Anderson dela em visão? Ao invés de estar na vertical, ela está na horizontal. É esse o principal problema?
Schoepflin: Se as visões só fizerem sentido em contextos como as reuniões de Dammon, então, assim que esses contextos desaparecem, as visões vão embora.
Butler: O que estamos dizendo é que o contexto mudou; mas agora temos outro contexto que é ainda mais ordenado, e Ellen teve um papel importante nisso.
Schoepflin: Mas você não pode chamá-las de visões no novo contexto. Você as chama de transes ou reações de conversão. Conforme muda o contexto, muda também a definição do fenômeno.
Butler: O argumento de Bryan Wilson sobre carisma é que ele é um fenômeno pré-moderno. E o único local em que ele ocorre no mundo moderno é nessas “lacunas” na vida moderna, onde você pode ter uma subcomunidade que ainda acredita em curas que são intervenções sobrenaturais. Essa não é a forma de funcionamento normal das pessoas no mundo moderno. Até mesmo o adventismo do sétimo dia está modernizado de muitas formas. Vejam sua medicina, seu uso da educação superior, suas explicações para tudo que faz. Vejam sua burocracia em Washington, D.C. Esses homens funcionam em categorias modernas de pensamento, eles lêem o Wall Street Journal, eles investem no mercado de ações, eles são homens modernos. Obviamente, você pode pegá-los de surpresa com uma visionária hoje em dia. Mas isso não significa que não seja uma realidade para eles, no sentido de que é muito importante para eles que o passado permaneça intacto. Eles não podem resolver o passado com explicações, dizendo “Bem, eles eram pré-modernos e nós somos modernos.” Eles não podem resolver as coisas assim.
Schoepflin: Eles não o fazem desse jeito, mas eles resolvem sim seu passado com explicações e redefinições.
Butler: Não completamente. Ela tinha visões antes. Ninguém mais pode tê-las, certo?
Schoepflin: Não, eu não creio que a maioria dos adventistas diria isso.
Butler: Se Neal Wilson encontrasse uma visionária hoje, ele explicaria aquela visionária em termos naturalistas. Não acha?
Schoepflin: Não. Eu acho que muitos adventistas acreditam que visões ocorrem ou podem ocorrer hoje. E parte da razão pela qual acreditam nisso é que eles acreditam que o contexto no qual as visões ocorreram na década de 1840 é muito análogo ao contexto no qual vivem hoje. Deixar claro a eles o quanto o contexto para as visões era realmente diferente erodiria sua confiança de que elas podem ocorrer hoje. Eu não acho que a maioria dos adventistas hoje esteja convencida de que as ações de Deus não são diretas na vida das pessoas. A maioria dos adventistas acredita que orações são respondidas, que anjos nos respondem, e que ocasionalmente Deus nos manda mensagens em sonhos.
Butler: Mas essas pessoas pagam plano de saúde e vão ao médico. Essas pessoas não estão indo a curandeiros.
Schoepflin: Certo. Então, assim que você as convence de que o contexto no qual funciona aquele tipo de visita de Deus estava desaparecendo no fim do século 19 e agora se foi para sempre, você removeu sua habilidade de crer que esses fenômenos ainda ocorrem hoje. Você as seculariza.
Butler: Não, não, você não as seculariza. Elas foram secularizadas, e começaram a ser secularizadas por sua profetisa em 1847. Elas desenvolveram tecnologia, pararam com as curas, e fundaram uma escola de medicina. Isso não é algo que os historiadores fizeram por elas.
Notas:
1.↑ Ver HOYT Frederick (Ed.). Trial of Elder I. Dammon Reported for The Piscataquis Farmer. Spectrum Magazine, v. 17, n. 5, p. 37-50, 1987.
2.↑ Nota do Editor: As biografias acadêmicas dos professores envolvidos na conversa estão desatualizadas, e encontram-se tal como foram publicadas em 1987. A Zelota preferiu mantê-las dessa forma para preservar o valor documental e histórico do texto.
3.↑ Nota do Tradutor: livro escrito por Ellen G. White que conta detalhes sobre sua vida, desde sua infância até 1881, assim como sobre o início do adventismo. O livro não foi publicado em português.