Aluna interna do UNASP, Engenheiro Coelho, oferece à Zelota um relato pessoal detalhado sobre o problema da Covid-19 no campus
Nota: O relato oferecido pela aluna do UNASP, em Engenheiro Coelho, é pessoal e não diz respeito à realidade de todos os alunos do campus, que experimentaram situações diferentes diante do surto da Covid-19. O texto-áudio foi adaptado pela edição, e os nomes citados por ela foram suprimidos para evitar possíveis constrangimentos.
Quando eu cheguei no UNASP (em fevereiro), a minha quarentena foi de cinco dias no hotel — e eu sei que alguns passaram apenas três dias. Eu cheguei de avião, e supostamente deveria ficar mais tempo em quarentena por isso. Mas quando cheguei, outras meninas estavam no mesmo quarto. Elas haviam chegado de manhã, e por estarem de carro ficariam menos tempo em quarentena — mesmo assim, no mesmo espaço que eu. Além disso, as pessoas que nos atendiam no hotel eram alunos do internato; eles transitavam normalmente pelos prédios após o expediente.
No dia 3 de março (quarta-feira) houve uma reunião com os bolsistas [alunos que trabalham no campus] e com os regulares [alunos que não trabalham no campus]. Ela foi dividida em diferentes horários, porque tinha muita gente. Nessa ocasião, uma galera já começava a passar mal, e os alunos estavam comentando sobre isso. Em resumo, o Diretor Interno disse, na reunião, que as coisas iriam mudar; que os alunos iriam usar máscara em todos os lugares. A única exceção seria para a prática de esportes. Ele também disse que seriam cancelados todos os cultos, internos e externos; e as refeições seriam divididas (jantas e almoços) de acordo com os horários dos alunos.
Antes de o Diretor Interno explicar a questão da separação, ele alegou, mais ou menos com essas palavras: “tem um filho do cão, uma pessoa sendo usada pelo Diabo, espalhando por aí que tem um caso confirmado de Covid dentro do campus. Não tem Covid no campus“. Ele mencionou o ano passado [2020] como exemplo para garantir aos alunos sua afirmação; o ano inteiro passou sem nenhum caso de Covid. Por isso, a justificativa para separar as refeições, para ele, era somente o cumprimento da vigilância sanitária, um decreto governamental. O Diretor Geral do campus Engenheiro Coelho também falou na reunião.
No geral, os alunos reclamaram da instabilidade da internet desde o início das aulas. Reclamaram também da academia, já que alguns alunos externos [que vivem fora do campus] estavam usando ela dentro do campus. Nesse momento o Diretor Interno interveio e alegou que os externos tinham esse direito, porque estavam pagando pelo serviço. Mas o Diretor Geral desmentiu e alegou que os externos não poderiam mais usar a academia. Ele também informou aos alunos que não haveria mais aulas presenciais — porque algumas turmas estavam, aos poucos, oferecendo essa possibilidade.
Contudo, na quinta de manhã [no dia seguinte à reunião], os alunos comentavam entre si: “Vocês viram o comunicado oficial do UNASP, de que tem dois casos confirmados de Covid no campus?” Ou seja, houve falta de transparência na comunicação com os alunos, porque no dia anterior o Diretor Interno afirmou que não havia casos confirmados, sendo que haviam pelo menos alguns casos de suspeita. Eles iriam começar a entregar, na época, as pulseiras para dividir os horários das refeições, mas só começaram a entregar na semana seguinte, a partir do dia 8.
No dia seguinte, sexta-feira, o Diretor Interno informou que haveria testes disponíveis no refeitório para os alunos interessados, e que ele custaria R$50,00. A galera que estava passando mal se dirigia à enfermaria; alguns eram enviados de volta para o quarto, e recebiam uns chás ou xaropes. Apenas os que estavam realmente doentes eram enviados ao hotel para o isolamento.
