Os abusos teriam sido cometidos pelo ex-diretor regional da ADRA e departamental da ASA para o estado de São Paulo, encobertos por pastores da união, e os processos ajuizados contra ele correm em segredo de justiça
*todos os nomes citados são fictícios para proteção legal das vítimas
“Você sofreu um assédio sexual”. As cinco palavras que delineavam e davam nome ao que havia ocorrido nas semanas anteriores com Clarice* foram somadas ao turbilhão confuso de pensamentos que rondavam a sua mente desde então. Veio o pânico, velho companheiro que há dias não lhe permitia caminhar sozinha na rua sem se sentir um alvo fácil. Junto dele, a negação.
Era a primeira vez que a assistente social de 44 anos, casada e membra ativa de uma Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) na capital paulista, compartilhava com alguém os episódios de carícias não autorizadas feitas por quem ela considerava ser um “ungido do Senhor”. Clarice não confiava em sua própria percepção do ocorrido. Pensava que talvez estivesse julgando mal os toques do seu líder religioso.
Ela ainda não sabia, mas não fora a primeira vítima — tampouco a última — do ex-diretor regional da Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA) e departamental da Ação Solidária Adventista (ASA) para o estado de São Paulo na União Central Brasileira (UCB) da IASD, que se aproveitava do seu cargo para potencializar situações de poder social sobre, aproximadamente, 15 mulheres que, posteriormente, denunciaram haver sofrido assédio sexual do pastor.
Na liderança destes departamentos de 2015 a setembro de 2019, Carlos Altino* convivia com equipes compostas quase exclusivamente por mulheres. Ganhava a confiança e o carisma com elogios, presentes e promessas de cargos maiores no ministério. “Seu lugar é em projetos mais relevantes”, dizia. Foi assim com Clarice.
A diretora da ASA local ficou eufórica quando o pastor lhe disse que havia selecionado algumas poucas pessoas para uma missão em Portugal que ocorreria em julho de 2019, sendo ela escolhida. Era a realização de um sonho. Sem condições de fazer uma viagem para o exterior, confiou na promessa de que lá haveria auxílio para gastos como alimentação e comprou suas passagens.
Faltando 15 dias para a partida, o pastor lhe telefonou dizendo que estava na porta do seu trabalho para levá-la para uma conversa sobre a missão. Clarice estranhou, mas fez um acerto com sua gerente e foi. Segundo a assistente social, ao entrar no carro, Carlos colocou a mão em sua perna e, quando questionado sobre o que estava acontecendo, respondeu: “Eu sou seu pastor, você é a minha ovelha e nós somos sensitivos”.
Desceram em um parque onde a conversa seguiu durante uma caminhada. Carlos parou e sugeriu um abraço para aliviar a ansiedade. Mesmo desconfortável, a moça cedeu. O abraço virou carícia nas costas, depois, uma massagem. Clarice relata o ocorrido constrangida, medindo as palavras. “Ele começou a me tocar onde eu nem me sinto confortável para falar; tocou meu […]”, faz uma pausa para escolher a palavra, “ele tocou meu colo, eu estava em choque, não conseguia me mexer, comecei a chorar”, conta. Diante do choro, o pastor pediu para que ela deixasse de ser conservadora, mas atendeu ao seu pedido de levá-la de volta. Ao chegar no trabalho, ainda em prantos, vomitou, mas guardou para si o que havia acabado de acontecer.
Longe de casa
Todos os dias, Clarice pensava em desistir da viagem, mas dialogava consigo mesma dizendo que, provavelmente, não havia entendido direito a situação. Ele era seu pastor. A dúvida a acompanhou até o aeroporto, onde confirmou que a sobrinha e a cunhada do departamental também embarcariam. “Não vai acontecer nada”, repetia para si. E foi.
Após cinco horas de voo, acordou com Carlos lhe chamando para conversar no final do corredor. “Ele vai me pedir desculpas”, pensou. Porém, o pastor a puxou para perto de si, jogou uma coberta ao redor deles e pediu para que ela o esquentasse. “Eu trabalho diariamente com mulheres que sofreram abuso e sempre questiono por que elas não reagem, e naquele momento eu também não consegui fazer nada, fiquei parada enquanto ele falava, mais uma vez, para eu deixar de ser conservadora”, lembra. O pastor só se afastou quando outras pessoas do grupo foram a sua busca.
