Ao naturalizar o conservadorismo evangélico, Juliano Spyer desconsidera as disputas políticas inerentes às instituições religiosas, que em geral privilegiam ideologias de classes médias mesmo entre os mais pobres


Foto: Zanone Fraissat/Folhapress (Edição: Jayder Roger)

Nas últimas décadas, progressivamente o movimento evangélico passou a ocupar mais espaço em notícias, reportagens e editoriais de veículos tradicionais de mídia, e também se tornou objeto de pesquisas e artigos acadêmicos. A maior demanda por conteúdos que abordam esse fenômeno religioso exigiu a garantia de espaço para especialistas na temática. Considerando ainda o aumento da participação de fiéis, lideranças e representantes evangélicos na vida pública brasileira, em especial em eleições majoritárias realizadas a partir de 2010, a abordagem desse grupo religioso se tornou determinante para a mobilização de setores da população. 

Nessa conjuntura, recentemente, um dos autores que tem ganhado relativo destaque na mídia tradicional para tratar do movimento evangélico é o antropólogo Juliano Spyer, que tem buscado realizar um diálogo sobre o que considera ser o mundo evangélico. Entretanto, o diálogo é realizado “entre quem” ou “com quem”? Esse diálogo cumpre qual papel? Qual o seu propósito? A quem ele interessa e para quê?

Para propormos ou para analisarmos um diálogo é fundamental levarmos em conta quem são os interlocutores envolvidos. Apesar de aparentemente óbvio, em um debate, quem conversa, com quem se conversa e a quem a palavra é dirigida são relações determinantes para construirmos o conteúdo da discussão que estiver em jogo. O tópico das conversas é apresentado de diferentes maneiras a depender dos interlocutores envolvidos. Uma pesquisa científica em curso, por exemplo, precisa ser apresentada de modo diferente aos pares acadêmicos e a um leigo que não tem qualquer contato com o objeto trabalhado.

Não se trata de uma questão de qualidade da informação, mas do tipo de trabalho especializado, das regras requeridas em diferentes ambientes e, em especial, do interlocutor. Está acostumado com determinada linguagem? Com certa conduta acadêmica? Com o uso de certos instrumentos ou recursos? Para cada uma dessas questões, estão pressupostos uma série de aprendizados individuais e sociais, condições específicas para o desenvolvimento de certas habilidades e competências etc. Claro, em uma sociedade capitalista como a brasileira, o acesso a esses recursos, que em geral viabilizam e/ou potencializam indivíduos para a realização de um trabalho científico, é um privilégio garantido a poucas camadas da sociedade — conhecidas como classes médias.

Nesse sentido, quando pessoas que exercem o chamado “trabalho intelectual” debatem entre si, como pares, normalmente realizam uma discussão restrita a ambientes próprios ou majoritariamente ocupados por indivíduos das classes médias. Os interlocutores, portanto, têm esse traço em comum e o pressupõem em sua conversa, não precisando explicitar que se trata de um grupo de classe média, privilegiado, com monopólio sobre os bens que constituem as condições básicas para uma educação formal de ensino superior qualificada e especializada. Trata-se da óbvia constatação de que a universidade é um ambiente tradicionalmente de classe média (e, como veremos, de uma classe média tradicional).

Como acadêmico, ao tratar do fenômeno evangélico brasileiro, Juliano Spyer nota em seus trabalhos que por vezes pesquisas ignoram ou desprezam o papel desempenhado pelas igrejas na reprodução social brasileira, ao considerarem preconceituosamente os fiéis como “manipulados” e como pobres rendidos ou “ignorantes” à mercê de lideranças religiosas corrompidas. Nesse aspecto, o antropólogo está absolutamente certo no que diz respeito aos acadêmicos de classe média “esclarecidos” e/ou de uma classe média tradicional, que assume uma posição aparentemente “crítica” da religiosidade enquanto nega, alienada, a realidade efetiva das relações sociais constituídas nas igrejas. Em Mídias sociais no Brasil emergente (2018), Spyer afirma corretamente que:

