Apocalipse nos trópicos, de Petra Costa, revela a leniência dos religiosos progressistas que abandonaram o sentido das massas, enquanto pastores como Silas Malafaia conseguem discerni-las, não apenas na luta entre o bem e o mal, mas na figura de um sindicalista que usa o púlpito como palco


Por Rilton Filho | Formado em Teologia e em História, é pós-graduando em Filosofia Contemporânea pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Atua como pastor batista e professor. 

Em 2017 escutei de um teólogo a seguinte dinâmica na forma como se produz teologia: “primeiro fala o jornalista, por último fala o teólogo”. Mal sabia ele que quase uma década depois esses quadros tenderiam a se misturar, tornando o serviço teológico obrigatoriamente investigativo. Atualmente no Brasil existem modulações políticas bem próximas das linguagens e formas religiosas, sejam elas protestantes, católicas ou até mesmo umbandistas, se considerarmos o último censo. Junto a isso, existem simplificações às quais Petra Costa não escapa (mas confesso que não tenho nenhum interesse de pesar sobre isso) e que mais atrapalham do que dizem algo de relevante: teologia do domínio, evangelistão, nacionalismo cristão e fundamentalismo religioso são o forro do exercício teológico endógeno.

Aliás, deve-se lembrar que o caráter intuitivo do fazer teológico implica, por exemplo, a necessidade inegociável da investigação que vocaliza a raiz das coisas, semelhante à perspectiva da teologia sistemática quando pretende dar coesão ao pecado original.

Apenas para apontar o fundo falso com que se versam as tais simplificações sobre religião e política no Brasil, no caso dos evangélicos, é curioso acompanhar os movimentos progressistas reivindicando voz no documentário Apocalipse nos trópicos, de Petra Costa, e o criticando por sua “falta de diversidade” evangélica. Antes de assistir a produção eu entendi essas críticas mais como a birra de um povo que não entendeu o tempo do mundo que vivemos. Mas ao assisti-lo, para minha surpresa, percebi que Petra dedicou alguns poucos minutos ao Pr. Paulo Marcelo, na tentativa de contemplar uma voz destoante ao bolsonarismo evangélico. Dali em diante me restaram duas alternativas: ou esses que ficaram fora do pagode desejavam seu minuto de fama e por isso lançaram mão das simplificações (crítica aos estereótipos e ao não reconhecimento da pluralidade), ou a verdade é que esta é a verdadeira teologia do domínio — a exigência da contemplação de todas as identidades dentro de um quadro no qual as questões de classe já não são suficientes. 

Fato é que o trabalho investigativo da classe teológica poderia glosar os seguintes termos: qual a razão para Petra Costa dedicar tempo e disposição para acompanhar a rotina de Silas Malafaia e enquadrar os evangélicos nessa imagem? Qual o motivo do não comparecimento de outras representações cristãs?

Na intenção de tentar aprofundar as raízes dessas preocupações, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin, é fundamental no alongamento de alguns conceitos. Benjamin, capaz de perceber o tempo histórico, associou as massas modernas à quebra do que chamou de “aura”. Nas palavras do autor, aura é: “Uma trama peculiar de espaço e tempo, a aparição única de uma distância, por mais próxima que esteja.”1 Nesse sentido, as massas, por ansiedade ou algo parecido, aproximam as imagens para perto de si, considerando-as como objetos orientadores. Isto é: quanto mais quebro a aura de uma imagem, mais próxima e efetiva ela se tornaria.

É interessante como Petra Costa consegue aproximar Jair Bolsonaro obedecendo a essa cadência na quebra da aura2 que, nos lábios da cineasta, parece uma dissecação dos pensamentos mais profundos do pregador elegido:  “Silas Malafaia logo vai ter um presidente pra chamar de seu.” Esta é a perspicácia de quem reconhece o valor orientador de uma figura, sem cair em jargões viciantes. Aliás, é aqui que nos aproximamos das razões pelas quais Petra Costa não perde tempo em descrever certa pluralidade nos evangélicos do Brasil. Como apontou Mafessoli, no mundo moderno “Deus, o Espírito e o indivíduo cedem lugar ao reagrupamento. O homem não é mais considerado isoladamente”. Essa aglutinação é batizada por ele como “estética do sentimento”,3 isto é, os sentimentos (e não a razão, como se projetou no século 17 em diante até mesmo pelas chamadas teologias contextuais) são os afetos que forjam uma comunidade tribal; em outras palavras, uma comunidade cujos membros se desintegraram em favor de um “sentimento partilhado”. Petra parece desconfiar de quem é capaz de mobilizar mentes e corações de um grande e decisivo agrupamento.

Vez ou outra a história dá conta de encadear certas ideias e ocasiões que ajudam, quando aproximadas, no entendimento apurado do tempo presente. Em 1848, ano da publicação do Manifesto Comunista, Tocqueville, discursando na Câmara francesa, desconfia do fim de um tempo que ele ajudava preservar, isto é, a queda das monarquias, e o início de outro, quer dizer, a formação dos Estados modernos imbuídos por sentimentos liberais, mas também socialistas: “Nós dormimos sobre um vulcão. Os senhores não percebem que a terra treme mais uma vez? Sopra o vento das revoluções, a tempestade está no horizonte.”4 Nota-se que o alarde fica por conta de quem sabe que o novo tempo virá inevitavelmente, enquanto os encaminhamentos ficam por conta dos que sabem que podem vencer: a chamada “Primavera dos Povos”. Paradoxalmente, na acepção brasileira, o alarde tem sido feito pela chamada base revolucionária progressista, enquanto os encaminhamentos têm sido feito pelos conservadores: um grupo de pesquisadores do qual faço parte pretende entender melhor este fenômeno na obra Apocalipse na acepção brasileira do termo: formação do movimento evangélico, a ser publicada em 2025 pela Autonomia Literária.

