Em resposta a vídeo de Alan Gentil, André Castro discute as limitações das redes sociais para debates construtivos e reafirma sua posição


Toda mídia, enquanto meio sobre o qual se transmite um certo conteúdo, influi também no próprio conteúdo que oferece. Escrever esse texto, assim como gravar um vídeo, me dá possibilidades diferentes de dizer a mesma coisa. E, quando se trata de redes sociais, a coisa fica ainda mais clara. O ainda vivo finado Twitter tem uma forma: poucas palavras, ideias chocantes e rápidas que geram likes e RTs em discordância; o Instagram, que começou sendo um álbum de fotos, foi subsumindo as mais diferentes formas de mídia que organizam as plataformas. Primeiro foi o Snapchat, logo o TikTok, e o último a ser roubado foi o Twitter. Cada uma das novas funções, que claramente foram copiadas do app inovador, agora ganha novos termos e cria as suas próprias formas de apresentar conteudos. Em todas essas formas, cada uma a seu modo, encontramos uma incursão midiática que tem um padrão muito específico. Poderíamos chamar de espetáculo de crítica.

Esse espetáculo pressupõe três cenas: 1) um tema polêmico que esteja gerando cliques; 2) um comentário que seja crítico a uma outra forma de interpretar essa polêmica; 3) o ocultamento do criticado. Ou seja, encontra-se uma polêmica que está rendendo milhões de views, defende-se um lado dessa polêmica em ataque claro ao outro lado dela, mas nunca se comenta o nome do criticado. A técnica é perfeita porque coloca o crítico em uma posição um tanto conveniente. Se alguém o responder, identificando-se como autor dos conteúdos criticados, basta dizer que não se tratava dele, que é uma projeção ou coisa que o valha. Sem deixar claro o destinatário de toda a sua fugaz acidez crítica, o pseudocrítico fica com os louros de dizer aquilo que muitos pensam, sem encontrar uma resposta às suas próprias opiniões. É um espetáculo que gera adesão dos que concordam e indiferença dos contrários. De todos os modos, fica resguardado o número de likes e compartilhamentos.

E se me gasto nessas especulações generalistas é porque penso muito especificamente em um vídeo de Alan Gentil que pode ser entendido como uma resposta a um texto meu. Pode-se porque ele cita diretamente o título de um texto de minha autoria — Não existe teologia do domínio — ocultando seu subtítulo — a experiência como matriz da teologia — e supostamente se contrapõe ao texto como uma grande falta de sensatez. O curioso mesmo é que nenhum argumento do texto é criticado no vídeo. Ele fica no título, e ao que parece nem leu o texto. Se o leu, deu-se por entendido com o título, que nunca negou ter lá sua forma chamativa e contundente para levar os usuários dessas redes passivas rumo a uma leitura ativa do texto fora delas. 

Vamos aos argumentos do crítico de reels. 

O vídeo começa afirmando que parte do progressismo evangélico teria reagido ao documentário de Petra Costa argumentando que não existe teologia do domínio. Ao que consta nos autos da internet, o que agora vos escreve foi o único que disse as palavras em alto e bom tom, mesmo que não se tratando somente do filme da Petra, que foi devidamente analisado em outro texto. Logo, em resposta a essa afirmação tão irracional, ele discorda e se arma de evidências que, à primeira vista, parecem irrefutáveis. Apresenta capas de livros, citações de lideranças como Silas Malafaia, e declarações que circulam em púlpitos e marchas. “É claro que a teologia do domínio existe”, proclama, “academicamente, intelectualmente e como uma aplicação tácita”. A afirmação é feita com ares de quem desmascara uma perigosa negação da realidade. A ironia, porém, é que o texto original, aquele cujo título causou tanto espanto, nunca negou a existência de discursos que professam um projeto de pátria cristã, e sim os toma como ponto de partida. A questão central nunca foi negar a circulação de uma batalha por um país evangélico, mas sim investigar sua real função e sua genealogia no contexto brasileiro.