Ao pousar, Clarice lhe enviou uma mensagem de texto pedindo para que aquilo não se repetisse. Carlos respondeu com uma risada e a afirmação de que não iria parar. Longe de casa, acompanhada apenas por desconhecidos, teve medo. Chorava quase todos os dias e chegou a ter uma leve hemorragia causada pelo abalo emocional.
A missionária afirma que, ao perceber que não conseguiria o que queria, o ex-diretor da ADRA São Paulo passou a tratá-la com frieza e negou o auxílio financeiro para alimentação acordado anteriormente. Não fosse o empréstimo cedido por outras integrantes do grupo, Clarice não teria recursos para comprar comida durante um período da missão.
“Isso foi assédio”
A cartilha de material informativo sobre Assédio moral e Assédio sexual, feita pelo Senado Federal, define como assédio sexual o ato de constranger alguém com o intuito de obter algum favorecimento sexual, utilizando-se de sua posição hierárquica superior. Sendo não consentido e considerado desagradável, ofensivo ou impertinente pela vítima.
Clarice conta que apesar da sua angústia, das crises de ansiedade e de choro no trabalho, não conseguia nomear o que havia acontecido. “A gente tem a figura do pastor como de um ungido do Senhor, tem muito respeito, acho que isso dificultou para que minha ficha caísse e eu entendesse”, explica.
Foi apenas quando desaguou pela primeira vez tudo o que guardava para si há semanas para um colega de trabalho e médico, também adventista, que, através de suas poucas palavras, a situação se impôs tal como era: “Isso foi assédio”.
Logo após, o doutor a incentivou a buscar sua terapeuta, Débora Menezes*. Clarice ligou para a psicóloga no mesmo dia e ambas choraram ao telefone. Débora também havia sido assediada pelo mesmo pastor anos atrás.
A psicóloga se lembrou da ocasião em que, enquanto funcionária de Carlos, o então chefe telefonou em um domingo dizendo que precisava encontrá-la para tratar de assuntos do trabalho. No escritório da psicóloga, afirmou que ela parecia cansada e começou a massagear suas costas. Depois seu rosto. Depois seus seios.
Como explica o advogado especializado em direito penal e mestrando em Direito Administrativo pela Universidade de Lisboa, Manoel Rodrigues Pereira, em ambos os casos o departamental “cercou” as mulheres, criando momentos no qual estariam sozinhos, sempre em um contexto de poder político ou social sobre a vítima. Para ele, tal conduta pode ser tipificada como estupro.
Guardando o silêncio
Quando teve seu corpo tocado e violado por Carlos, Débora travou. Sentia como se estivesse fora de si, flutuando, vivendo algo irreal. Na ocasião, decidiu não contar a ninguém sobre o ocorrido. Enquanto funcionária da Associação Paulista Sul (APS), sabia qual seria o desfecho caso denunciasse um pastor influente. Diante da possibilidade de ser demitida e desacreditada, silenciou.
Anos depois, outras mulheres a buscaram para desabafar suas angústias após serem assediadas por Carlos. Desta vez, a psicóloga o confrontou: “Ele me falou que isso não se repetiria e eu, ingênua, acreditei”, explica.
Em agosto de 2019, quando Clarice telefonou para ela, suas palavras soaram para Débora como a gota d’água que transborda o copo, mas também como um chamado. Juntas, iniciaram um movimento em busca de justiça e segurança para as mulheres que viveram e viviam situações de assédio pelo pastor dentro de suas igrejas e ministérios.
Clarice conta que a primeira pessoa que lhe passou pela cabeça para pedir orientação foi a deputada estadual adventista de SP, atualmente filiada ao PSDB, que se elegeu levantando a bandeira do combate à violência contra a mulher. A parlamentar não levou o caso adiante. Um mês depois, participou como palestrante em um evento organizado por Carlos.
Débora, então, procurou o departamental do Ministério da Família da UCB, responsável por casos como este em todo o estado de São Paulo. Foram semanas de telefonemas e mensagens sob a promessa de que algo seria feito. Não foi. Pressionado para agendar uma conversa presencial, o ministerial aceitou. Não no prédio da instituição, mas em uma padaria localizada em Embu das Artes, SP.
