Líderes da igreja adventista no Brasil aparelham discurso político-ideológico de extrema direita e endossam difamação das esquerdas


Embora em documentos oficiais a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) declare apartidarismo — e em certa medida apoliticismo —, a liderança da instituição, no Brasil, articula um discurso político-ideológico de extrema direita. Esse discurso é evidente em suas produções acadêmicas; treinamentos pastorais; eventos distritais; declarações públicas; vídeos ou textos de pastores influentes, entre outros. A linguagem não é apresentada como argumento político, mas ocorre em tom de piedade religiosa, apelo à “verdade bíblica” em combate ao comunismo.

Que o adventismo prefere uma posição político-ideológica à outra não é novidade aos pastores adventistas no Brasil: dos 35 ministros que conversaram com a Zelota — atuantes em contextos diversificados do país —, 22 deles (62,9%) afirmam que, no âmbito organizacional, a IASD possui preferência por um posicionamento político não declarado oficialmente. Em conversa pessoal com alguns pastores que não quiseram se identificar, a posição político-ideológica que prevalece na liderança é de extrema direita: “os únicos que não podem falar sobre política são os que não compactuam com o governo atual [de Jair Bolsonaro]”, lamenta um dos pastores entrevistados.

Aparelhado como piedade religiosa, e jurando neutralidade ideológica, a característica mais marcante do discurso político da liderança se expressa em ataques às “ideologias de esquerda”, ou movimentos associados a ela, como: o comunismo, o marxismo, o socialismo, o feminismo, movimentos antirracistas, pró-indígenas, pró-aborto, militâncias LGBTQIA+, entre outros. A mesma insistência crítica não ocorre contra políticas de extrema direita, capitalistas, liberais ou neoliberais, a não ser em ocasiões em que ameaçam a liberdade religiosa por meio de lobbies entre Igreja e Estado.

Os principais articuladores do discurso que descredibiliza as políticas de esquerda encontram-se entre acadêmicos, líderes do alto escalão administrativo, pastores e influencers nas redes sociais. A característica marcante desses atores é a afirmação de neutralidade política, a falta de especialização ou preparo intelectual para abordar os temas propostos de uma perspectiva teórica, e o envolvimento com teorias conspiratórias.

O discurso político-ideológico de extrema direita aparelhado pela liderança adventista recusa ser identificado como “político”. Ao mesmo tempo, quando defende pautas como  a família tradicional, a criminalização do aborto, o ataque às ideologias de gênero e a “caça” aos comunistas, ele se alinha à ideologia reacionária da direita, no Brasil, e reforça as relações entre Igreja-Estado em nome da moral e dos bons costumes “judaico-cristãos”. 

Neutralidade e preparo questionáveis

Há evidência de que os acadêmicos adventistas possuem repulsa às ideologias políticas de esquerda pelo menos desde a década de 1980, e o sentimento é verificável em produções científicas ou eventos universitários com o passar dos anos. O discurso é semelhante: ao pretender um posicionamento neutro, os estudiosos insistem na importância da atuação política, mas utilizam os “esquerdismos” como exemplo negativo dessa iniciativa. E embora as políticas de esquerda sejam desacreditadas, o mesmo não acontece com as ideologias de direita ou de extrema direita.

Em 2006, por exemplo, o ex-professor da Faculdade Adventista de Teologia (FAT), Pr. José Miranda Rocha —já falecido —, publica na revista Kerygma o artigo “A responsabilidade do adventista e da IASD no contexto político”. No geral, o texto sublinha a importância da ação política dos adventistas e estabelece seus limites por meio de uma leitura de textos bíblicos e escritos de Ellen G. White. O autor não declara preferência por partidos ou ideologias políticas: ele enfatiza a necessidade da cooperação com os governantes, salvo ocasiões em que estes descumprem a vontade de Deus. Ele defende, em suas palavras, um adventismo apartidário e apolítico.

Mesmo aparentando neutralidade, o autor desfere críticas contra qualquer tipo de “anarquismo” ou “zelotismo”. Quando comenta a respeito de atitudes políticas que devem ser rejeitadas, Rocha dedica um parágrafo para criticar o “sindicalismo operário”, que se manifesta em ideologias políticas “marxistas ortodoxas”, que, segundo o autor, se posicionam contra as estruturas existentes de poder. Ao mesmo tempo, não há no artigo a mesma insistência crítica às políticas de direita.

Também na revista Kerygma, em 2010, o Pr. Dênis Magalhães, na época ministro da União Norte Brasileira, publicou um artigo com o título “O cristão e a política: o filho de Deus no reino dos homens”. No texto, o autor não declara preferência por uma posição político-ideológica (esquerda ou direita), e afirma que os cristãos devem atuar tanto em ações políticas estruturais quanto em ações sociais específicas, de forma apartidária e apolítica.

Magalhães supõe ser possível engajar-se politicamente sem filiar-se a uma ideologia — entendendo “política” como técnica e não como teoria. Em outras palavras, ele supõe que a atuação política não depende de uma conjuntura ideológica e pode atuar em uma “área cinza”, em que seria possível a neutralidade de ideias e ideais; que um projeto político seja realizável apenas por meio do amor, da honestidade, da transparência ou outras virtudes que anulam pressupostos teórico-filosóficos. Especialistas denominam essa postura como “despolitização” ou “pós-política”, e ela normalmente se expressa popularmente por meio do jargão “nem esquerda, nem direita”. 

