A Teologia da Libertação se fundamenta na prática de libertação do pobre, é sistematizada pelas Comunidades Eclesiais de Base e enriquecida pela teologia profissional com análises teóricas interdisciplinares
Por Pablo Richard | teólogo e biblista chileno, foi cofundador do Departamento Ecumênico de Investigações (DEI), na Costa Rica. Texto traduzido do espanhol1 por André Castro; revisado e adaptado à revista Zelota por André Kanasiro.
Nota do tradutor
Diante de um sujeito político-teológico que parece estar direcionando à vida nacional, elegendo presidente, deputados, senadores e todos os cargos do executivo e do legislativo, além da militância no nível judiciário, certa parcela progressista bem intencionada retoma a memória da Teologia da Libertação (TdL) como uma possível saída. O texto que traduzimos e que se segue nos serve exatamente para escaparmos dessa armadilha. Nele, Richard nos apresenta uma forma séria e completa de interpretar o que foi a TdL em suas três instâncias: a experiência espiritual, a luta política e a formulação propriamente teológica. Pensar entre esses três níveis, que necessariamente precisam estar correlacionados, nos ajuda a entender que o feito maior da TdL não foi abordar o tema da libertação a partir de uma ótica política, mas sim levar a teologia à experiência espiritual vivida na práxis política. Os textos teológicos profissionais tinham relevância, deste modo, naquele contexto social de luta contra o subdesenvolvimento que se cifrava na luta contra a dependência, e portanto, pela libertação latino-americana. Tentar reabilitar a TdL para que ela leve ao processo de libertação é não ter entendido a própria origem experiencial-espiritual que a fez surgir.
A TdL não tem uma forma ou estrutura única. Nasce como teologia espiritual na prática de libertação do povo pobre e crente latino-americano. Desenvolve-se como teologia orgânica nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Amadurece como teologia profissional em diálogo fecundo com a ciência teológica-universal. A TdL possui, assim, um itinerário espiritual no mundo dos pobres, um desenvolvimento teórico nas Comunidades Eclesiais de Base e uma força libertadora no mundo científico da teologia profissional.
O sujeito da TdL também é múltiplo. No primeiro nível, o sujeito é o próprio povo pobre e crente; no segundo nível, é a CEB e, no terceiro nível, o sujeito é o teólogo profissional, libertado pela força evangelizadora dos pobres, alimentado pela reflexão teórica da CEB e em comunicação permanente com o mundo da ciência teológica.
De acordo com tudo o que foi mencionado anteriormente, dividimos este artigo em três partes:
1. A TdL como teologia espiritual na prática de libertação do povo;
2. A TdL como teologia orgânica nas CEB;
3. A TdL como teologia profissional.
A Teologia da Libertação como teologia espiritual na prática de libertação do povo
A TdL sempre teve como raiz e fonte uma dupla experiência espiritual: a experiência de Deus como o Deus dos pobres e a experiência do pobre como local de encontro com Deus. Deus e o pobre são, assim, os referentes que nunca faltam em toda a TdL.
A experiência do pobre possui uma dimensão múltipla: econômica, política, cultural e ideológica. É uma realidade complexa que inclui classes e grupos explorados; raças e etnias humilhadas; homens e mulheres marginalizados e desqualificados pelo sistema; mulheres e crianças pobres, duplamente oprimidos. Além disso, o mundo do pobre é uma realidade dinâmica, pois trata-se do povo pobre em movimento, ou seja, do movimento popular: o povo organizado e consciente, sujeito de sua própria história. O povo dos pobres é uma realidade social objetiva, mas também é um mundo de valores e símbolos, com um sentido próprio do sofrimento, da celebração e da festa. Todo esse mundo da consciência do pobre tem um mistério difícil de penetrar e compreender. Quando na Teologia falamos de prática de libertação, referimo-nos à transformação de toda essa realidade múltipla, complexa, dinâmica, objetiva, consciente e misteriosa que envolve a experiência do pobre.