A divergência fundamental, ignorada pela crítica de superfície, não reside no se, mas no como e no porquê. A análise que se choca com o “óbvio” opera sob uma premissa implícita: a de que a teologia é uma espécie de software, um conjunto de ideias-força que é importado, instalado nos púlpitos e, a partir daí, formata a mente e a ação dos fiéis. Nessa visão, o fenômeno da politização evangélica de extrema direita é o resultado direto da adoção de um manual de instruções teológico. Malafaia e outros seriam os ideólogos que aplicam o manual, e o povo, a massa passiva que o executa.

É justamente essa inversão que o argumento original busca problematizar, revirando-se no mundo evangélico e vendo que a experiência precede a doutrina. O projeto de poder evangélico não é o filho da “teologia do domínio”, e a dita cuja, como esse ente metafísico que, segundo o crítico, “tomou os microfones, os palanques, as cadeiras do Senado”, de fato não existe. Se os evangélicos acreditam que Deus tem um plano para o seu país, o motor desse fenômeno não é um sistema de ideias importado, mas a própria experiência religiosa popular brasileira, marcada pela luta por sobrevivência, pela busca por dignidade e pela organização comunitária em um contexto histórico de desamparo e de “salve-se quem puder”.

A figura do pastor-empreendedor, a lógica da igreja como um empreendimento de fé que oferece respostas e esperança concretas, a devoção ao texto bíblico como uma máquina de produção de sentido para o cotidiano — essa é a matéria-prima. É desse solo fértil, dessa experiência vivida, que brota um anseio por redenção que, sob a gestão desses líderes, se traduz em um projeto político. As curtas referências à teologia dominionista estadunidense, com seus jargões sobre “tomar a nação” e “dominar as esferas da sociedade”, não é a causa fundadora ou matriz explicativa de nada; esta poderia ser vista um arquivo conveniente, uma linguagem que foi acessada e aclimatada por oferecer uma gramática que ressoava com um impulso já existente.

Quando o crítico pergunta, diante das falas de Malafaia, “Se isso não é teologia do domínio, é o quê?”, ele erra o alvo. A resposta é que aquilo é, de fato, a expressão de um projeto de pátria cristã, mas a questão relevante é outra: por que essa expressão encontra tanta ressonância? A resposta não está nos livros de Rushdoony, desconhecidos pela esmagadora maioria dos fiéis, mas na forma como a promessa de “ser cabeça e não cauda” se conecta com a experiência histórica de quem sempre foi tratado como cauda.

O crítico que se pretende contundente acaba por enfraquecer a própria denúncia que diz defender. Ao se focar no espantalho da “teologia”, ele comete dois equívocos estratégicos. Primeiro, enobrece involuntariamente as lideranças evangélicas, tratando-as como ideólogos sofisticados que implementam um plano teórico, quando sua força reside muito mais em seu pragmatismo como empresários da fé. Segundo, infantiliza a base evangélica, reduzindo-a a uma massa enganada por uma doutrina, ignorando a agência e as razões existenciais que sustentam sua adesão.

A verdadeira denúncia, mais complexa e por isso mais radical, reside em compreender como as condições objetivas, a forma da organização eclesial e a experiência de fé popular se tornam o combustível para um projeto político fascista. Não se trata de negar o perigo evidente, mas de diagnosticá-lo corretamente. Lutar contra a “teologia do domínio” com exegeses bíblicas, como alguns propõem, é lutar contra um sintoma. O monstro real, genuinamente brasileiro, alimenta-se da vida concreta, e não de abstrações teológicas. Uma crítica que se recusa a enxergar isso, satisfeita com o espetáculo de sua própria indignação, acaba, no fim, por apenas confirmar o atraso do debate, que nasce de uma recusa em aceitar que as coisas são, sim, complexas, e da suposição de que uma breve “metafísica do poder” explique nossas desgraças ou de que um vídeo nas redes sociais — ou um documentário na Netflix —  represente uma afronta real a esse projeto de “Brasil avivado”. O que fica, é claro, é a pose de combatente destemido que sempre rende muitos likes. No caso da cineasta, que gostou do vídeo a ponto de colocá-lo no seu perfil, talvez lhe renda até um Oscar.