Em seu artigo, o pastor cita como exemplo positivo a oposição do teólogo alemão Karl Barth ao comunismo e ao nazismo, sugerindo semelhanças entre ambos; e, a partir do mesmo teólogo, contrasta “democracia” e “socialismo” como opostos. Essa relação assemelha direita e esquerda como extremos indesejáveis, estabelecendo uma falsa simetria entre as ideologias e, dessa forma, afirmando neutralidade e isenção. De uma perspectiva ideológica, embora os exemplos sejam despretensiosos, o autor apresenta as políticas de esquerda de forma negativa. Semelhantemente a Rocha, nenhum julgamento é proferido contra as ideologias de direita.

Fora dos periódicos científicos, em um artigo intitulado “A Bíblia e o fim das esquerdas”, publicado na Revista Adventista on-line em 2016, o Pr. Vanderlei Dorneles, doutor em Ciências pela Escola de Comunicação e Artes da USP, prevê a ruína das políticas de esquerda nas profecias de Daniel — por se enquadrarem em definições que ele imagina para o “reino do Sul”, no capítulo 11. O autor não se alia à esquerda ou à direita política, pois acredita que ambos os lados atuam contra o Reino de Deus. Mesmo assim, Dorneles vulgariza a política de esquerda como “corrupta”, “populista”, “desorganizada”, “ateia”, “controladora”, e responsável por “agruras sociais e econômicas”.

Em seu artigo, o mesmo esforço pejorativo não é aplicado às políticas de direita, que permanecem intocadas. A cosmovisão dessa perspectiva só é problematizada na ocasião em que se une ao papado, que ele associa à Besta e à Babilônia, personificados no “reino do Norte”. Em Daniel 11, dois reinos protagonizam o cenário do tempo do fim, o reino do Sul e o do Norte. O reino do Norte, para Dorneles, representa um poder político-religioso que pretende tomar o lugar de Deus e perseguir os santos. Dessa forma, ele é representado por uma iniciativa política associada ao “chifre pequeno”, isto é, ao papado na interpretação protestante. Associada ao poder religioso, a direita representa uma ameaça universal. Salvo sua relação com a religião, ela não é criticada de uma perspectiva ideológica, econômica, teórica ou política.

Em vídeo publicado no canal Apocalipse Oficial, em 2020, Dorneles deixa transparecer outras concepções que possui das esquerdas políticas: elas se esforçam para se espalhar pelo mundo e pelas universidades; criticam o capitalismo e o imperialismo; e costumam apresentar uma abordagem mais crítica ao governo estadunidense. Para ele, as esquerdas também se caracterizam pela falta de liberdade e de espaço para a atuação religiosa.

O marxismo, como foco especial, é condenado especificamente por Thadeu de Jesus e Silva Filho, doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e atual diretor do Departamento de Arquivo, Estatística e Pesquisa para a DSA. Em entrevista à Agência Adventista Sul-Americana de Notícias (ASN), em 2018, ele sumariza o pensamento marxista e aponta incompatibilidades que acredita existir entre marxismo e cristianismo. Embora sociólogo, o autor não possui nenhuma atividade acadêmica voltada ao marxismo: suas produções científicas, em maioria, versam sobre performance em trompete, sua segunda formação.

Filho agrega ao marxismo outros temas que, segundo o entrevistado, são incompatíveis com a cosmovisão cristã: o humanismo, o relativismo e o materialismo. Para ele, as teorias de Marx são “aparentemente verdadeiras”, sendo a luta de classes a ideia mais danosa à história da humanidade. Filho afirma que os ideais marxistas apenas se popularizaram por possuírem um tom de justiça, “encantando” os pobres da América Latina.

O trompetista também explica que ambos, cristianismo e marxismo, seriam incompatíveis e inconciliáveis: ele se convence de que, para Marx, o homem foi o responsável por idealizar Deus e, para a Bíblia, o contrário; para Marx, os homens devem “destruir” seus inimigos e, para a Bíblia, devem amá-los; para Marx, as ações humanas giram em torno de poder, e, para a Bíblia, giram em torno da vontade de Deus.

Em ocasião anterior, também em entrevista à ASN, em 2017, Filho afirma que a dicotomia esquerda x direita, na política, é “obra da esquerda”. Ele assume que a polarização produziu personalidades distintas na sociedade: os de direita, que encaram a realidade e reagem de forma pragmática; e os de esquerda, que “não se conformam com o estado das coisas nem com sua própria condição existencial”, apelando para a metafísica. Com essa afirmação, o trompetista assume o lado da ordem estabelecida (de direita), tratando-a como ordem natural da sociedade — ela seria, afinal, a própria condição existencial do cristão adventista. Ele não considera que tal ordem manteve em média 815 milhões de pessoas famintas no mundo em 2016, algo que não deveria ser um problema frente à superprodução mundial de alimentos; também não considera que, em 2017, ano da entrevista, 12,7% dos brasileiros estivessem desempregados, ou que mais de 50 milhões estivessem vivendo abaixo da linha da pobreza (sobrevivendo com 400 reais por mês). Todas essas mazelas foram geradas sob a égide do capitalismo, mas, para o trompetista, rebelar-se contra a fome é violar a ordem natural das coisas. 

Thadeu Filho também credita à preocupação com os pobres promulgada pela esquerda a característica mais próxima ao evangelho de Cristo. Mas salienta que, embora este seja um “discurso atrativo”, ele trabalha na plataforma de ação política e deseja a emancipação humana por meio do Estado. Tais características invalidam as ideologias de esquerda, pois não agem em conformidade com a natureza sobrenatural cristã. Na tentativa de retirar seu elogio à esquerda, ele confunde programa político com escatologia e responsabiliza a Cristo pelo combate à pobreza.