“Depois que a Clarice contou tudo o que havia acontecido, ele perguntou para ela em alto e bom som onde ela queria chegar com aquela denúncia, o que ela queria”, lembra Débora. Em seguida, sugeriu que talvez a assistente social estivesse muito cansada e precisava de uns dias em uma das clínicas da instituição. Ou ainda que eles poderiam ajudá-la com os estudos de sua filha.
As mulheres relatam que também buscaram apoio do presidente da Associação Paulista Oeste (APO), uma vez que havia vítimas em seu campo. Porém, o líder da APO desconversou, silenciou e, posteriormente, disse para uma das mulheres assediadas que seria melhor não mexer neste assunto.
Outros pastores e líderes foram procurados, mas se posicionavam de forma semelhante. Segundo Clarice, alguns se solidarizavam, mas evitavam serem vistos com ela. “Me falaram que se a administração soubesse que algum pastor estava tendo contato comigo, (este) seria punido; eu cheguei a ouvir que preferiam não colocar em xeque o ‘salarinho’ e ‘conveniozinho’ para ficar do meu lado”, desabafa.
Diante da omissão da instituição, foram à delegacia. Débora e Clarice ajuizaram dois processos contra Carlos, nos quais outras vítimas também apresentaram denúncias. As mais de dez mulheres que relataram informalmente terem sido alvo de assédio preferiram não depor por receio de retaliação, desmoralização ou problemas familiares.
Sob ameaça de exposição do caso na mídia, a UCB jubilou Carlos em outubro de 2019, em uma reunião online e discreta com os departamentais do estado. Clarice, por outro lado, foi afastada do seu ministério na igreja, cargo para o qual havia sido votada em comissão anteriormente, e Débora teve sua vida pessoal vasculhada e exposta numa tentativa de descredibilizar seu depoimento.
O processo
Hoje, Carlos Altino responde a dois processos. O advogado que representa judicialmente Clarice e Débora, Manoel Rodrigues Pereira, explica que na esfera criminal, os casos são tipificados como estupro na modalidade do artigo 213 do Código Penal, uma vez que não havia a figura do novo tipo penal de “importunação sexual”. Nestes, o pastor já apresentou um depoimento preliminar com sua versão dos fatos.
Nas ações cíveis, o ex-departamental se esquivou por dois anos das citações — isto é, o ato pelo qual se chama a juízo o réu — sendo localizado pela justiça apenas em outubro de 2021.
“Nas ações penais, se condenado na modalidade consumada, o réu pode ser condenado a uma pena a partir de seis anos, como dispõe o art. 213 do código penal, caso seja entendido que o crime foi praticado na modalidade tentada; essa pena base pode ser reduzida em até dois terços, como dispõe o art. 14, II, parágrafo único”, explana Manoel.
A UCB, seus pastores e líderes procurados pelas vítimas também foram citados nos processos cíveis. Isso porque, segundo Pereira, a IASD possui responsabilidade solidária nos casos. “Primeiro porque foi a qualidade de pastor vinculado à igreja que permitiu que o agressor criasse um contexto no qual as vítimas estariam expostas as suas agressões. […] o agressor se valeu diretamente do fato de ser pastor para agredir as vítimas”, expõe.
O advogado continua dizendo que, para além disso, houve leniência e descaso por parte da igreja. “Ao denunciar as agressões, as vítimas foram ignoradas em um primeiro momento, depois silenciadas, e por último perseguidas; de certa forma (a IASD assumiu um papel) de ‘cumplicidade’ com as agressões do pastor réu”, explica.
Um problema global
Segundo cobertura realizada pela revista adventista estadunidense Spectrum Magazine, na reunião de primavera do comitê executivo da Associação Geral (AG), em abril de 2020, foi debatida a necessidade de iniciativas de combate ao abuso sexual dentro da organização. Na ocasião, o presidente Ted Wilson afirmou que relatórios e planos locais de prevenção foram enviados por todas as divisões, porém não poderia divulgá-los devido a cinco deles conterem informações bastante detalhadas.
O tema levantou uma discussão acalorada, onde alguns questionaram quais ações seriam efetivamente desenvolvidas nos campos. Wilson rebateu dizendo que não pretendiam ditar para as Divisões como deveriam lidar com o assunto, mas que estavam “dando a maior atenção possível”.