A experiência do pobre é comum e universal a todos os que lutam pela libertação, mas para o crente adquire uma profundidade espiritual na medida em que a experiência do pobre se torna o local do encontro com Deus. A prática de libertação tem certamente uma densidade política, teórica e orgânica, mas, à luz da fé, também possui uma densidade espiritual. Quem não conhece o mundo dos pobres e se situa fora de uma prática de libertação, não está apenas errado politicamente, mas também está espiritualmente perdido, pois se coloca fora do lugar do encontro com Deus.
A prática histórica de libertação não nos leva de forma mecânica nem necessariamente à experiência de Deus, mas é a condição de possibilidade de nossa parte para acolher o dom e a graça dessa experiência. No surgimento da TdL, há certamente uma prática política de libertação, mas não é a prática política de libertação, e sim a nova experiência de Deus no interior dessa prática, que gera a Teologia. A experiência de Deus é a dimensão espiritual e transcendente vivida no interior da prática histórica de libertação. Esta é a raiz e o impulso original da TdL. Aqueles que atacam ou deslegitimam a TdL justamente desconhecem ou negam esta dimensão espiritual e transcendente da prática de libertação, reduzindo-a a uma dimensão puramente política. A mesma operação foi feita pelos fariseus quando interpretaram a prática de Jesus como a de um louco ou de um endemoniado, esvaziando-a de todo o seu potencial messiânico. Este pecado foi qualificado por Jesus como um pecado contra o Espírito Santo, que não tem perdão. O pecado consistia em desconhecer a prática de Jesus como local da revelação de Deus na história (cf. Mc 3.20-30). Aqueles que desconhecem a dimensão espiritual da prática de libertação dos pobres ignoram o mais próprio e específico da TdL. Isso também é um pecado contra o Espírito e uma blasfêmia contra o Deus dos pobres e contra a experiência do pobre como lugar de encontro com Deus.
A experiência espiritual no interior da prática de libertação também nos faz viver essa prática de uma maneira diferente, pois a fé nos dá a segurança do sucesso total dessa prática e da plenitude total da libertação que buscamos. A razão última dessa dimensão utópica da prática é a experiência de Deus como experiência transcendente interior à mesma prática. O que se transcende não é a prática em si, mas os limites da prática. Deus não é vivido além da prática, mas como plenitude que supera toda impossibilidade humana, natural ou imposta, no interior da prática. Toda essa espiritualidade utópica e transcendente é vivida no interior das exigências políticas, orgânicas e teóricas da prática histórica de libertação. É nessa prática que se revela a dimensão libertadora da fé cristã. A TdL não pretende ser mais do que uma reflexão crítica a partir dessa dimensão libertadora da fé cristã. A fé não se deixa contaminar com elementos estranhos, pois é vivida com todo o seu dinamismo específico libertador no interior de uma prática sem substituir os elementos científicos, políticos e orgânicos próprios da prática, e é compartilhada pelo cristão com todos os que lutam pela justiça. Caso contrário, a espiritualidade cristã, como dimensão transcendente e utópica da prática, se converteria em fideísmo ou em ideologia. Há fideísmo quando, em nome da fé, se decide o que é científico ou o que é politicamente correto. Há ideologia quando se utiliza a fé para legitimar uma posição científica ou uma prática política. Acreditamos que a TdL, ao resgatar a fé como experiência espiritual no interior de uma prática de libertação, evita o fideísmo ou a ideologia e consegue articular dialeticamente o dinamismo transcendente, utópico e libertador da fé com as exigências políticas, teóricas e orgânicas da prática histórica de libertação.