Durante a entrevista, Filho não assume qualquer posição política: “nem à esquerda, nem à direita, mas para cima”, conforme explica. A despeito de sua neutralidade, nenhuma crítica é apontada às ideologias de direita; suas considerações se limitam à descredibilização política e religiosa do pensamento comunista e de outras políticas de esquerda associadas a ele. Nesse artigo, intitulado “nem esquerda, nem direita”, a esquerda é criticada e a direita desconsiderada. Dessa maneira, sua neutralidade se expressa como opinião ideológica declarada e facilmente aplicada no voto entre os cristãos, que serão impelidos a rejeitar qualquer partido que demonstre simpatia ao pensamento marxista, priorizando políticas de vertentes ideologias contrárias à esquerda.

A ASN também publicou uma matéria a respeito de um encontro de universitários do norte do Paraná, realizado no dia 18 de agosto de 2020, em Maringá, e organizado pelo Pr. Giliard Ferreira. O evento ocorreu no auditório da Fundação Cultural e Educacional Luzamor, com o tema: “O jovem cristão e o marxismo cultural”.

A ocasião contou com a participação de Rodrigo Udo Zeviani, mestre em História Política pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Iuri Gomes Ramos, mestre em História Ibero-Americana pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Márcio Fraiberg Machado, doutor em Educação pela PUCRS e Ericson Danese, especialista em Teologia pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp).

O objetivo do encontro foi analisar a ideologia marxista, seus desdobramentos, e suas implicações diretas na história, na cultura atual e na religião. À semelhança de Thadeu de Jesus e Silva Filho, nenhum dos especialistas convidados para o evento possuía produções acadêmicas voltadas ao tema do marxismo ou análise da obra marxiana.

Ainda no ambiente universitário, no programa de pré-lançamento do DVD Pra Cima Brasil, do grupo Academia da Voz, em 2018, período de eleições presidenciais, pastores do UNASP utilizaram jargões bolsonaristas em contextos meditacionais. O Pr. Edson Romero, na época diretor espiritual do campus Engenheiro Coelho, em oração inicial, roga para que os adventistas escolham “homens de bem” para presidência. Já o então reitor do campus, Pr. Paulo Martini, introduz a oração final com um discurso político: “é uma semana que antecede um momento muito importante das eleições, e os brasileiros deveriam fazer reflexões sobre isso.” Ele acrescenta: “precisamos levar as pessoas a olhar para cima e colocar Deus acima de todos” – aconselha o pastor em tom humorístico, seguido de aplausos da audiência. “Não quis dar nenhum recado, mas parece que um recado foi decodificado por aí”, conclui.

Estes últimos exemplos demonstram outras características do ambiente acadêmico adventista: Em primeiro lugar, eles podem ser utilizados como palanque para discursos políticos expressos pelos seus administradores ou por seus acadêmicos. Em segundo lugar, no que diz respeito a eventos universitários, a preferência por palestrantes não leva em conta a especialização dos convidados: as instituições adventistas não procuram por estudiosos na área, mas por acadêmicos ou líderes que, a despeito de sua formação e produção científica, estejam alinhados com o discurso reacionário prévio da liderança. 

Teorias de conspiração marxista

Um segundo aspecto que caracteriza o aparelhamento político-ideológico da IASD, no Brasil, é a divulgação de teorias conspiratórias que envolvem políticas de esquerda. Em sermões, palestras e eventos oficiais da igreja, a esquerda política costuma ser vulgarizada como parte de um plano satânico no cenário do Grande Conflito. O caso polêmico mais recente entre os adventistas envolve a propagação da teoria conspiratória do “marxismo cultural” que no Brasil foi difundida especialmente pelo astrólogo Olavo de Carvalho, considerado “guru ideológico” do governo Bolsonaro.

O Pr. Adolfo Suárez, por exemplo, reitor do seminário adventista para oito países da América do Sul, na Divisão Sul-Americana (DSA), em setembro (5) do ano passado publicou em sua conta no Twitter uma série de afirmações que, para ele, seriam falsas. Dentre elas, a afirmação de que o “marxismo cultural não existe” representa uma entre outras enganações atuais difundidas entre os adventistas. Ao sugerir que o marxismo cultural é uma realidade, Suárez o menciona como um dos responsáveis pela falta de estudo da Bíblia, falta de devoção pessoal e libertinagem (“Carpe diem”).

A pauta do marxismo cultural tomou maior proporção de engajamento nas redes sociais em outubro (7) do ano passado com a publicação, no Youtube, de uma palestra ministrada pelo Pr. Rafael Rossi, líder de comunicação da DSA, apresentada no Concílio Ministerial da Associação Sul-Rio-Grandense. O tema, segundo Rossi, já havia sido apresentado para os departamentais do ministério jovem, desbravadores, aventureiros e de comunicação da União há algumas semanas. Após a divulgação do vídeo entre a membresia adventista, ele foi imediatamente apagado de todos os canais que o veicularam.

Zelando pela reputação da instituição, o Pr. Rossi também recorre ao marxismo cultural quando expõe suas preocupações pessoais a respeito do que denomina “progressismo adventista”. Nesse contexto, para o pastor, o marxismo ganha força no âmbito institucional como uma escola de pensamento, disseminada por pessoas que, em suas palavras, “nem sabem o que estão falando”. Aqueles que desejam comunicar ideologias marxistas são metaforizados como lobos, e os membros adventistas como ovelhas ingênuas.

“O marxismo cultural é uma derivação daquilo que Karl Marx escreveu; é a apropriação de princípios básicos que Karl Marx defendeu, e que acaba assumindo uma roupagem diferente na sociedade e vai bater na porta da igreja”, alerta o líder adventista.

