Sobreviventes denunciam diretor de desbravadores por abusos sexuais ocorridos há 20 anos, revelando falhas institucionais na Igreja Adventista
Por André Kanasiro e Felipe Carmo | editores-chefe da revista Zelota. Matéria elaborada em parceria com a Spectrum Magazine.
O relato a seguir contém detalhes que podem ser perturbadores. Devido a questões legais e de privacidade, todos os nomes das sobreviventes e do suposto agressor foram alterados (indicados por *).
Seus métodos variavam tanto quanto suas vítimas: com algumas, ele assumia o papel de romântico — seduzindo-as com presentes e palavras bonitas; com outras, forçava interações sexuais, supostamente beijando-as, apalpando seus corpos ou esfregando seus genitais quando sentavam em seu colo. A acusação mais grave, no entanto, envolve o estupro de menores. Como diretor do clube de desbravadores, ele tinha influência suficiente para silenciar aquelas de quem abusava, assim como a Associação Central Mineira (AMC) e os líderes da igreja local — que já estavam cientes desses incidentes.
As memórias desse abuso grotesco surgiram em meio a lágrimas, palpitações e falta de ar assim que Angélica* entrou na Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) Central de Betim, no Brasil. O ambiente estava em clima de celebração. Era final de novembro de 2024, e o clube de desbravadores, chamado “Aliança Eterna” desde 2015, comemorava seu 45º aniversário. Cortinas azuis, amarelas e brancas enfeitavam o púlpito, confete cobria todas as superfícies, um carpete azul percorria o corredor central, e muitos presentes usavam lenços azuis comemorativos no pescoço. Mas aquele não era um lugar feliz — não para ela, pelo menos. Ela nunca quis voltar — não depois de tudo o que havia passado. Mas prometeram que ele não estaria lá.
O convite não foi sem contexto. Angélica, que havia dirigido o clube na década de 2010, foi convidada ao evento para ser homenageada, junto com vários outros ex-líderes de desbravadores. Apesar do clima festivo, a alegria e a nostalgia estavam longe de seus pensamentos quando seu nome foi chamado. O peso do medo a pressionava enquanto subia ao púlpito. Os tremores de seu recente ataque de pânico ainda dominavam seu corpo — agora ela precisava vestir uma máscara e fingir estar bem.
A fonte de sua ansiedade estava no palco, a poucos metros de distância, entre os diretores homenageados: José*, 66 anos, que supostamente estuprou e abusou sexualmente de Angélica dos 11 aos 15 anos. Ela não estava sozinha em sua experiência naquele dia — nem na dor do abuso passado, nem na indignação que aquela celebração provocava. Se aquele momento — forçando-a a assistir seu antigo abusador receber honras e elogios — desencadeou um profundo descontrole, também acendeu uma chama interior: agora adultas, as mulheres que José supostamente abusou decidiram revidar.
O lado negro do Arco-Íris
Angélica ingressou no clube de desbravadores em 2001, quando tinha apenas 11 anos. Nascida em uma família adventista, frequentava uma igreja próxima, que seus avós ajudaram a fundar anos antes. O clube, criado por José e Charles Vianini, na Igreja Central de Betim, era muito menor do que é hoje e tinha um nome diferente: “Arco-Íris”. “Nosso clube era bem pequenininho, era um clube miudinho”, recorda Angélica. Na época, José estava em seu segundo mandato como líder do clube, tendo atuado anteriormente como diretor ou associado, alternando com Vianini desde a fundação em 1977 até 1981. Aos 44, já casado há vários anos, ele reassumiu essas funções, tornando-se diretor associado em 2000 e, depois, diretor em 2001.
O clube tinha cerca de 30 crianças, com idades entre 10 e 15 anos, mas José estava sempre perto das meninas. De fora, ninguém desconfiava de nada. “Ninguém via maldade”, diz Angélica. Ele frequentemente levava as meninas de carro para as reuniões e cultos. Muitas vezes, ele as levava ao shopping para tomar sorvete ou assistir a um filme no cinema depois de eventos da associação. Foi em uma dessas caronas que ele a assediou pela primeira vez. Ela tinha apenas 11 anos. “Aconteceu nos meus primeiros meses no clube”, relata. “Ele era um dos melhores amigos do meu pai, então me dava carona às vezes para a reunião.”