Fora de alguns círculos acadêmicos específicos, que incluem cientistas sociais que estudam grupos de baixa renda, as contribuições dos evangélicos para a sociedade praticamente não são reconhecidas ou são tratadas como manipulação. Poucos reconhecem que as organizações evangélicas promovem ativamente a alfabetização e também são intermediárias entre membros da igreja e serviços especializados, incluindo médicos e advogados. E ao ‘reciclar as almas’ de viciados em drogas e criminosos, fornecem um serviço para a sociedade de muito mais qualidade do que a polícia e o governo sequer poderiam almejar. Finalmente, a cristandade evangélica é particularmente positiva uma vez que inibe violência doméstica, alcoolismo, estimula a intimidade entre casais, reduz as diferenças tradicionais de gênero entre homens e mulheres, e apoia as ambições dos jovens de estudar e evoluir profissionalmente.

Com a ressalva dos “círculos acadêmicos específicos”, que podem incluir, por exemplo, grupos de cientistas da religião como a Rede Latino-americana de Estudos Pentecostais (RELEP), que reúne trabalhos excelentes sobre o evangelicalismo que não caem em lugares comuns e simplistas de “manipulação” etc., o autor aponta sua crítica para o trabalho acadêmico “em geral”, realizado por pesquisadores de classe média. Mas quem seriam esses pesquisadores cegos de tais aspectos e destinatários, interlocutores, da crítica realizada por Spyer? Uma nota na mesma obra dá uma pista quando o autor considera não haver interesse de pesquisa sobre os brasileiros de baixa renda por parte de “cientistas sociais [de classe média]”, dado que “esses acadêmicos tendem [tenderiam] a adotarem [adotar] uma percepção patológica dos pobres, ou a escolherem estudar grupos mais exóticos, como os quilombolas e ameríndios”.

Bem, ao que parece, o interesse por evangélicos e pobres seria negado por um grupo que, aparentemente em sua maioria, privilegiaria os estudos das denominadas “minorias”. A religião evangélica, por ser uma religião de pobres que seriam preteridos por acadêmicos de classe média, não teria o devido tratamento e ainda veria suas contribuições à sociedade brasileira sendo negadas. O que nos impede, nesse momento, de citar uma série de trabalhos anteriores ao de Spyer a respeito de evangélicos que consideram essa tradição e suas contribuições, é a ressalva inicial feita pelo autor de que haveria “grupos específicos” que realizariam trabalho qualificado sobre os evangélicos. É uma ressalva excelente para que seja possível criticar um determinado grupo de modo genérico sem precisar especificar nada — nem os legítimos pesquisadores que entendem o fenômeno, nem os que o negligenciam.

De todo modo, o que nos interessa é compreender no meio dessa série de interlocuções de quem, afinal, Spyer está falando, com quem está falando e para quem ele está falando. Em um texto intitulado Igrejas evangélicas e a Internet cumprem função de escola no Brasil popular, publicado pelo El País no âmbito das eleições de 2018 (mesmo ano de seu livro a respeito das Mídias sociais no Brasil emergente), o antropólogo brasileiro une sua discussão sobre internet e evangelicalismo e indica algo efetivo: as igrejas evangélicas desempenharam (e desempenham) um papel fundamental da socialização de crianças, adolescentes e adultos nas periferias, ocupando os espaços em que nem o Estado e nem o Mercado chegam.1 Com redes de solidariedade, processos comunitários de compartilhamento de cuidado, vigia de conduta, troca de trabalhos e bens etc., igrejas evangélicas se tornaram lugares privilegiados na reprodução social brasileira nas periferias, e fortaleceram historicamente suas bases ali, beneficiados pelo processo de urbanização e modernização capitalista (questões já discutidas em outros textos da Revista Zelota, como Fascismo como religião nas eleições de 2022 e No vale de lágrimas entre religião e política).