À semelhança de Suárez, Rossi não se conforma com opiniões céticas quanto ao marxismo cultural. Em sua palestra, expõe publicamente o professor de história, o adventista Ricardo André de Souza, em publicidade de um evento sobre marxismo com sua participação. Ele também menciona, ipsis litteris, um tweet do Pr. Tiago Arrais, que ironiza a crença no marxismo cultural e compara a teoria conspiratória a lendas populares, como o “coelhinho da páscoa”.

O Pr. Rossi, na maior parte do treinamento, explica o que é o marxismo cultural, como a igreja o enxerga, e as contradições existentes entre os textos de Ellen G. White e o Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels: “sem nenhum erro, amigos, eu digo, o diabo trabalhava com o nascimento do comunismo; com as ideias de Karl Marx, as ideias de Engels, que vão tomando forma e trazem consigo esse Manifesto Comunista”, sumariza o pastor.

Rossi caminha para a conclusão de que não existe relação possível entre marxismo e religião, e menos ainda entre o primeiro e o cristianismo. Em nenhum momento desfere críticas a ideologias políticas de direita, o que pode ser justificado pelo objetivo principal do seu discurso: a demonização das esquerdas políticas, generalizadas na ideia de contrafação do marxismo cultural.

A Dra. Iná Camargo Costa, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) e especialista no assunto, em livreto intitulado Dialética do Marxismo Cultural, explora as origens históricas do conceito. Na obra, ela aponta os “cristãos fundamentalistas, ultraconservadores, supremacistas”, ou a “extrema-direita estadunidense”, como principais difusores dessa conspiração. Costa remonta à Alemanha nazista e atribui a ela o seu nascedouro a partir da obra Mein Kampf (“Minha luta”), de Adolf Hitler, ao declarar guerra ao bolchevismo (maior expressão marxista da época). Para Hitler, o marxismo representava uma conspiração judaica, expressa na arte, na cultura e nas produções intelectuais, com atenção especial ao O capital, de Karl Marx. Dessa forma, o marxismo cultural representava uma ameaça que pretendia degenerar a cultura e os bons costumes alemães.

Outra ocasião em que os líderes adventistas se reuniram para abordar a teoria conspiratória do marxismo cultural ocorreu no Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), na maratona espiritual “Adventismo em tempos líquidos”, organizada em três encontros, em outubro (10), novembro (7) e dezembro (12) do ano passado. De acordo com o site de notícias adventistas, “o projeto partiu de uma iniciativa da igreja no UNASP São Paulo e foi crescendo com o apoio e interesse dos administradores da igreja do estado de São Paulo e da Divisão Sul Americana.”

Uma das palestras teve como ministro o Pr. Michelson Borges, editor da Casa Publicadora Brasileira (CPB) e influencer adventista nas redes sociais. Borges já é conhecido entre os adventistas desde a década de 2000 por suas teorias conspiratórias sobre a cultura pop (quadrinhos, filmes e jogos) como influência satânica à juventude. Essas ideias foram oficialmente veiculadas pela CPB no livro Nos bastidores da Mídia. Nele, o pastor já criticava as políticas de esquerda como parte de um conceito que ele denomina “tríade filosófica do mal”.

Essa conspiração possui um contexto mais amplo: segundo o influencer, suas ideias foram inspiradas numa série de artigos do Pr. Hélio Luiz Grellmann publicada na Revista Adventista na década de 1980, em que é cunhada a expressão “o espetáculo paralelo de Satanás”. Nesse espetáculo, Satanás faria emergir marionetes ideológicas para minar as crenças adventistas. Dentre as ideologias falsas encontra-se o marxismo, veiculado pelo Manifesto Comunista.

O pastor acredita que o marxismo é, em metáfora, um “cavalo de troia vermelho”: engano sorrateiro que permeia o pensamento da juventude e entra na igreja de forma despretensiosa. Segundo sua conspiração, ele aparece em companhia do evolucionismo e do espiritualismo, ambos emergindo em conjunto na década de 1840, o mesmo período em que surge o movimento adventista. A contemporaneidade desses acontecimentos, e esparsas correlações entre eles, levam Borges a afirmar, assim como Rossi, que há uma agenda satânica contra os adventistas do sétimo dia e, consequentemente, contra a verdade de Deus para a humanidade no tempo do fim.

Borges é o pastor influencer adventista que mais publica pautas políticas nas redes sociais em condenação às ideologias de esquerda, embora não esboce preferência a partidos políticos. No Youtube, somados apenas os vídeos que condenam o marxismo, calculam-se em média 11 horas de conteúdo. Em uma dessas ocasiões, entre outras obras, o pastor indica um livro de Olavo de Carvalho, O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, como leitura básica para compreender os malefícios do marxismo.

Em suma, para Borges, o marxismo representa “a sociedade sem Deus”: ele é o responsável pela perversidade sexual; ele corrompe o intelecto dos estudantes nas universidades; é veiculado pela mídia, convencendo crianças, adolescentes e jovens do ateísmo; se infiltra na imprensa para ocupar cargos diretivos; quebra os padrões de moralidade; substitui a “religião revelada” pela “religião social” (e, em contrapartida, elimina toda expressão religiosa); entre outras diversas mazelas visíveis na sociedade atual. Em outros termos, assim como nos anos 2000, o marxismo atua como “mensagem subliminar” para controlar as massas com propósitos satânicos.

Em alguns poucos momentos do evento “Adventismo em tempos líquidos” o pastor afirma a existência de aspectos positivos no marxismo. Esses pontos, contudo, desconsideram o “lado podre da maçã”, como estratégia satânica para mascarar o engano: “Há aspectos interessantes no marxismo? Claro! O inimigo não é tanso” — brinca o pastor, utilizando uma expressão sulista que significa sonso ou vagaroso.