A minha amiga já estava passando mal desde terça-feira, com vários sintomas. Mas quando fomos procurar a testagem mandaram ela de volta pro quarto, porque estava muito cheio e muita gente foi procurar o teste ao mesmo tempo; ela deveria esperar ser chamada. Minha colega deu o nome dela à preceptora [a responsável pela administração do prédio feminino], mas ela alegou que o Diretor Interno não havia dado nenhum direcionamento ou instrução sobre isso. No fim, ela deixou o nome anotado. Nós insistimos: dissemos que nossa amiga estava passando muito mal há 4 dias; e o quarto em que ela estava hospedada era simples, com maçaneta e banho compartilhado. Ou seja, ela passaria o vírus para o andar inteiro!
Mesmo assim, a auxiliar da preceptora disse que, infelizmente, não tinha o que fazer. Do contrário, eles teriam que colocar o UNASP inteiro em isolamento (o que é óbvio). Na sexta-feira à noite eu liguei 100 para denunciar o que estava acontecendo aos Direitos Humanos, e depois denunciei pro SUS [Sistema Único de Saúde].
No domingo, voltei a falar com a preceptora e perguntei se o nome da minha colega estava na lista. A preceptora me perguntou: “Ela vai fazer o teste de R$150,00?” Questionamos o preço — já que a informação oficial foi outra —, e a preceptora nos informou que o teste de R$50,00 ainda não havia sido liberado. Mais tarde, naquele mesmo dia, uma amiga nossa nos contou que tinha direito a ser testada pelo SUS, já que também estava há 4 dias com sintomas, e descobriu que estavam ministrando testes gratuitamente quando fosse necessário nos postos de Engenheiro Coelho! Mas o restante da história nos deixou ainda mais ansiosas e apreensivas.
Nossa amiga foi até a preceptora e perguntou qual o procedimento para sair do campus, já que ela não tinha condições de pagar R$150,00 por um teste, e foi enviada à enfermaria, depois para o hotel. Um médico chegou e ela explicou tudo pra ele; sua reação foi perguntar por que ela não foi à enfermaria. Minha colega explicou que a enfermaria a estava enviando de volta para o quarto há dias, e que ela não tinha condições de pagar os R$150,00. O médico então começou a argumentar que o teste de R$150,00 já estava com desconto, como se isso fosse convencê-la a pagar! Mais uma vez, ela disse que não tinha condições de pagar pelo teste, e que queria tentar conseguir o teste gratuito pelo SUS. Ela perguntou se alguém poderia levá-la à cidade, e explicou que só queria ajudar, não estava passando por cima de ninguém. Nessa ocasião, o hall do hotel estava cheio de gente passando mal.
No fim, ele disse que, às vezes, quem tenta ajudar acaba piorando a situação, e a enviou de volta à enfermaria; disse que após avaliar os alunos do hotel iria chamá-la para resolver a situação. Até onde sei, essa minha amiga nunca foi chamada.
No dia seguinte, segunda-feira [8], a preceptora chegou no quarto por volta do meio-dia. Ela disse que todo mundo precisava fazer as malas, porque haveria uma testagem em massa gratuita disponibilizada no auditório central. Os positivados pegariam suas malas e iriam ao hotel. Esse aviso aconteceu, coincidentemente, no mesmo dia em que foi publicada a primeira matéria no G1 sobre o surto de Covid no UNASP. Assim, fizemos as malas; mas às 16h ninguém tinha nos chamado para a realização do teste. Desci do quarto, e as preceptoras já estavam com EPI, máscara, face shield, luvas, e perguntei se já tinha começado a testagem. Ela disse que iria começar a partir do primeiro andar, às 16h. Enquanto isso, minha colega foi trabalhar, mesmo doente! Houve boatos de que o surto começou em um dos setores onde trabalhavam bolsistas (na lavanderia), porque as chefes do setor, que eram externas, sumiram do trabalho por estarem passando mal. Muita gente de lá passou mal também.
Eles começaram a separar o refeitório de acordo com a testagem: quem já tinha sido testado deveria ficar do lado direito, e quem não tinha sido, do lado esquerdo. Só havia meninas do lado direito, e os meninos estavam todos do lado esquerdo — isso porque o dormitório masculino ainda não tinha começado as testagens. Nesta segunda-feira, os testes foram até tarde; na terça-feira, continuamos em espera. Por volta do meio-dia da terça, perguntamos por que não tínhamos sido chamadas ainda. A preceptora nos avisou que a testagem para as meninas havia sido paralisada, porque os meninos precisavam fazer o teste também.