Por outro lado, Spyer comenta que o aumento do acesso à escolarização formal entre pobres não seria o vetor principal da educação para essa população, mas a internet e as igrejas, e que a classe média estudada não compreendia isso. No artigo, há certa confusão entre educação e socialização, mas isso não vem ao caso. O mais importante é ver que, para o autor, a escola não seria atrativa do ponto de vista das famílias por questões de classe: professores seriam de classe média e reforçariam para os mais pobres essa “distância” dos privilégios sociais, enquanto o currículo escolar é fruto do trabalho de uma classe média especializada não vinculada com a realidade da periferia. Por fim, Spyer cita o trabalho de Cláudia Fonseca para comentar que:

[…] os únicos momentos de encontro entre pessoas escolarizadas das camadas médias e altas e o mundo popular se dá nas conversas de manhã com a empregada doméstica e no momento do assalto. Por causa dessa distância, as camadas letradas percebem o pobre como se ele pensasse e visse o mundo pelas mesmas perspectivas, como se a única diferença entre ricos e pobres fosse a renda.

E resumindo sua empreitada no artigo, Spyer afirma que:

Em primeiro lugar, eu quis demonstrar que a promoção do ensino de qualidade não depende apenas da abertura de escolas, e que uma parte do desinteresse pela escola vem de a educação disponível levar valores de classe média para estudantes que não são de classe média [grifo nosso].

Na busca pelos interlocutores do autor, portanto, temos o seguinte: a classe média escolarizada (não toda, salvo os “grupos específicos”, seja lá quem for), que aparentemente prefere estudar certas minorias ao invés dos pobres, vistos como dominados, manipuláveis etc., em especial os evangélicos (que, por sinal, parecem ser a representação dos pobres do país, ou são valorizados como tal), está distante da realidade da periferia (evangélica?). Assim, seria preciso uma pesquisa ou um trabalho acadêmico que mostrasse as verdadeiras características desses evangélicos, que não seriam nem manipuláveis e nem ignorantes à mercê de lideranças religiosas. Mas, mostrasse para quem? Para os cientistas sociais (de classe média) e para a classe média escolarizada? Para os próprios evangélicos pobres socializados pelas igrejas?

No final de seu artigo de 2018, que indicava a transição do objeto de pesquisa de Spyer (deixando de focar as mídias sociais para se dirigir ao “povo de Deus”2), o autor comenta sua proposta a partir das considerações feitas a respeito dos evangélicos e da internet entre os pobres nas periferias:

Há, nesse cenário, dois desafios. Em vez de alfabetizar o brasileiro popular a partir das nossas referências, podemos nos alfabetizar como educadores e cientistas sociais na farta bibliografia que existe sobre o Brasil popular. E se houver uma prioridade a ser estabelecida: ela seria formar professores das camadas populares para trabalhar nos bairros em que esses profissionais já vivem e são conhecidos.

Destaquemos que na primeira sentença temos explicitada o pertencimento de classe de Spyer: “nossas referências” diz respeito a seu grupo de pesquisadores de classe média (provavelmente os “não especializados” em evangélicos, que em geral não são mencionados por ele). Como escolarizado, Spyer descobre a necessidade de aprender com os pobres do Brasil uma nova alfabetização — curiosamente, não na realidade da periferia, mas a partir da “bibliografia que existe sobre o Brasil popular”. Já na segunda sentença, uma saída aparentemente interessante: formar os educadores da periferia para trabalhar nos bairros da periferia. “Quem educa os educadores?” — perguntou certa vez um intelectual alemão de classe média do século 19. A provocação, aparentemente, foi bem respondida no Brasil por uma metodologia de formação e alfabetização duramente perseguida pela extrema direita e pela classe média — mas isso é tema para outro momento.