Assim como muitos líderes adventistas, o influencer afirma neutralidade política partidária. Embora, no evento, mencione pejorativamente o “capitalismo selvagem”, ele não dedica tempo para criticar essa perspectiva político-ideológica. Após longos discursos contra as ideologias políticas de esquerda, o pastor acrescenta: “Nós não somos de esquerda nem de direita. Nós somos de onde? Do alto”.

Entre os discursos político-ideológicos de Borges, a situação em que seu posicionamento de extrema-direita fica evidente está no tratamento da morte de Marielle Franco em contraste com a facada de Jair Bolsonaro. A direita brasileira tende a diminuir a gravidade do homicídio da ex-vereadora e humanizar a tentativa de assassinato do Presidente da República. O mesmo ocorre no discurso do influencer: no Youtube, Borges se refere à facada contra Bolsonaro como o auge da intolerância e desrespeito à humanidade; em vídeo sobre o assassinato de Marielle, ele se dedica exclusivamente à crítica dos movimentos de esquerda.

Ainda na maratona espiritual, o Dr. Rodrigo Silva, doutor em arqueologia e professor no UNASP, tomou a palavra para contextualizar o título do evento, “Adventismo em tempos líquidos”. Ele parte da obra do sociólogo polonês Zygmunt Bauman para aplicar o aspecto de moralidade frágil da pós-modernidade à ideia de “modernidade líquida”. Após citar diretamente o autor em duas ocasiões, Silva afirma que, para Bauman, as mazelas da sociedade atual já eram planejadas no Manifesto Comunista.

“Bauman falou que a modernidade líquida estava dentro dos planos já expostos no Manifesto Comunista, que sabiam que a única forma de implantar um comunismo que iria colocar o marxismo em todo mundo era tornar líquidos os sólidos. Profanar o sagrado”, afirma Silva, resumindo seu pensamento. Em meio a pausas dramáticas, o professor ensina que a liquidez da sociedade e seus infortúnios são fruto do marxismo.

Em diversos momentos Silva elogia palestras anteriores, especialmente a apresentada pelo Pr. Michelson Borges. Ele concorda com a conspiração marxista, e explica que Satanás, de fato, realiza “uma paródia de Deus para enganar”. Ele sugere que a exposição de Borges reflete a teologia adventista; e que a politização desse discurso demonstra desconhecimento da doutrina: “Acusar a igreja como sendo de direita é não conhecer a teologia da igreja. Foi bem colocado pelo Michelson Borges aqui, a igreja adventista não é oficialmente nem de direita, nem de esquerda”, explica.

Parte do discurso de Silva ganhou repercussão na internet sob a acusação de manipular o conteúdo apresentado e utilizar as citações de Zygmunt Bauman fora do contexto original. Nas redes sociais, opiniões opostas a do arqueólogo constataram “desonestidade intelectual”, resultante de uma leitura equivocada da teoria marxista. Citando o Manifesto Comunista, por exemplo, o perfil @jaaayder, no Twitter, publica um trecho de Marx e Engels que afirma o oposto do que foi exemplificado por Silva: de acordo com a obra, os teóricos marxistas acusam a burguesia pela liquefação dos sólidos, e não o contrário; é ela quem altera os meios e relações de produção e estabelece um ambiente de instabilidade e incerteza econômica.

Silva confessa que nunca leu o Manifesto Comunista, apenas alguns fragmentos; e em outra ocasião afirma não ser um especialista em marxismo. Ele não concorda em certos pontos com Olavo de Carvalho, mas está alinhado com o seu pensamento sobre o marxismo cultural: “a expressão ‘marxismo cultural’, ela tem fundamentação teórica, sim, senhor! Está ali, estude isso. E a igreja está atenta a isso para não perder sua identidade”, admite Silva ao concordar com o astrólogo bolsonarista.

À semelhança de Borges, Silva afirma neutralidade política partidária e não oferece críticas às ideologias políticas de direita. Ele também reconhece a importância de possuir pautas sociais, “mas não de modo revolucionário”. Sua desavença com as ideologias marxistas é mais evidente no Youtube, onde Silva se dedica à crítica de manifestações políticas de esquerda, em geral (feminismo, movimentos antirracistas, LGBTQIA+ etc.), afirmando serem “chatas” por insistirem nas mesmas pautas, ou por se utilizarem da violência.

Na maratona espiritual “Adventismo em tempos líquidos”, outras menções menos enfáticas foram feitas à ameaça do marxismo cultural. De acordo com o Pr. Adolfo Suárez, os temas explanados na palestra foram arranjados pela liderança de forma “entrelaçada”, para que pudessem compor uma lógica didática aos ouvintes. Por outro lado, o Pr. Rodrigo Silva explica que os assuntos, na verdade, não foram previamente combinados, e sugeriu que o Espírito de Deus estivesse guiando o evento.

A opinião entre os universitários que acompanharam a maratona se dividiu entre negativas e positivas. Embora o site de notícias adventistas aponte a reação positiva do público, um dos ouvintes que acompanhou a programação pela internet comentou seu desagrado com a Zelota: “Quando era mais novo, eu costumava anotar quantas vezes o pastor falava ‘amor’, ‘Deus’ e ‘Jesus’ no culto. Nessa programação eu poderia anotar quantas vezes eles repetiram ‘marxismo cultural’”, brinca o estudante adventista que não quis se identificar.