Numa quarta-feira, após um culto — como contou ao jornal O Tempo — José a levou para tomar sorvete e, no caminho de volta, estacionou o carro atrás de uma igreja no bairro Jardim Alterosa. Ele a abraçou por trás, com os genitais expostos, a colocou dentro do carro e começou a estuprá-la. “Senti muita dor. Pedi para ele parar, mas ele continuou”, disse ao jornal. Depois, ele a deixou em casa “como se nada tivesse acontecido.” Isso se repetiu pelos próximos quatro anos. “No começo, acontecia a cada duas semanas”, compartilhou com a Zelota. Mas, à medida que ele ganhava confiança, passou a ocorrer “toda quarta, domingo e até sexta.”
Como muitas sobreviventes de abuso sexual, Angélica sentia uma culpa profunda, como se fosse responsável — mas sem saber como parar. “Ele dizia que ninguém podia descobrir sobre nós, senão a gente ia ter que sumir, e eu nunca mais ia ver meus pais.” Com o tempo, ela começou a acreditar que estavam em algum tipo de relacionamento e que precisavam mantê-lo em segredo, pois a igreja ensinava que sexo antes do casamento era proibido.
Somente aos 14 anos ela finalmente percebeu que não era a única. “Ele se gabava de ficar com outras garotas, e eu entendi que não era especial como ele me fazia pensar.” Algumas dessas meninas também relataram seus abusos ao O Tempo: Carolina*, então com 13 anos (2002), foi penetrada com os dedos por José em uma piscina durante um evento da conferência. Ele disse que “ia ensiná-la a nadar”. Juliana*, aos 12 anos, foi assediada em um cinema, onde ele a abraçou e apalpou seus seios. “Acho que ele só não me estuprou porque não teve a oportunidade de ficar sozinho comigo”, contou ao jornal.
“Vagabunda sem vergonha”
Os pais de Angélica descobriram os abusos que a filha sofria no final de 2004, quando ela chegou em casa no carro de José depois da meia-noite e ele foi visto acariciando sua perna. Em vez de conversar com ela sobre o ocorrido, o pai de Angélica levou o caso a alguns líderes da Igreja Central, entre eles Vianini. Inicialmente disposto a ir à polícia, seu pai foi incentivado a deixar esquecer o assunto e não contar a mais ninguém o que presenciou: era véspera do 3º Campori da Divisão Sul-Americana (DSA), chamado Fonte de Esperança, estava tudo certo para que o clube Arco-Íris participasse, e, como José era o responsável pela viagem, tal escândalo poderia comprometer os planos.
O pai de Angélica acatou e ficou em silêncio, enquanto sua mãe a chamava de “vagabunda” por ficar com um homem casado — sem perceber que não era uma escolha, mas abuso. Em janeiro de 2005, o clube foi ao campori com a temática da esperança. Angélica foi abusada sexualmente mais uma vez durante o evento. Ela contou que conheceu pelo menos uma outra sobrevivente que também foi abusada por José durante o campori.
Nos meses seguintes, surgiram novos relatos de abuso sexual por parte de José. Após o campori, espalhou-se a informação de que a sobrinha de 14 anos de um ancião da igreja também havia sido abusada por ele. Seu tio levou o caso à comissão da igreja, mas a menina foi desligada da membresia por “ser uma safada”, de acordo com Angélica. Durante um acampamento do clube, uma menina de 13 ou 14 anos foi beijada por José, mas corajosamente decidiu denunciá-lo. Desta vez, havia uma testemunha: uma amiga da menina viu tudo e confirmou a história. Como o caso começou a se espalhar e a igreja não conseguiu mais abafá-lo, José acabou sendo desligado da membresia. Ele e sua esposa se divorciaram na mesma época.