A experiência de Deus como Deus dos pobres e a experiência do pobre como local do encontro com Deus é a espiritualidade interior à prática histórica de libertação. Gostaríamos de insistir que essa espiritualidade é o primeiro momento e a raiz fundamental da TdL, e que o sujeito deste primeiro momento é o próprio povo pobre e crente latino-americano. Para esclarecê-lo, podemos partir da expressão criada pela Conferência de Puebla: “o potencial evangelizador dos pobres” (Nº. 1147). Esse potencial é uma autêntica força espiritual e teológica que o povo pobre e crente desenvolve a partir de sua experiência privilegiada de Deus. A TdL tem levado a sério e estabelecido como princípio metodológico as palavras de Jesus: “Bendito sejas, Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos; sim, Pai, porque assim foi do teu agrado” (Mt 11.25). São os pobres que realmente possuem “os segredos do Reino” (cf. Mc 4.11). A originalidade da TdL não está tanto em suas opções políticas ou em suas mediações socioanalíticas, mas sobretudo em sua capacidade de descobrir e explicitar essa experiência de Deus vivida pelos mais pobres.
A função da TdL, portanto, não foi introduzir a política na teologia, mas introduzir a teologia na experiência de Deus que o povo pobre e crente realiza em sua prática política de libertação. A TdL, em última análise, significa o direito do povo de pensar e manifestar publicamente todo o seu potencial evangelizador, espiritual e teológico; é o direito dos oprimidos de pensar e dar a razão de sua esperança e de sua utopia.
A Teologia da Libertação como teologia orgânica nas Comunidades Eclesiais de Base
A fé é uma experiência vivida, mas também deve ser confessada e comunicada a outros. Da prática da fé deve sempre nascer o testemunho. Isso é o que constitui a maturação orgânica, comunitária e eclesial da fé. Isso implica uma institucionalização da fé, necessária para que ela adquira corpo histórico e possa ser comunicada de forma crível e significativa ao conjunto do povo, gerando em seu interior novas práticas de fé. O que dizemos em geral sobre a fé, podemos também dizer do “potencial evangelizador” da fé dos pobres. Esta experiência espiritual e teológica, ativamente presente no mundo dos pobres, precisa ser discernida, explicitada e sistematizada, e é isso que faz a TdL.
A TdL, que nasce do conhecimento da fé dos pobres, tem agora como sujeito imediato aquele movimento eclesial chamado “Igreja que nasce do povo”, ou seja, a Igreja que surge da resposta de fé que os meios populares dão ao Senhor (Puebla Nº. 263). Esta é a Igreja convertida, comprometida com os pobres e renovada a partir das CEBs, a qual se revela e descobre, em primeira mão, esse potencial evangelizador que é a força teológica dos pobres (Puebla Nº. 1147). Segundo este texto de Puebla, o “potencial evangelizador dos pobres” não se descobre espontaneamente, mas na medida em que a Igreja se converte, se compromete com os pobres e se renova a partir das CEBs. A TdL que busca discernir, explicitar e sistematizar esse “potencial evangelizador dos pobres” deve ser a teologia orgânica das CEBs, já que é lá onde se descobre, revela e reflete esse potencial espiritual e teológico dos pobres. Os teólogos também só podem participar deste processo teológico que nasce da espiritualidade dos pobres, incorporando-se como teólogos na vida das CEBs. São também estas comunidades que mantêm o teólogo em toda a sua força e criatividade teológica.
Agora veremos as formas que essa teologia orgânica assume no interior da Igreja dos pobres na América Latina. Estas formas são múltiplas e complexas. Aqui, analisaremos apenas as duas formas mais fundamentais e universais a todo esse movimento em nosso continente: a interpretação da Bíblia e a criatividade teológica específica no interior das CEBs.