Por último, e não menos importante, está o discurso do apresentador da Novo Tempo (NT), Leandro Quadros, que desde sua participação na emissora atua como influencer nas redes sociais para um público variado de maioria adventista. Embora não evidencie qualquer crença na conspiração do marxismo cultural, Quadros produz conteúdo que enfatiza a vulgarização das ideologias de esquerda, seja em texto ou vídeo, com a predominância do segundo.

Assim como as personalidades citadas, Quadros afirma apartidarismo e apoliticismo. Ele entende a Bíblia como regra de fé para julgar ideologias e se coloca em posição crítica. Por não ser pastor, o influencer expressa liberdade para falar sobre assuntos políticos de uma perspectiva “educadora”; isto é, a partir de seu estudo particular da Bíblia, ele elabora argumentos para sugerir ao ouvinte em quem votar e como julgar ideologias políticas nocivas para a filosofia cristã: “você tem que diferenciar entre meter-se em política e instruir sobre o assunto”, explica Quadros. 

Quando pretende instruir seu público politicamente, ele segue a mesma tendência já mencionada: afirma desinteresse por assuntos políticos (apartidarismo ou apoliticismo), evoca a autoridade bíblica e dedica energia para criticar ideologias marxistas – ou qualquer outra manifestação política que julga estar associada às esquerdas.

Diversificadas são as expressões pejorativas que o influencer utiliza para vulgarizar as ideologias de esquerda: o marxismo é uma “praga”, uma “besteira”, é “venenoso”, “barato”, “medíocre” entre outras possibilidades. Para o ex-apresentador, o livro Manifesto Comunista, de Marx e Engels, promove uma ideologia “que é extremamente diabólica”; ela toma conta da vida particular e de instâncias da sociedade de maneira sorrateira e inconsciente.

Embora afirme ter estudado as obras de Karl Marx – e elabore um vídeo em que pretende comparar o Manifesto Comunista com a Bíblia –, Quadros promove as mesmas vulgarizações populares contra o marxismo, comuns em discursos de extrema direita e ausentes na produção de estudiosos da área: para ele, o marxismo apresenta uma falsa caridade; promove o ateísmo e a visão de mundo sem religião; milita contra a estrutura familiar bíblica etc. Ele também acusa a ideia de luta de classes de ser anti-bíblica; e entende que o apelo social do marxismo é de: “dar o peixe, mas não ensinar a pescar.”

Em seus vídeos, Quadros expõe explicitamente sua inimizade contra o Partido dos Trabalhadores (PT), evocando-o como exemplo de má ideologia política. Ao contrário do que é comum ao discurso adventista, ele não defende que todo governante seja literalmente escolhido por Deus. Quadros acredita que o povo tem liberdade para deliberar sobre seus líderes, bom ou ruins. Um dos vídeos elaborados com base nessa argumentação data de 2014, e é justificado pelo influencer em virtude da reeleição da presidente Dilma Rousseff (PT).

O ex-apresentador também afirma abertamente sua confiança e respeito a Jair Bolsonaro (sem partido), considerando-o um “camarada sério”. Em 2018, período de eleições presidenciais, o influencer publicou dois vídeos com a pretensão de educar politicamente seus ouvintes. Nas duas ocasiões, Quadros ataca as ideologias de esquerda e elabora uma lista de “características positivas” de um bom candidato. Todos os itens afirmam uma agenda política de extrema direita. Para Quadros, um bom político deve: condenar a legalização das drogas; defender as propriedades privadas; proibir o aborto; afirmar fidelidade a Deus; defender a liberdade religiosa; e afastar-se de ideologias marxistas. Na segunda ocasião, ainda em período de eleições, ele reproduz uma crítica reacionária popular ao PT, acusando o “socialismo brasileiro” de doar alimento aos pobres sem a pretensão de ensiná-los a trabalhar.

Além disso, Quadros defende duas pautas impopulares da extrema direita, afirmando possuir validade bíblica. Ele afirma com frequência em suas redes sociais a pena de morte como princípio bíblico válido para punição pelo Estado, que desrespeita as Escrituras caso não a coloque em prática; e também entende que o cristão, em algumas ocasiões, está livre para usar armas de fogo para matar em autodefesa.

À semelhança de outros exemplos previamente citados, Quadros não dedica a mesma energia para criticar ideologias políticas de direita. As poucas ocasiões em que ele pretende oferecer um contraponto dizem respeito às possibilidades de união entre a Igreja e o Estado, à vista da promoção de um decreto dominical.   

Divagação, acusação e desprezo

Para compreender melhor o posicionamento reacionário dos líderes e influentes adventistas, a Zelota  entrou em contato com a maioria deles, seja por e-mail, pelas redes sociais ou por telefone. Quando questionados sobre a preferência por pautas de extrema direita e pela insistência na vulgarização das esquerdas, com uma única exceção, todos os pastores entrevistados não responderam à pergunta: eles divagam por respostas que escapam à objetividade da questão, acusam a revista de alguma desonestidade ou encerram o contato sem oferecer explicações.

Thadeu Filho, por exemplo — considerado atualmente a voz da especialidade acadêmica em sociologia pela DSA —, desprezou o tópico. A Zelota entrou em contato com o trompetista para entender sua preferência pela vulgarização das esquerdas, mesmo em discursos em que jura neutralidade política e partidária. No entanto, Filho demonstrou descaso à preocupação da matéria, e afirmou por WhatsApp: “Não tenho interesse. Bênçãos!”.