Um líder de desbravadores que frequentava uma igreja próxima em 2005 confirmou à Zelota que José era muito bem visto, especialmente entre os desbravadores. “Ele era um ‘excelente’ diretor na época, era muito conhecido”, disse. José também auxiliava a associação quando possível, o que aumentava sua popularidade. No entanto, seu status tornou-se ambíguo quando boatos sobre suas ações começaram a circular. “Na época foi muito comentado”, recorda o líder. Na tentativa de salvar sua reputação, José “disse a todos que foi beijado por uma desbravadora durante sua ronda noturna” no acampamento e que “não a impediu”. Nenhum outro caso veio à tona. E um ano depois, José foi rebatizado.
Segundo Angélica, a menina que fez a denúncia permanece membra da IASD até hoje. Porém, a garota que testemunhou o assédio estava concluindo seus estudos bíblicos e se preparando para o batismo. Como o seu testemunho expôs José ao confirmar a história da amiga, os líderes da igreja adiaram seu batismo por um ano inteiro. “Quando ela viu José ser rebatizado enquanto ainda esperava sua vez, ela foi embora e nunca mais voltou”, diz Angélica.
Após o rebatismo, José nunca mais liderou um clube de desbravadores. Mesmo assim, essa não seria sua última função na liderança da IASD.
Na Tropa de Elite
Em 2006, Eduardo Batista, na época o diretor de jovens da AMC, apoiou a criação de um ministério de apoio chamado GATRE (sigla para “Grupo Adventista de Treinamento Especial”). O grupo era formado por líderes leigos da igreja com habilidades para fornecer apoio logístico e de segurança em eventos da associação. Relembrando a função do GATRE nos eventos da igreja, em tom de brincadeira, um membro da região disse à Zelota que eles eram a “Tropa Elite” da igreja — uma referência ao filme de ação policial Tropa de Elite (2007).
O filme, dirigido por José Padilha, foi um sucesso nacional — especialmente entre a extrema direita — por sua crítica aos intelectuais de esquerda e suas soluções policiais violentas para problemas estruturais. O GATRE, com seus uniformes militares e comportamento rígido, remetia à cultura retratada no filme. José, já rebatizado, foi um dos fundadores do GATRE, e foi nomeado por Batista como coordenador leigo do ministério jovem no território.
GATRE em um campori de líderes de 2012. José está no centro da foto. Fonte: Facebook
Segundo Angélica, é improvável que a associação não soubesse do passado recente de José ao nomeá-lo para essa nova posição de liderança. “Nesse período entre a retirada e o rebatismo do José, o pai de uma menina descobriu que ela foi abusada pelo José depois que ela fez um teste de gravidez”, contou Angélica à Zelota. O pai da garota foi à casa de José com intenção de matá-lo, e a igreja estava plenamente ciente disso. Ela também relatou que o ancião, cuja sobrinha foi abusada por José, levou o caso à associação assim que o escândalo veio à tona.
Em 2013, José casou-se com sua segunda esposa, Andressa Lima Borges, que era 29 anos mais jovem — uma diferença de idade similar à que havia entre José e suas vítimas anteriores, embora Borges não fosse menor de idade. Eles se conheceram em 2011, e o romance começou após um período de interações amigáveis. Borges descreveu seu relacionamento como inicialmente bom, mas logo começou a notar padrões estranhos em seu comportamento. Em seu depoimento ao canal local Betinense no YouTube, ela afirmou ter encontrado mensagens que ele enviava a outras mulheres, incluindo pelo menos uma menor de idade. Durante esse período, José chegou a liderar o clube de aventureiros de sua igreja, cuidando de crianças entre 6 e 9 anos de idade.
José (abaixo à direita) no clube dos aventureiros em 2017. Fonte: Facebook
Em seu relato, Borges se esforçava para conter as lágrimas, fazendo pausas para recuperar o fôlego. Mesmo assim, ela se lembrava com clareza: uma das supostas meninas que José teria assediado era sua vizinha — na época, com apenas 13 ou 14 anos. Anos depois, a garota teria procurado Borges para se desculpar, confessando um “relacionamento” passado com José e revelando que estivera com ele durante seu tempo como desbravadora.