a) A interpretação bíblica nas Comunidades Eclesiais de Base
Interessa-nos aqui explicar a estrutura teológica do uso que as CEBs fazem da Bíblia. Nas CEBs, a Bíblia nunca é considerada como uma referência fundamental em si mesma. A Bíblia tem como referência fundamental a experiência de Deus na história dos oprimidos. A Bíblia é, sobretudo, um critério de discernimento da experiência de Deus na experiência do pobre e um meio de comunicação a outros dessa experiência fundamental. A experiência de fé dos pobres é discernida pela leitura bíblica e comunicada a outros pela chamada releitura bíblica. Lemos a Bíblia para discernir a Palavra viva de Deus em nossa história atual, e comunicamos este discernimento em uma releitura bíblica. O texto da Bíblia é assim indispensável como critério de discernimento e de comunicação da Palavra de Deus, e, como tal, esse texto é algo relativo. O absoluto é essa revelação do Deus vivo na história. A Bíblia existe em relação a essa revelação. A absolutização da Bíblia (fundamentalismo bíblico) levou à relativização de Deus e finalmente à sua manipulação. Nós buscamos resgatar o verdadeiro sentido da Bíblia a partir do absoluto da presença libertadora de Deus na história dos pobres e oprimidos. Buscamos superar assim uma leitura bíblica e uma releitura bíblica puramente intrabíblica. Quando lemos a Bíblia, não o fazemos somente para ficarmos instalados em uma compreensão do texto bíblico (por mais que alarguemos o horizonte de sentido do texto), mas lemos a Bíblia para discernir e comunicar essa presença e revelação de Deus no mundo dos pobres; lemos a Bíblia para discernir e comunicar a outros o “potencial evangelizador dos pobres”, que é a vertente espiritual e teológica presente no movimento popular. Vamos agora ver sucessivamente tanto a leitura bíblica como a releitura bíblica.
A leitura da Bíblia realizada em função do discernimento da Palavra viva de Deus na história é uma leitura determinada pela experiência de fé que as Comunidades fazem dessa Palavra de Deus em sua própria história. É o potencial evangelizador, espiritual e teológico dos pobres, explicitado e sistematizado pelas Comunidades cristãs, que orienta e determina a leitura e explicação do texto bíblico. Neste sentido, nos distanciamos na América Latina do método chamado “leitura materialista da Bíblia”. Este método, nascido na Europa, aporta muitos elementos úteis à compreensão da Bíblia ao estudar os condicionamentos passados, de ordem econômica, social ou política, que influenciaram na gestação do texto bíblico. No entanto, na interpretação da Bíblia que fazem nossas CEBs, é mais importante o condicionamento atual do texto bíblico ao ser utilizado como critério de discernimento de uma realidade espiritual vivida na situação econômica, social e política contemporânea. O texto bíblico em nossas Comunidades não é interpretado fundamentalmente a partir de sua arqueologia (ou seja, do processo histórico passado que o gerou), mas a partir de sua instrumentalidade (ou seja, de sua utilização atual como critério de discernimento da Palavra viva de Deus na história). O texto da Bíblia não é fundamentalmente interpretado a partir de seus condicionamentos passados, mas é interpretado para discernir uma experiência espiritual presente. O texto bíblico não é considerado apenas como produto de um processo histórico passado, mas principalmente como instrumento ativo de discernimento de uma experiência espiritual histórica presente. O estudo dos condicionamentos arqueológicos do texto é importante, mas é um estudo posterior que deve estar a serviço da interpretação bíblica fundamental realizada pelas CEBs. A exegese (ou seja, a explicação do texto bíblico) profissional e científica deve estar inspirada e orientada pela exegese básica e fundamental das Comunidades.
A assim chamada releitura bíblica apresenta-se também de uma maneira distinta a partir da experiência teológica das CEBs. A releitura bíblica não é simplesmente a explicação ou o comentário de um texto bíblico, mas seu objetivo imediato é a comunicação da experiência de Deus vivida em nossa história e que foi previamente discernida pela leitura bíblica. Essa comunicação espiritual é feita normalmente através da releitura ou “recriação” de um texto bíblico, mas o objetivo da releitura não é comentar esse texto bíblico, e sim comunicar a experiência de Deus discernida no mundo dos pobres. O objetivo final da releitura bíblica não é interno à própria Bíblia, mas interno à experiência espiritual vivida e comunicada no coração da história dos pobres. A Bíblia nos revela onde e como Deus se revela a nós hoje (e assim utilizamos a Bíblia como critério de discernimento da Palavra de Deus), e comunicamos esta revelação da Palavra de Deus em uma releitura bíblica (e assim utilizamos a Bíblia como meio de comunicação de uma experiência espiritual vivida na história). O absoluto neste processo de interpretação da Bíblia é a experiência de Deus na profundidade espiritual de nossa história. O relativo é a utilização da Bíblia em função dessa experiência espiritual. A releitura bíblica certamente nos leva também a uma melhor compreensão do texto bíblico, mas o objetivo da releitura bíblica não é a compreensão do texto, e sim o discernimento e comunicação da Palavra viva de Deus na história. A releitura bíblica é, portanto, um processo fundamentalmente intra-histórico, e não um processo puramente intrabíblico.