Interessante é ver que nas estruturas escolares e universitárias a classe média seria a dirigente. Já nas igrejas, não. As igrejas evangélicas seriam inteiramente de pobres, feitas por pobres, frequentadas por pobres e dirigidas por pobres, com valores próprios e peculiares de pobres e que nada teriam que ver com a classe média escolarizada e seus valores. Os estudantes pobres não desejariam os valores da classe média, e os evangélicos (claro, pobres) tampouco estariam interessados nos valores de classe média. Os pesquisadores de classe média não estariam interessados nos pobres e não dariam valor aos valores dos pobres (exceto, ao que parece no comentário de Spyer, se forem minorias). Esse seria o quadro desenhado: indivíduos e instituições de classe média contra indivíduos e instituições populares (sendo a escola propriedade de uns, e a igreja de outros).

Em outubro de 2022, também durante o período das eleições, Spyer escreveu um outro artigo, desta vez para a Folha de São Paulo: Cegueira da esquerda entrega o país para Bolsonaro. O texto é aberto com uma citação do jornalista Ricardo Alexandre, feita por Paulo Arantes em uma live: “A esquerda consegue enxergar o quilombola não binário da extrema periferia de uma cidade e não consegue enxergar 50 milhões [de evangélicos].” Novamente, temos de volta o argumento de um grupo que é capaz de se interessar por minorias e não pelo segmento evangélico (que seria… pobre?). Dessa vez, contudo, não está em questão a classe média escolarizada, mas “a esquerda”. Bem, ao que parece, estamos encontrando afinal qual é o grupo destinatário das críticas de Spyer (salvo os acadêmicos “especializados”, sempre bom lembrar).

Ao final do texto, o antropólogo arremata: “A esquerda sente-se envergonhada de ir à igreja e fica deslocada nesses espaços. Faz isso por obrigação em época de campanha. Acha religião, especialmente evangélica, uma babaquice e lavagem cerebral.” Desse modo, assim como na relação entre a classe média acadêmica e os pobres evangélicos, dois mundos opostos e que se desconhecem, agora é acrescido um viés político, “a esquerda”, que aparentemente não seria pobre, estaria avessa à realidade religiosa, popular e, efetivamente, à evangélica.

Na verdade, Spyer está enfrentando o progressismo de uma classe média tradicional, não religiosa, letrada e que participa do monopólio sobre bens, instituições e cargos executivos em universidades, escolas, empresas e partidos. A posição privilegiada de indivíduos de classe média nas instituições de ensino, em partidos políticos e em cargos decisórios é corretamente denunciada em seu texto, mas sob a forma de “desprezo” e/ou “distanciamento”, sem mais. O pesquisador percebe os conflitos de classes nas instituições de ensino e nos partidos, as tensões entre a ala progressista dessa classe e o segmento evangélico, mas não aplica o mesmo rigor ao analisar as estruturas institucionais das igrejas evangélicas, sua distribuição de poder e de execução de poder. Ou evangélicos seriam apenas pobres (essencialmente conservadores) que encontram seus pares nessa instituição que se levanta da pobreza puxando seus próprios cabelos, sem que houvessem relações, tensões, conflitos e alianças entre classes sociais e posições políticas?

Em uma entrevista à BBC, Spyer comenta a boa recepção de seu livro por parte de lideranças e representantes da esquerda (incluindo o presidente Lula). Para ele, a aceitação do livro se devia à capacidade de mostrar para leitores que os evangélicos não seriam apenas pessoas como Edir Macedo, Malafaia, Feliciano etc., mas também (claro) pessoas pobres, inteligentes, que fazem suas escolhas a partir de seus valores. Propriamente, com isso, no combate à redutiva e estúpida compreensão de muitos progressistas ilustrados não religiosos, de que religiosos são massa de manobra e pessoas suscetíveis a manipulação barata, o trabalho de Spyer cria uma essencialização e naturalização do conservadorismo entre evangélicos.