Borges conta que frequentemente confrontava José sobre suas infidelidades. Ele pedia perdão, apenas para recomeçar — classificando a maioria das conversas como “conversas bobas”. Mesmo assim, suas desculpas raramente a convenciam. Em uma mensagem, ele supostamente disse a uma jovem que desejava “cobrir seu corpo com beijos e amor”. Essas interações podem ter envolvido dinheiro. José supostamente recarregava os celulares pré-pagos das garotas para manter contato e, ocasionalmente, enviava presentes ou pequenas quantias sob o pretexto de “ajudá-las”. Sua ex-esposa interpretava esses gestos como pagamento por favores sexuais.
“Não muda, não”
A infidelidade constante fez com que Borges perdesse completamente a vontade de ter intimidade com José. Com o tempo, ela passou a recusar relações sexuais, ficarando meses sem qualquer contato. Foi aí que, segundo Borges, ele a violentou enquanto estava deitada na cama. “Ele segurou minhas mãos. Me viu chorando, enxugou minhas lágrimas e continuou.” Depois disso, ela relata várias ocasiões em que, após comer algum lanche que ele trazia, acordava na cama com outras roupas, e se sentindo violada. Hoje, ela acredita que foi drogada e estuprada por José.
Chegou um momento em que ela passou a falar em divórcio. Ele, porém, a ameaçava, dizendo que ela sairia sem um centavo, que “[ela] não era nada” antes de conhecê-lo. “Quando disse que pediria a quebra de seu sigilo bancário” para garantir uma pensão justa, “ele me jogou escada abaixo”, contou Borges. Aquilo foi a gota d’água. Depois de se recuperar dos ferimentos, no início de 2018, ela se divorciou de José e voltou para sua cidade natal, Uberlândia (MG). No entanto, assinou um acordo desvantajoso. “Aceitei porque tinha medo dele”, declarou no vídeo do Betinense.
Em uma conversa com a Zelota, mediada por Angélica, Borges deu mais detalhes. Disse que buscou apoio de líderes da igreja durante o divórcio: “Fui à associação e convidei o Pr. Fábio Meireles para minha casa.” Após ouvir seu relato, Meireles teria dito que “pelo ocorrido, que a igreja preza pela restauração do relacionamento, mas que eu tinha o direito de ir embora” devido aos casos extraconjugais de José.
Borges também procurou Eduardo Batista, então líder dos ministérios jovem, desbravadores e aventureiros na União Norte Brasileira (UNB). Ela o encontrou com a esposa durante um evento em Caldas Novas (GO) e contou tudo o que havia acontecido. “Ele baixou a cabeça e disse: ‘não muda, não’”. José não sofreu qualquer disciplina eclesiástica depois disso. Em 2019, ele se casou novamente com sua primeira esposa.
A Zelota entrou em contato com Meireles e Batista para maiores esclarecimentos, mas não obteve resposta até a data de publicação.
Quebrando o silêncio
Em 2020, Angélica finalmente deixou a IASD. Ela passou os últimos 15 anos tentando evitar José, mudando de igreja toda vez que ele começava a frequentar o mesmo local que ela. Chegou a ser diretora do mesmo clube de desbravadores onde sofreu anos de abuso, mas se recusava a ir a eventos da associação com medo de encontrá-lo. Como consequência do que viveu, desenvolveu depressão clínica, pensamentos suicidas e quase não falava mais com a família. “Meu pai, meus irmãos e eu éramos muito amigos antes de tudo acontecer”, lembra. “Depois disso a gente se afastou, minha família toda largada. Meu pai até hoje é amigo do José. Minha relação com a família foi destruída.”