A Zelota também contatou o Pr. Rafael Rossi, responsável pelo treinamento em que discursa contra a ameaça do marxismo cultural. Quando questionado sobre sua preferência pela crítica das ideologias de esquerda, Rossi explica que seu objetivo era “exaltar a importância da Bíblia sem defender posição político-partidária”. Desconsiderando os outros questionamentos, o líder sugere que a Zelota consulte os materiais oficiais da igreja, todos com a participação do trompetista Thadeu Filho, o mesmo que disse não se interessar pela matéria.

Dentre os pastores procurados pela revista, dois deles não responderam às perguntas e, em contrapartida, acusaram a matéria de alguma desonestidade. O Pr. Michelson Borges, por exemplo, quando questionado acerca de sua massiva produção de conteúdo contra as ideologias de esquerda na internet, nega sua contribuição à matéria e acusa a revista Zelota de desonestidade por propagar mentiras.

De forma semelhante, o Dr. Rodrigo Silva, também alvo dos mesmos questionamentos, não os responde e acusa a revista de desonestidade jornalística. Em sua resposta, o arqueólogo também dedica tempo para criticar o título do periódico ( “Zelota”), por não corresponder, em seu entendimento, ao “movimento de Jesus”. Por esses motivos, Silva recusa responder às questões, mas também apela pelo direito de não participar de entrevistas. Ele sugere um futuro diálogo intermediado pela assessoria do UNASP.

Silva também afirma não conceder entrevistas a revistas sem, antes, conhecer a sua linha editorial. A Zelota deu acesso às informações exigidas pelo arqueólogo, mas não obteve resposta até a data da publicação desta matéria. O mesmo ocorreu com o Pr. Adolfo Suárez, que decidiu não responder às questões por desconhecer a linha editorial da revista. A Zelota também não recebeu qualquer resposta após disponibilizar ao pastor o documento exigido.

A Zelota entrou em contato com o Pr. Giliard Ferreira, organizador do evento que ocorreu no auditório da Fundação Cultural e Educacional Luzamor com o tema “O jovem cristão e o marxismo cultural”. Ele iniciou o diálogo com a revista, mas encerrou o contato imediatamente ao receber as questões sobre a preferência do evento à crítica das ideologias de esquerda. 

O único que se dedicou às questões da revista foi o Pr. Vanderlei Dorneles, ainda que de forma parcial. Quando questionado sobre sua preferência à vulgarização das esquerdas, Dorneles explica, por e-mail, que suas afirmações em 2016 devem ser lidas no contexto em que foram publicadas. Naquela época, segundo o pastor, as políticas de esquerda apresentavam as características que ele cita. Quando questionado sobre outros aspectos políticos que pudessem comprometer as políticas de direita, por outro lado, o autor reafirma a sua tese e não aprofunda o assunto, isentando-se de oferecer críticas às ideologias reacionárias de extrema direita.

Nem esquerda, nem direita: direita

Ainda que a liderança sinta-se ameaçada e não abra espaço para o questionamento de suas atitudes, ou mesmo ocasião para o diálogo, ela possui uma tímida crítica às ideologias políticas de extrema direita: o problema da união entre Igreja e Estado com fim de promover interesses políticos e religiosos no regimento da nação. Para os líderes adventistas, a aproximação entre o governo e a bancada evangélica pode ocasionar acordos que vão contra a liberdade religiosa.

O Pr. Michelson Borges, por exemplo, teme a união entre o governo e os evangélicos porque ela pode facilitar um “decreto dominical”, justamente em parceria com autoridades católicas. Essa é a única problemática apontada às direitas, já que Borges sugere estar alinhado com outras pautas ideológicas que caracterizam esse pensamento político, como privatização das propriedades ou a insistência na defesa da família tradicional:

“Prega-se em favor da família patriarcal, da propriedade privada dos meios de produção, dos direitos individuais, da legitimidade da autodefesa pessoal, do favorecimento do mérito etc.” — explica Borges ao elencar características positivas da direita e contrastá-las ao “grande risco” da união Igreja-Estado.

Uma abordagem semelhante é elaborada pelo Pr. Vanderlei Dorneles, mas de uma perspectiva apocalíptica. A partir de seus estudos pessoais sobre as profecias de Daniel 11, Dorneles equipara a extrema direita ao “Reino do Norte” pela pretensão de assumir o lugar de Deus para promover seus interesses por meio da atuação política. Dessa forma, ela representa uma “contrafação do reino de Deus na Terra”, por usar o nome de Deus sem compromisso com as Escrituras.

Para além do texto bíblico, Dorneles explica sua posição por meio de análises macroeconômicas, e chega a defender que o governo Chinês não é páreo aos EUA para tornar-se a nova potência econômica mundial. Sua preocupação tem como base a visão apocalíptica de que o governo americano será o responsável pela imposição de um decreto dominical articulado na relação Igreja-Estado.

A despeito dessa crítica, é fato reconhecido no Brasil o compromisso da IASD com os discursos ideológicos de extrema direita articulados pelas autoridades governamentais evangélicas. Há tempos a igreja adventista brasileira é parceira oficial da Coordenação Estadual da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), juntamente com outras denominações. O Advogado Geral da DSA, Dr. Luigi Braga, é membro do Conselho Diretivo Nacional e do Núcleo de Inteligência Jurídica do Terceiro Setor da ANAJURE.

O contexto para esse compromisso já contava com a relação histórica entre a liderança adventista e políticos PSDBistas, em São Paulo, como Geraldo Alckmin, José Serra, João Doria e Damaris Moura. O ex-pastor e presidente da IASD para o Estado de São Paulo, Domingos José de Sousa, por exemplo, após sua jubilação, atualmente trabalha como Assistente Especial Parlamentar da deputada estadual Damaris Moura (PSDB).