A posição de classe das lideranças evangélicas, como é distribuído o poder nas igrejas, a qual classe pertencem as lideranças religiosas (especialmente as que tomam decisão sobre a grande maioria das congregações, ou mesmo as “sucursais” das maiores e principais denominações) e como historicamente foi constituída a classe sacerdotal e a membresia (que também sofreu com transformações sociais da modernização capitalista); tudo isso é completamente ignorado. Ao não considerar o processo histórico e a composição de classes nas estruturas burocráticas das igrejas, quando aponta para a óbvia constatação de que evangélicos não podem ser reduzidos ao estereótipo de manipulados, Spyer cria a naturalização do conservadorismo como algo inerente aos evangélicos.

Temos, portanto, que no fundo Spyer procura criticar o progressismo acadêmico e de classes médias escolarizadas com o conservadorismo de um setor popular, ou melhor, da massa popular que compõe a maioria dos evangélicos do país (em torno de 60% dos fiéis é pobre). E por que isso importa? Porque a base eleitoral da esquerda em pleitos majoritários, e especialmente para o Executivo, é das classes baixas (considerando renda e escolaridade, como já discutimos na Revista Zelota). 

De acordo com o TSE, 48% do eleitorado tem renda familiar de até 1 salário mínimo (quase metade da população votante). Nesse grupo, de acordo com o Datafolha, Lula teve 61% dos votos no segundo turno de 2022, e Bolsonaro apenas 33%. Progressivamente, à medida que o indicador de renda “aumenta”, o apoio a Lula cai e a Bolsonaro cresce (com alternâncias nas faixas de renda que caracterizariam classes médias). Com o indicador de escolaridade, vemos o mesmo: de acordo com o TSE, 57% do eleitorado possui formação até o ensino fundamental (sendo 4% analfabeto, 7% apenas alfabetizado, 23% com ensino fundamental incompleto, 6% com ensino fundamental completo e 17% com ensino médio incompleto). A combinação dos grupos do eleitorado com ensino superior completo e incompleto soma apenas 16%, enquanto eleitores com grau de escolaridade de ensino médio completo compõem os 26% restantes.

Nas pesquisas Datafolha, nos grupos de escolaridade mais baixa, Lula levou uma vantagem de votos considerável: 60%, contra 34% de Bolsonaro. Por outro lado, nos segmentos de escolaridade média e superior, Bolsonaro teve uma leve vantagem (nos critérios da pesquisa, empate técnico): 49% contra 45% e 48% contra 43%, respectivamente. Isso indica que a base da esquerda é composta majoritariamente pelas classes baixas, por pobres, mas não por… evangélicos!

Aí está! Aproximadamente 30% da população que compõe esse grupo religioso apresenta um fenômeno de “desvio” do padrão geral. Se considerássemos o corte “religioso” do voto (sem a reducionista e imprecisa essencialização do “voto evangélico”), veríamos que a candidatura de Bolsonaro teve uma boa vantagem em relação à candidatura de Lula (68% x 32%) entre os evangélicos. Já entre católicos, que ainda equivalem a aproximadamente 60% da população brasileira, Lula teve vantagem sobre Bolsonaro (55% x 39%). Religião por religião sem outras informações nos explica muito pouco do quadro.

Significativo é que cerca de 60% dos evangélicos são pobres — ou seja, sua maioria, mas não a totalidade. O que nos indica que nesse setor, o “interesse de classe” é desviado por alguma razão para funcionar “ao contrário” do padrão total da sociedade. Eis o porquê do setor evangélico importar tanto. Mas, para quem? Para a esquerda? Não só. Importa, em especial, para a classe média não progressista e mesmo de direita, que pode se beneficiar do fortalecimento desse grupo e disputar a base eleitoral da esquerda.