Após sair da igreja, Angélica só voltou a um culto em novembro de 2024, no 45º aniversário do Clube de Desbravadores Arco-Íris (agora “Aliança Eterna”). O motivo foi a promessa, do atual diretor, de que José não estaria presente. “Mas lá estava ele, de uniforme de desbravador e tudo.” Quando questionou a coordenadora Sônia Valbonetti sobre a presença dele, a resposta foi reveladora: “Ela disse que já sabia de tudo, que José havia contado e que ela já o havia perdoado”, compartilhou Angélica. “Foi quando entendi que nada ia mudar se a gente não fizesse alguma coisa.” Naquele mesmo evento, ela começou a reunir outras sobreviventes para organizar seus próximos passos.
Em 5 de dezembro de 2024, Angélica e outras duas vítimas registraram um boletim de ocorrência contra José. Após a comissão da Igreja Central de Betim ignorar a denúncia, tentaram contatar a AMC por telefone várias vezes — sem sucesso. Enquanto isso, encontraram mais sobreviventes e conheceram Andressa, a ex-esposa de José.
Finalmente, em 10 de março de 2025, enviaram um ofício ao presidente da AMC, Eduardo Acencio, e ao presidente da União Sudeste Brasileira (USEB), Hiram Kalbermatter. No documento, além de resumirem suas histórias, as mulheres pediram: a remoção imediata de José da igreja; a retirada de suas credenciais e lenço de líder de desbravadores e jovens; que a educação sexual se tornasse obrigatória aos desbravadores e aventureiros; um pedido de desculpas público da IASD; e a verificação de antecedentes criminais para qualquer pessoa que trabalhe com crianças na igreja.
O ofício destacava: “O programa ‘Quebrando o Silêncio’ ajuda muitas pessoas, mas quando os casos acontecem dentro da igreja eles são silenciados e abafados em nome do perdão e de não manchar o nome da IASD.” Criado em 2002 pela DSA, o Quebrando o Silêncio atua em oito países com atividades como passeatas, palestras e distribuição de materiais educativos contra abuso sexual e violência doméstica.
A reunião
Acencio e Kalbermatter finalmente concordaram em se reunir com as vítimas na sexta-feira, 21 de março. Angélica, Andressa e mais uma sobrevivente estavam presentes. Do lado da igreja, estavam representados por Acencio e o secretário da associação, Nelson Nunes. Os pastores Eduardo Casadei, da IASD Jardim Alterosa, e Claudio Soares Sampaio, da IASD Central de Betim, também estavam presentes, já que ambas as igrejas abrigam José por muitos anos. A pauta da reunião, cuidadosamente redigida e impressa por Angélica, continha as mesmas exigências que o ofício: a remoção de José como membro e mudanças institucionais na IASD.
“Eles nos disseram que a gente tinha todo o direito de denunciar, mas que como igreja eles não podiam fazer nada”, Angélica relembra. Segundo ela, os pastores pareciam mais interessados em determinar se Andressa tinha saído com alguém antes do novo casamento de José. O Manual da Igreja determina que o primeiro cônjuge a se relacionar com alguém após o divórcio está sujeito a disciplina eclesiástica por adultério, embora isso não se aplique caso o divórcio tenha sido por adultério. Embora isso fosse só uma fração do que as mulheres exigiam, os líderes da IASD lhes asseguraram de que José não poderia permanecer na Igreja Adventista. Angélica e as outras mulheres saíram da reunião pensando que o assunto estava resolvido e que elas estariam protegidas.
Alguns dias depois, aproximadamente no dia 24 de maio, Casadei e Acencio se reuniram com José para ouvir sua versão dos fatos e lhe entregaram uma cópia do boletim de ocorrência preenchido por Angélica e pelas outras mulheres — com os nomes das denunciantes — conforme admitido por Casadei para Angélica.
“Você tem noção de que vocês nos colocaram em perigo? Não sei o que este homem pode fazer agora,” ela respondeu por mensagem. Em uma ligação com o marido de uma sobrevivente, um dos pastores se desculpou por colocá-las em perigo e afirmou que tinham agido com a melhor das intenções. Ao ser questionado se ele mostraria o boletim de ocorrência ao acusado se sua filha fosse a vítima, o pastor respondeu: “sim, eu mostraria”.