A CEB, ao realizar este “movimento bíblico” (profético-apocalíptico), através da leitura e releitura da Bíblia, realiza uma atividade teológica orgânica, que a constitui e desenvolve como CEB. A CEB chega a ser o testemunho, a institucionalização, o corpo que materializa essa atividade teológica. Uma das experiências mais ricas e transparentes da Igreja latino-americana tem sido justamente o surgimento das CEBs a partir deste movimento bíblico de base, uma autêntica atividade teológica que tem a própria CEB como sujeito.
A TdL, como movimento bíblico-profético a serviço da experiência espiritual do povo, é o que cria o espaço teórico específico que permite o surgimento e construção das CEBs no movimento popular e que permite, por sua vez, a essas CEBs comunicar e difundir sua força profética e evangelizadora ao conjunto do povo dos pobres. Sem este espaço teórico, as CEBs não surgiriam, ou pelo menos não surgiriam com toda a sua força profética e evangelizadora, que é o que as distingue como espaço próprio e específico no interior do povo. Este fazer teológico também impede que a fé seja vivida de forma anárquica ou difusa, pois a atividade teológica é uma certa institucionalização da fé. Por outro lado, a teologia confere à fé um dinamismo extraordinário: a leitura da Bíblia nos está continuamente lançando ao coração da história para alcançar ali o discernimento da fé da presença de Deus vivo; por sua vez, a partir desta experiência espiritual, a releitura da Bíblia nos insta continuamente a um testemunho ou comunicação ativa de nossa fé ao conjunto do povo.
Ao terminar este segmento, devemos reconhecer um fato um tanto paradoxal. Por um lado, podemos dizer que esta atividade bíblica nas CEBs é a que mais desenvolveu e acumulou conhecimento teológico na América Latina. Mas, por outro lado, podemos constatar que, na produção escrita da TdL, esta teologia das CEBs não é a mais representada ou abundante. Este fato paradoxal talvez tenha sua explicação em um certo divórcio histórico entre a exegese científica e a experiência espiritual e teológica do povo. A ciência bíblica não se colocou a serviço desta atividade bíblica do povo, e o que se escreve em matéria bíblica também não sabe utilizar o instrumental científico da exegese.
b) A criatividade teológica específica das Comunidades Eclesiais de Base
A Igreja dos pobres é, simultaneamente, um movimento eclesial no interior da Igreja institucional e um movimento espiritual e profético no interior do movimento popular. Esta identidade total da Igreja dos pobres está continuamente ameaçada, tanto pelo reducionismo eclesiástico, que busca integrar toda criatividade eclesial às estruturas antigas da cristandade, quanto pelo reducionismo político, que busca transformar a Igreja em uma pura força ideológica de legitimação. A Igreja dos pobres, com esta localização específica na Igreja e na sociedade, pode definir sua identidade e sua legitimidade eclesial somente por uma intensa e criativa atividade teológica. Esta atividade teológica cria o espaço teórico que permite o surgimento da Igreja dos pobres e possibilita a expressão pública de sua plena eclesialidade. Para esclarecer esta noção de “espaço teórico”, poderíamos tomar o exemplo da atividade teológica de São Paulo, que criou justamente o espaço teórico necessário para o surgimento da Igreja cristã além dos limites estreitos da lei judaica e do judaísmo ortodoxo. Da mesma forma, hoje em dia, as CEBs devem criar o espaço teórico que fundamente a plena eclesialidade da igreja dos pobres na situação nova, e muitas vezes conflitiva, em que se encontra, tanto no interior da Igreja institucional como no mundo dos pobres.