Quando falamos de “interesse de classe”, não dizemos respeito à vontade livre e espontânea de indivíduos isolados que deliberadamente tomam decisões sem suas condições históricas, familiares, comunitárias e sociais, guiados por um “espírito coletivo” e “irrefletido” que conduz as pessoas para posição a ou b. Interesse de classe diz respeito à conduta orientada para os ganhos possíveis dentro das condições disponíveis, ausências e/ou privilégios a serem supridos ou mantidos. A classe média, assim, tem como orientação lutar pelos privilégios que possui e que garantem relativa estabilidade e distinção em relação às classes pobres. É de seu interesse “de classe” a manutenção da ordem social. 

Do ponto de vista da totalidade dessas relações, contudo, há grupos desviantes ou consonantes. O mesmo para classes pobres, que buscam por recursos e condições de reprodução da própria vida (imediata) e ameaçam, portanto, a garantia desigual de privilégios. É de seu interesse, do ponto de vista da totalidade social, a redistribuição de recursos, e uma mudança ou reforma da ordem vigente. Obviamente, por diversas razões, podem surgir grupos desviantes ou consonantes. Mas é fundamental reconhecer esses grupos para atuar em prol de um ou outro projeto político, por uma ou outra pauta, bandeira, mobilização de classes populares e bases eleitorais.

Dessa maneira, o grupo evangélico é particularmente importante para conservadores, classes médias não progressistas e para a direita em geral, pois, por determinadas razões históricas e sociais (já abordadas em outros textos na Zelota, mas que serão trabalhadas em novos artigos em um futuro próximo), são um segmento de “desvio de interesse de classe”. Nossa tese é que a relação de dominação direta característica do tipo de religião de padrão de hierarquia centralizada (de tipo episcopal), como em geral é o evangelicalismo brasileiro, possibilita que as lideranças (tradicionalmente de classe média, constituídas no processo de modernização capitalista e de disputas internas das principais denominações) se aproveitem das estruturas de socialização existentes nas relações da membresia para incutir os valores próprios de sua classe como o conteúdo da própria doutrina e religião evangélica. Ou seja: é uma instituição fundamentalmente organizada a partir da classe média como classe dirigente, cujo exercício de poder está a serviço da manutenção da reprodução social brasileira.

Isso significa que evangélicos são “ignorantes”? Jamais. Eles lutam por seus privilégios ou para obter algum, se utilizam dos recursos disponíveis e também trabalham a partir do que a igreja pode oferecer. Por um lado, como indicou Spyer, a instituição religiosa garante benefícios fundamentais para a própria vida e organização familiar dos fiéis. Mas, por outro, também constrói relações de submissão, dominação e vinculação da membresia a uma atuação política na linha orientada pelos grupos de pastores (que decidem sobre a igreja). Tampouco implica em uma naturalização ou essencialização do conservadorismo evangélico, como se esse grupo religioso não estivesse historicamente em disputa e não fosse composto por diversos grupos e atores, que são de esquerda, de direita, progressistas, e até revolucionários. Aliás, muitos são acadêmicos (especialmente das classes sacerdotais), e portanto estão ativos em mais de um campo da realidade social. 

Esses fatores são completamente ignorados por Spyer. Sua apresentação dos evangélicos a partir de uma posição crítica à classe média acadêmica progressista (que em certos textos ele chama de “elite pensante”, descolando do quadro por completo as elites reais do país, que decidem diretamente sobre a vida das massas), destaca o caráter “popular” do segmento e procura desmentir estereótipos criando outros. A “esquerda”, essa entidade que estaria “fora da igreja”, aparentemente não teria em suas fileiras lideranças evangélicas e nem evangélicos acadêmicos. 

Ao mesmo tempo, o progressismo (e mesmo os movimentos revolucionários) que surgiram dentro das instituições religiosas evangélicas e foram duramente perseguidos pelos pastores dirigentes dessas instituições por questões ideológicas e de classe, não são considerados por Spyer — incorrendo, mais uma vez, na naturalização do conservadorismo evangélico, identificado com os “valores do pobres”, não da “classe média”. Mas quem decide sobre a igreja no Brasil é de qual classe? Não seriam indivíduos e grupos da mesma classe que, em geral, compõem o grupo de dirigentes dos partidos de esquerda? Esta não estaria distante das massas pobres e da periferia? Mas como, então, sua base eleitoral continua sendo majoritariamente de pobres? E como o desvio se apresenta especificamente entre evangélicos? Talvez não seja bem uma questão “só” de religião.