Damaris, em parceria com a Federação dos Advogados Adventistas do Brasil (FAAB), participou como palestrante, em outubro (23) de 2019, do 1º Encontro Nacional da FAAB, realizado na comunidade Nova Semente, SP. Ao seu lado, tiveram o direito à palavra o presidente da ANAJURE, Dr. Uziel Santana, e a Dra. Janaína Paschoal (PSL), uma das autoras do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT).

A ANAJURE é uma entidade que defende as “liberdades civis fundamentais”, o que inclui especialmente a liberdade religiosa. Embora pretenda-se plural, ela prioriza a agenda político-religiosa evangélica de extrema direita no Brasil — como o combate ao aborto e à “ideologia de gênero”. Além disso, entre os 67 parceiros nacionais e internacionais, em média 50 são declaradamente cristãos protestantes e evangélicos, dentre os quais encontra-se a IASD. Em seu estatuto, a ANAJURE assume princípios bíblicos em defesa jurisdicional da moral cristã para a sociedade, ao “proclamar os valores ínsitos à fé cristã no Brasil e no mundo.” Em agosto (22) de 2018, por exemplo, a ASN deu voz ao presidente da ANAJURE em entrevista para comentar a respeito do posicionamento da entidade a respeito da criminalização do aborto.

Em conversa com a Zelota, uma advogada adventista que não quis se identificar lamenta a parceria da IASD com a ANAJURE por declarar, dessa forma, suas prioridades políticas e ideológicas no cenário brasileiro. Para ela, em tais eventos, a entidade não se interessa pela pluralidade nos assuntos relativos à liberdade religiosa: “Para a ANAJURE o que interessa é falar o quanto são importantes os evangélicos, o quanto é importante o cristianismo. Então é complicado”, lamenta a advogada.

Em resposta à  Zelota, o Dr. Luigi Braga afirmou que “a IASD não tem relação com a ANAJURE”. O advogado argumenta que ela é formada por pessoas físicas, isto é, por meio da atuação de associados adventistas. Para Braga, não existe “relação oficial da IASD com a ANAJURE, pela própria natureza da associação”. Ainda assim, no site oficial da entidade, a IASD e o UNASP são destacados como membros parceiros, e a relação entre ambos é descrita pela ANAJURE como “convênio oficial”.

Braga ainda esclarece para a Zelota que a associação da IASD ou do UNASP com a ANAJURE ocorre em situações pontuais em que existem pautas em comum: “Não há qualquer envolvimento político-ideológico dos cursos de Direito do UNASP com a ANAJURE, exceto as pautas em comum que são estudadas por ambas as instituições já aqui mencionadas”, explica. 

Em associação com a ANAJURE, por exemplo, os adventistas atuam em defesa das escolas cristãs ao lado do Programa de Apoio a Instituições de Ensino Confessionais (PAIEC). Uma das premissas do PAIEC é a de que o Estado brasileiro trabalha para desconstruir os valores morais judaico-cristãos do país, premissa semelhante às conspirações a respeito do marxismo cultural. Essa cosmovisão é afirmada pelo Dr. Uziel Santana, presidente da ANAJURE:

“Há uma pressão do Estado hoje contra a confessionalidade. Vivemos esse momento de desconstrução dos nossos valores judaico-cristãos, e isso se mostra de modo muito forte quando estamos a falar de educação”, assume Santana em vídeo no Youtube.

Nos últimos anos, em pelo menos duas ocasiões a ANAJURE foi em defesa da IASD para fortalecer suas pautas político-ideológicas e religiosas por meio de Notas Públicas: em março (27) de 2018, ela advoga a favor do Colégio Adventista de Jacarepaguá (RJ), quando acusado de proibir o acesso de uma mãe candomblecista à escola por trajar um fio de contas. E, em novembro (20) de 2019, a ANAJURE também salvaguarda a imagem da IASD no caso da avaliação de língua portuguesa que possuía conotações homofóbicas, no Colégio Adventista em Belém (PA).

Outra parceria entre a IASD e a ANAJURE ocorre no nível universitário. A “Academia ANAJURE” é um plano de ação oficial da entidade para a “formação de uma Cosmovisão Cristã aplicada às Ciências Jurídicas”; ela é realizada com o apoio do UNASP, que afirmou convênio oficial com a ANAJURE em março (13) de 2019.

Em dezembro do ano passado, o UNASP sediou um evento oficial da Academia ANAJURE que ocorreu entre os dias 13-18. Entre os assuntos abordados, haviam palestras que afirmavam as pautas político-ideológicas e religiosas da entidade evangélica, com temas ligados à “masculinidade e feminilidade” e à “cultura do aborto” — assuntos envoltos num contexto de defesa dos valores cristãos para a sociedade por meio da ação jurídica.

Para este ano, o UNASP e a ANAJURE planejam um curso de pós-graduação em conjunto, intitulado “Direito, Estado e Liberdade Religiosa”. As aulas estão previstas para maio, e contarão com a presença do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública do governo bolsonarista, Dr. Sérgio Moro. Em resposta à Zelota, Braga comemora a realização da pós-graduação, e afirma que ela “renderá bons trabalhos acadêmicos”. 

A correspondência entre a IASD e as entidades evangélicas de extrema direita facilita o avanço de duas pautas, uma institucional e outra político-ideológica: Por um lado, a IASD possui auxílio jurídico para resguardar seus interesses religiosos, como a guarda do sábado e a liberdade para expressar opiniões contra a homossexualidade e a ideologia de gênero. Por outro lado, a bancada evangélica ganha um aliado para promover sua agenda reacionária e fortalecer a influência cristã no Estado, em defesa da moral e dos bons costumes evangélicos.