Vejamos esta localização e definição da Igreja dos Pobres. Por um lado, constatamos que não se trata jamais de outra Igreja, uma Igreja paralela, oposta à Igreja institucional ou rebelde à Igreja hierárquica; pelo contrário, a Igreja dos pobres é um movimento de renovação eclesial no interior da Igreja institucional atualmente existente e em comunhão com a hierarquia. Esta renovação específica não se dá fora da Igreja ou em ruptura com ela, mas no interior dela para renová-la, refazê-la, reinventá-la segundo seu modelo evangélico original. A Igreja dos pobres se define também como um novo modelo histórico de Igreja, ou seja, como outra maneira de viver, organizar e pensar a mesma Igreja atualmente existente, a partir da resposta de fé que os pobres e oprimidos dão à ação libertadora de Deus na história (cf. Puebla Nº. 263 e Lab. Ex. Nº. 8). A Igreja dos pobres, por último, não é uma seita, mas a vocação universal de toda a Igreja e o chamado à sua radical conversão. Esta universalidade e radicalidade da Igreja dos pobres tem seu fundamento nessa presença privilegiada de Deus no povo dos pobres.
A Igreja dos pobres, por outro lado, possui uma força espiritual e profética dentro do movimento popular. Esta presença não deve ser medida apenas pelo número das CEBs, pois a Igreja dos pobres não é apenas a soma de todas as CEBs, mas é principalmente a influência evangelizadora de todas essas CEBs no seio do povo. Usando uma comparação, poderíamos dizer que as CEBs são a parte visível de um “iceberg”; o corpo invisível da Igreja dos pobres mergulha com toda a sua força evangelizadora e espiritual nesse mar profundo que é o mundo dos pobres.
Esta é a localização da Igreja dos pobres, presente simultaneamente dentro da Igreja institucional e dentro do movimento popular. A Igreja dos pobres tem uma dimensão própria na Igreja universal e uma identidade específica no mundo dos pobres. Esta situação certamente gera muitas contradições, que não encontram solução no curto ou médio prazo, mas a Igreja dos pobres deve sofrer, suportar e aguentar, para que este movimento de Igreja vá amadurecendo em sua identidade e missão específica e não ocorra uma ruptura da unidade institucional da Igreja ou uma ruptura da Igreja dos pobres com a força espiritual do povo pobre e crente. Para que a Igreja dos pobres responda a este duplo desafio dentro da Igreja e dentro do movimento popular e consiga suportar com maturidade e energia todas as suas contradições, é necessário desenvolver ao máximo sua criatividade teológica. Se hoje em dia o movimento teológico na América Latina é tão profundo e extenso, é justamente porque responde a esta necessidade. A TdL, concretamente, deve, por um lado, fundamentar teologicamente a plena eclesialidade das CEBs e da Igreja dos pobres, e, por outro lado, definir lucidamente a identidade específica da Igreja dos pobres no movimento popular. Esta fundamentação teológica não se dá de uma vez por todas, mas deve ser uma atividade permanente nas CEBs e deve preencher todos os espaços e dimensões da igreja dos pobres. Deve ser igualmente um esforço teórico orgânico, isto é, uma atividade teológica realizada com as CEBs e partindo de toda a sua capacidade teórica como sujeito próprio e legítimo da TdL. Se as contradições geradas pela Igreja dos pobres são mal formuladas ou resolvidas teoricamente de maneira equivocada, as CEBs podem ser despojadas dentro da igreja de sua legitimidade eclesial, ou podem sofrer dentro do movimento popular uma redução política que as prive de sua identidade e missão específicas.
A Teologia da Libertação como teologia profissional
Tudo o que foi dito nos tópicos anteriores sobre a TdL como teologia espiritual na experiência do pobre e como teologia orgânica nas CEBs não tira legitimidade alguma da teologia como atividade profissional. Acreditamos que esta teologia também pode chegar a ser uma teologia libertadora conservando seu próprio nível. A TdL, por outro lado, alcança no diálogo com a ciência teológica profissional um horizonte universal necessário. Esta universalidade enriquece a TdL em seu nível orgânico e espiritual.