Ao ignorar o papel desempenhado pelos indivíduos de classe média como dirigentes das igrejas e principais denominações, Spyer não identifica a luta e os interesses de classe que envolvem as disputas entre evangélicos e seus alinhamentos políticos e ideológicos. Como parte da classe média acadêmica, o antropólogo critica certo grupo que compõe sua própria classe, mas não reconhece a classe média que atua nas instituições religiosas, ou ainda, talvez não se reconheça nos indivíduos de classe média que dirigem as igrejas evangélicas. Teriam eles valores “pobres” demais para o autor? Em sua concepção, seriam de classe média apenas a “elite pensante” progressista ou as lideranças partidárias de esquerda? Os fiéis pobres aparentemente conservadores que enfileiram as igrejas teriam mais valores “pobres” do que a base eleitoral pobre que majoritariamente apoia a esquerda, dirigida pelos “ilustrados”? 

Para o autor, a oposição, na verdade, está entre o grupo de progressistas que não está na igreja e o grupo de conservadores que está. Uma oposição que não tem sentido para as disputas dentro das igrejas — realizadas por fiéis e lideranças progressistas, de esquerda, que por vezes ocupam o campo acadêmico, o partidário e o religioso ao mesmo tempo, contra fiéis e lideranças que são conservadoras, de direita e que por vezes ocupam o campo acadêmico, o partidário e o religioso também. 

Ao mesmo tempo, esta oposição não tem sentido do ponto de vista da sociedade mais ampla, dado que, ao considerar a “esquerda” como uma entidade fora da igreja, assim como a classe média (acadêmica ou escolarizada), o que está posto é uma ficção com ares científicos de um grupo coeso de pobres conservadores “contra o mundo”. Nessa trama, aqueles que se dizem “defensores da causa dos pobres” (a tal da esquerda), para serem coerentes, deveriam aceitar os pobres (evangélicos) como são: essencialmente conservadores. Uma saída semelhante à ideia que Spyer apresentou como “desafio” para a educação nas periferias: classes médias formarem os pobres para manterem os aparentes “valores dos pobres” (identificados com o conservadorismo evangélico) como são — ainda que contra seus interesses de classe e abstraídos dos conflitos sociais nos quais estão imersos, inclusive nas igrejas.

Em suma, a solução é deixar tudo como está e aguardar a realização do que Spyer acredita ser o futuro da ação evangélica no país, como dito em uma entrevista para o Brasil 247:

Existe a narrativa de olhar o Brasil do futuro como uma ditadura evangélica, mas eu penso na possibilidade de um Brasil que pelo cristianismo evangélico se torne mais próspero, por esse individualismo empreendedor, que tenha mais acesso à educação, e que numa segunda ou terceira geração, tenha menos interesse pelo cristianismo radical difundido pelos seus pais. [grifo nosso]

Esperemos pacientemente no Senhor, pois os valores “pobres” do conservadorismo evangélico nos conduzirão pelo empreendedorismo individualista para uma maior prosperidade no Brasil e criarão as condições para o abandono do cristianismo radical como um passe de mágica. Assim, esquerda e progressismo, por favor, não atrapalhem o curso natural das coisas.

Notas:

1. A parte do “mercado” não é mencionada pelo autor, mas consideramos importante destacar que se trata da ausência de uma instituição considerada muitas vezes solução para nossos problemas sociais.

2. Em um próximo artigo, pretendemos discutir especificamente o conteúdo do livro de Juliano Spyer, O povo de Deus: quem são os evangélicos e por que eles importam (2020).