Por isso mais uma vez devemos reconhecer o valor de Silas Malafaia como alguém capaz de discernir as massas, não somente na escala da luta do bem contra o mal, mas no rescaldo de um sindicalista cujo palco é o púlpito de uma igreja nacional (em formas mais ou menos semelhantes ao que fez Martin Luther King Jr.), ao aproximar a figura de Bolsonaro do texto de Paulo: “Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; E Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são; Para que nenhuma carne se glorie perante ele”. (1Coríntios 1.27-29). Malafaia sabe, diferente da esquerda ilustrada a quem só restou reproduzir memes desta cena, que ao quebrar a aura da figura de um presidente, ele o aproxima das massas como figura orientadora e preocupada com o agrupamento dos precarizados. Novamente nas palavras de Benjamin: “O alinhamento da realidade com as massas e das massas com ela é um evento de alcance ilimitado, tanto para o pensamento como para a intuição.”5

Não posso sofrer nenhuma acusação, mesmo que se queira, sobre uma aproximação forçada do Malafaia a um tipo sindicalista. Isso porque após as Revoluções de 30 o mundo passou a conviver com oligarquias agrárias ou burguesas alijadas do poder conservador, o que facilmente explica um pastor viver numa mansão e ao mesmo tempo proclamar reivindicações pela sociabilidade dos indivíduos (questões envolvendo aborto, sexualidade, moral, etc.). Na visão do sociólogo Florestan Fernandes, esta seria uma “revolução dentro da ordem”.6 Forma-se, portanto, um corporativismo, pacto ou coisa parecida, cujos acenos em direção a rupturas momentâneas do Estado devem ser entendidos como processos naturais às transformações capitalistas. Malafaia, portanto, é um sindicalista corporativista de púlpito porque ajuda a sacralizar a pandemia ou o 8 de janeiro, sem deixar de considerar a violência ou brutalidade da sociedade capitalista. Não à toa, no documentário ele compara uma briga de trânsito, gravada e exposta, ao fato de Jesus ter expulsado mercadores do templo com chicotes. Um sindicalista corporativista/moderno não tem medo de usar chicotes fora do templo.

Apocalipse nos trópicos desperta uma certa leniência dos religiosos progressistas que abandonaram o sentido das massas, em nome do reforço das identidades que drenaram sua capacidade de estarem ligados uns aos outros e serem efetivos em produzir algo que faça sentido ao povo.

“Em que tempo vivemos?”, perguntou em um breve ensaio o francês Jacques Rancière. Para o filósofo, as fragmentações do tempo presente não servem como antecipação do futuro, mas para “abrir um buraco no presente” e “intensificar outra maneira de ser e de perceber”.7 Isso significa compreender que o apocalipse atuante no Brasil, seja com Bolsonaro, Malafaia ou outras figuras substituíveis, pretende escamotear buracos capazes de produzir sentido aos precarizados, ou, na linguagem bíblica, aos pequeninos; buracos que se agrupam livres das identidades; buracos que afrouxam as proposições teológicas ultrapassadas. Se é verdade que, em mais uma dessas simplificações, progressistas gostam de afirmar uma certa cópia aos modelos estadunidenses por parte dos brasileiros, sobretudo na religião, Apocalipse nos trópicos, nesse sentido, serve para sinalizar como os conservadores conseguem dar sentido e sentimento sagrado ao engajamento social do povo brasileiro. Para sair deste para outro buraco, talvez seja o caso do Brasil imitar o Brasil.

Notas:

1. Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (Porto Alegre, RS: L&PM, 2024), p. 59.

2. É verdade que aqui fazemos um uso deslocado, mas possível, da categoria de ‘aura’. Não se trata da aura do indivíduo Jair, mas daquela construída em torno de seu simbolismo: Bolsonaro. Trata-se de um tipo de aura sustentada pelo distanciamento, pela reverência e pela ideia de unicidade — atributos que determinadas figuras públicas podem adquirir em contextos específicos de mitificação ou culto à personalidade. Como observa Benjamin, ao comparar os tempos modernos com a antiguidade, diferente da época de Homero, hoje oferecemos o espetáculo para nós mesmos (p. 196).

3. Michel Maffesoli, O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades pós-modernas (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006), p. 32.

4. Eric Hobsbawn, A era do capital (São Paulo: Paz e Terra, 1977), p. 25-26.

5. Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (Porto Alegre, RS: L&PM, 2024), p. 170.

6. Campos Nunes, “O sindicalismo corporativo brasileiro em uma perspectiva de John D. French, Florestan Fernandes e Raymundo Faoro”, p.9. Conversas & Controvérsias (Rio Grande do Sul, PUCRS, 2023), 13 pgs.

7. Marco Assennat, “Jacques Rancière, a possibilidade de abrir um buraco no presente”, p. 1. Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Publicado por Il Manifesto. (São Leopoldo – RS, 2017).