A teologia profissional desenvolve a teologia em sua conceptualização científica e em sua trajetória histórica; sistematiza conhecimentos adquiridos e cria novos instrumentos de trabalho; a teologia dialoga com outras ciências e com as correntes filosóficas, teológicas e religiosas de outras religiões não cristãs; a teologia desenvolve construções teóricas que não têm uma incidência imediata na realidade, mas que são necessárias para criar novos espaços teóricos. Ciências como a exegese bíblica necessitam do conhecimento especializado em diferentes línguas, bíblicas e extrabíblicas; os métodos exegéticos são de uma grande complexidade teórica; a interpretação bíblica também necessita de conhecimentos em arqueologia, história e linguística. Todo este desenvolvimento teológico profissional é indispensável. Nunca a TdL pretendeu negar ou deslegitimar este tipo de teoria teológica. Pelo contrário, a TdL sempre utiliza os dados e resultados desta teologia. Nossos livros estão cheios de notas de rodapé ou de notas bibliográficas que dão testemunho da utilização da teologia como ciência profissional. Isto não tira em nada à TdL sua originalidade e especificidade, apenas dá testemunho de um espírito teológico universal. A utilização deste material teórico teológico também não cria em nós dependência da teologia da Europa ou dos Estados Unidos. Nossa originalidade não é a ignorância ou o primitivismo teológico. Afirmamos nossa capacidade de diálogo com a teologia universal a partir da fonte própria de nossa teologia que é a experiência de Deus na experiência do pobre, expressa como teologia orgânica em nossas CEBs.
A teologia profissional encontra, por outro lado, na TdL, uma forte inspiração espiritual e libertadora. Não se trata de libertá-la de seu estatuto teórico, mas de seus silêncios e omissões, de suas cumplicidades culpadas ou de suas catividades estéreis. Vemos muitas vezes a teologia profissional perdida e distraída em questões inúteis ou em problemas mal colocados. Vemo-la divorciada da Igreja e do povo, fechada em si mesma, dominada por uma busca excessiva de prestígio. Sentimos também a teologia profissional cativa de uma racionalidade ocidental dominante, alheia à maioria da humanidade que vive no Terceiro Mundo, alheia às culturas e tradições indígenas e alheia ao potencial espiritual e cultural da mulher. Muitos teólogos reduzem a teologia profissional a uma força unificadora e legitimadora do espírito europeu-ocidental, centrada na defesa da cristandade, contra os países “ateus” do Leste; para nós, a teologia deve mais bem unificar a força espiritual dos pobres do Terceiro Mundo, centrada na defesa da vida, contra os centros econômicos, financeiros e militares da morte, situados nos países “cristãos” do Norte. Queremos uma teologia profissional mais crítica e lúcida diante dos “novos monstros” tecnológicos e burocráticos do mundo industrializado, que já ninguém pode controlar e que ameaçam de morte a humanidade. A TdL é fundamentalmente uma Teologia da Vida, e como tal se enfrenta a todas as teologias da morte criadas pelo sistema. Acreditamos que a TdL pode libertar a teologia profissional para que esta recupere o sentido do Deus da Vida que hoje revela sua glória nos pobres que lutam por justiça e plena humanidade. Esta teologia assim libertada, sem deixar seu nível acadêmico e científico, aporta um significativo serviço à TdL. Para que a TdL, contudo, possa se comunicar com esta teologia universal e possa colocar toda a tradição científica da teologia a serviço do potencial espiritual do povo e ao serviço da reflexão teológica das CEBs, é necessário que a TdL seja também cultivada profissionalmente. É necessário também que exista o teólogo profissional como sujeito da TdL, sob a condição de que este teólogo seja libertado pelo potencial evangelizador dos pobres e desenvolva toda a sua criatividade teológica a partir das CEBs e ao serviço delas. O teólogo deve desenvolver também sua Teologia profissional a partir da Teologia espiritual do povo pobre e crente e a partir da Teologia orgânica da igreja dos pobres.