Na segunda-feira, ou na terça, não me lembro bem, uma delegada apareceu no campus. Ela estava perguntando para todos os alunos sobre a comida, ou se os alunos pensavam estar num “cárcere privado”. Ela mandou retirar todos do DDS [uma espécie de dormitório readaptado], onde ficavam os positivos. No hotel ficavam os alunos que tiveram contato com positivados ou que apresentavam sintomas leves, ou ainda falsos-negativos. Nessa ocasião começaram a isolar os andares dos dormitórios, fechando os corredores com tábuas de madeira.
Nós só fomos testadas, de fato, na quarta-feira (10). No dia anterior eu questionei se havia testes, mas a preceptora disse que estavam encerrados. Uma outra amiga minha estava com todas as suas colegas de quarto em isolamento no hotel, menos ela. Ela estava isolada no quarto, com as preceptoras levando comida até lá. O problema era o mesmo: o quarto era simples, com banheiro compartilhado para o andar inteiro.
Na quarta-feira de manhã eu desci, questionei mais uma vez, e a preceptora nos informou que seria nossa vez naquele período. Umas 15h tinha uma menina passando muito mal no meu andar, tossindo demais! Quando você sai pra tomar banho no dormitório, é normal cruzar com várias meninas. Eu vi várias com aspecto acabado… Estavam muito doentes, você percebia só pela expressão. Nossa colega desceu chorando pra falar com a preceptora, pedindo pra ela enviar um médico ou enfermeiro para acudir as meninas.
Trinta minutos depois nos chamaram para a testagem no auditório central, com uma equipe médica gigantesca. A gente preenchia o formulário do SUS e esperava em cadeiras distanciadas umas das outras até chamarem nosso nome. Nessa ocasião, iriam dizer se era positivo ou negativo. Os positivos conversavam com os médicos — que não pareciam ser do HASP [Hospital Adventista de São Paulo] — e não voltavam ao residencial. Contudo, as malas que haviam sido preparadas na segunda-feira já estavam abertas e utilizadas; a gente saía do teste sem levar nada. Tivemos que pedir para amigos próximos, ou para a preceptora, que buscassem nossas coisas — o que não fazia muito sentido, pois estaríamos expondo nossos amigos e as preceptoras à doença.
Hoje [16 de março] nossas refeições estão sendo todas no auditório central, divididas entre meninas e meninos infectados. Publicaram uma nota do UNASP avisando que estávamos recebendo auxílio psicológico e pastoral, mas eu só fiquei sabendo disso quando vi a nota. O próprio pastor do campus não estava lá, pois estava infectado. Mais ou menos dois dias depois dessa nota, começaram a enviar, via Whatsapp, os contatos para o dito auxílio. Até aconteceu, por exemplo, da equipe pastoral feminina ligar pra minha mãe e orar com ela, mas a gente não recebeu nada da equipe pastoral — talvez porque não é a gente que paga a mensalidade [risos]. Os nossos pais receberam ligações, mas os alunos precisam correr atrás do auxílio pastoral e psicológico.
Na noite do dia 12 recebemos um “kit-espiritual”, enviado tanto para os positivos quanto para os negativos. O kit continha uns biscoitos, uma caixinha de água de coco, um livro e um estudo bíblico. Depois criaram um “talk about”, ou seja, um programa para conversarmos com os psicólogos.
Estamos sobrevivendo e se ajudando. Tentando animar uns aos outros… Mas se paramos pra conversar sobre o assunto, a gente chora. O clima tá bem pesado, pelo menos aqui no dormitório feminino. Recebemos roupas de cama, para não infectar as nossas; adaptaram nossa alimentação; trouxeram galões de água. As preceptoras estão trabalhando muito! Todas com roupas de proteção. Tem até funcionário se voluntariando para trabalhar na cozinha, porque muito aluno que trabalhou lá dentro testou positivo.