A presidente do Adventist International Institute of Advanced Studies, Ginger Ketting-Weller, lançou outra pergunta provocativa: “Por que você não gostaria de ter uma abordagem mundial para este problema?”. Ela afirmou ainda que treinamento, monitoramento e relatórios são os elementos-chave para interromper a ocorrência de casos. Ted Wilson prometeu que este era apenas um começo.
A omissão da igreja
Apesar de seus planos ainda incipientes a nível mundial, a IASD já possui algumas diretrizes em seus Regulamentos Eclesiástico-Administrativos (REA), seção E 87, intitulada “Conduta sexual inapropriada envolvendo obreiros da igreja e voluntários”. Constam como definições do que constitui uma “conduta sexual inapropriada” (E 87 15):
1. Assédio sexual – Qualquer iniciativa sexual indesejável, ainda que por meio virtual, como pedido de favores sexuais, e/ou outra conduta verbal, virtual ou física, que possa incluir, mas que não se limita a comentários, piadas, gestos, imagens sexualmente sugestivas, linguagem grosseira e contato físico indesejável que seja de natureza sexual:
a) Feito de forma explícita ou implicitamente entre pessoas ligadas entre si pela condição de emprego, atividades missionárias ou voluntárias;
b) Usado como uma base para afetar aqueles vínculos no trabalho, nas atividades missionárias ou voluntárias; e/ou
c) Que cria um ambiente intimidativo, hostil e/ou ofensivo.
2. Conduta sexual inapropriada – Comportamento sexual impróprio incluindo qualquer um dos seguintes:
a) Tentativa ou consumação de contato sexual ou atos libidinosos com pessoa menor de idade ou com qualquer pessoa que esteja de alguma forma subordinada ou em desigualdade de poder, como professor e aluno, por exemplo, e ainda, quando não exista desigualdade de poder;
b) Tentativa ou consumação de estupro ou contato sexual não consensual mediante uso de força, ameaça ou intimidação;
c) Qualquer outro comportamento criminoso de natureza sexual.
No parágrafo seguinte (E 87 20), intitulado “Princípios Orientadores e Conceitos Subjacentes ao Desenvolvimento deste Regulamento”, o REA define: “Todas as acusações de conduta sexual inapropriada devem ser levadas a sério. Nenhuma acusação será descartada sem uma resposta, e todas serão processadas em tempo. O acusado e o acusador devem ser tratados com respeito.” Ele ainda esclarece que qualquer obreiro ou voluntário “que tenha se envolvido com conduta sexual inapropriada” está sujeito à disciplina “como descrito no Working Policy da Associação Geral, no Manual da Igreja e nos regulamentos de pessoal ou contratos de emprego”; e adverte que “quaisquer indivíduos que sejam ou pareçam ser tendenciosos, preconceituosos, predispostos ou que tenham um conflito de interesses, devem ser substituídos ou excluídos da responsabilidade de tratar da situação”.
A revista Zelota procurou o departamental do Ministério da Família da UCB por telefone para esclarecer o caso. Ele atentedeu, mas desligou o telefone após a apresentação do jornalista. As questões foram então enviadas ao seu WhatsApp; ele não respondeu à mensagem e bloqueou o contato.
A Zelota também procurou o departamental de comunicação da UCB por telefone, mas nenhuma de suas ligações foram atendidas durante uma semana. Posteriormente, ao entrar em contato, por e-mail, com a Assessoria da Imprensa, a revista foi notificada de que em breve receberia alguma resposta oficial. A Zelota pediu um prazo útil à UCB, mas não recebeu qualquer resposta até a publicação desta matéria.
Mesmo após as denúncias, Carlos Altino permanece como membro da Igreja Adventista. Nenhuma medida foi tomada para além da sua jubilação tardia e discreta, com a garantia dos direitos e benefícios padrão. “Sabemos que se fosse o caso de uma mulher grávida, já teria sido removida; por que um crime não tem o mesmo peso?”, questiona Débora.
Após mais de dois anos do ocorrido, Clarice ainda faz terapia e toma remédios para lidar com suas memórias. Não consegue falar sobre o assunto sem se abalar. As palavras saem atravessadas, constrangidas. Mas não titubeia ao dizer o que espera após 26 meses de luta: justiça. “Eu fiquei tão mal que fui afastada do trabalho, tive problemas familiares e ainda tomo remédios, mas sigo porque quero que nenhuma outra mulher passe por isso, a igreja não pode ser omissa a casos de assédio e abuso”, finaliza.