Na conversa com os pastores, José teria admitido infidelidade em 2001-2005, mas não confessou ter ficado com menores de idade. Como resultado, ele foi removido de posições de liderança, incluindo o cargo de ancião da igreja local, mas não foi disciplinado ou removido da IASD. A garantia dada às mulheres não foi cumprida. “Eles me disseram que precisavam de vítimas recentes e provas realmente válidas para removê-lo como membro”, disse Angélica.
Indignadas pelas tentativas mal-sucedidas de responsabilizar José, as sobreviventes decidiram denunciá-lo publicamente. No dia 28 de março, o Betinense publicou uma entrevista de 30 minutos com duas sobreviventes, os rostos escondidos. No dia 29 de março, Sampaio revelou publicamente os nomes das sobreviventes ao público na IASD Central de Betim após recomendar aos membros que não conversassem com a imprensa. E então, no dia 30 de março, foi a vez de Andressa de ir a público na entrevista supracitada com o Betinense — poucos dias após ela fazer seu próprio boletim de ocorrência.
Ao ser contatada pela Zelota, a AMC forneceu a seguinte nota, também fornecida a outros veículos de imprensa: “A Igreja Adventista do Sétimo Dia da Região Central de Minas Gerais comunica que tomou conhecimento das denúncias e, de forma imediata, afastou José de suas atividades como membro voluntário na igreja local e abriu processo disciplinar de remoção. A Igreja está colaborando integralmente com as autoridades competentes para que toda e qualquer denúncia de abuso sexual, ou de qualquer outra forma de abuso, seja rigorosamente apurada. Reiteramos que não compactuamos com qualquer forma de abuso ou conduta inapropriada.” Por fim, ela “informa que disponibilizou apoio psicológico especializado às vítimas e continuará oferecendo todo o acolhimento e suporte necessários.”A Zelota entrou em contato com a advogada de defesa de José, que enviou a seguinte nota:
Agradeço pelo contato e pela consideração em abrir espaço para manifestação. Contudo, informo que o processo envolvendo o referido tramita sob segredo de justiça, o que impede qualquer pronunciamento público a respeito do caso, bem como das acusações nele imputadas.
Os esclarecimentos pertinentes serão prestados no momento oportuno, perante as instâncias competentes, com o devido respeito às garantias legais, ao contraditório e à presunção de inocência, pilares fundamentais do Estado de Direito.
Reiteramos, ainda, a importância da responsabilidade e do cuidado na abordagem de temas sensíveis, especialmente enquanto pendentes de julgamento pelas vias legais competentes.
Nada de desculpas
Desde que a história veio a público, vários veículos de mídia publicaram reportagens a respeito, inclusive a Globo. Em resposta, a AMC novamente deu a declaração acima. Desde então, Angélica conheceu outras sobreviventes que foram abusadas entre 2001 e 2005, algumas das quais também fizeram boletins de ocorrência contra José. Além disso, ela afirma que sobreviventes mais recentes começaram a se apresentar diretamente à delegacia, embora não saiba os nomes delas. De acordo com Angélica, as sobreviventes agora são quase 15.
No dia 11 de abril, a AMC fez uma reunião privada no Zoom com diretores de clubes de desbravadores no território. Na reunião, acompanhado pelo advogado da associação, o líder de desbravadores da associação “reconheceu o erro da igreja no passado , mas falou que a igreja de hoje não age mais assim”, segundo o relato de um diretor à Zelota. No dia seguinte seria o Impacto Esperança, programa anual de evangelismo no qual adventistas de todo o país saem às ruas para distribuir livros. “Os clubes de desbravadores da cidade de Betim foram proibidos por parte da associação de usar o uniforme oficial”, disse o diretor. “O acontecido impactou muito a cidade.”
“A gente quer que a igreja assuma a culpa e mude”, respondeu Angélica com firmeza ao que as sobreviventes esperam além de justiça. “A gente questionou isso na reunião e ouviu que a igreja não podia se desculpar pelos erros de líderes anteriores.”