4 passos para mandar a interpretação literal da Bíblia para as cucuias


“Minha dor é perceber
Que apesar de tudo o que fizemos…”
Como nossos pais — Belchior

Já que ancestralidade é tudo na vida, vamos lá.

1. Nossa Pátria Cristã

O progressismo evangélico adora arrogar para si duas coisas: o pacifismo e o Estado laico. Tudo isso com base no que chamam de ancestralidade. Não entraremos aqui no debate fraseológico do revisionismo bíblico mais rasteiro que quer criar a fantasia de um Jesus etíope para dizer que ele (o de Nazaré) era negro — qualquer estudante de antropologia da semana de recepção sabe que raça tem muito pouco (pra não dizer, quase nada) a ver com a epiderme do racializado. Um branding, por isso mesmo sem valor de transmissibilidade. É só olhar para os rostinhos dos congressos desses evangélicos progressistas e ir para as igrejas de bairro que mal têm microfone funcionando, olhar para as baby faces de uns e as caras suadas de outros, para vermos onde está a real ancestralidade brasileira. 

Para além disso, ao errar, nossos queridos irmãos ilustrados acertaram em cheio, pois como vivemos num mundo histórico, só se vive de ancestralidade (mais uma vez, vai por água abaixo a tentativa de tê-la como diferencial mercadológico, já que é o arroz com feijão de qualquer aulinha número 1 da Escola Bíblica Dominical de qualquer cômodo que, com dois ou três, se denomine Igreja e afirme que se é herdeiro de algo que começou “desde antes da fundação do mundo”, ou mesmo de qualquer um que recebeu o tapinha na bunda do médico para dar o primeiro suspiro — sim, por incrível que pareça, essa é a qualidade da disrupção de nossos amados). 

Sua gênese é a Reforma Protestante, que eles higienizam por duas razões: ontem e hoje escolheram estar ao lado dos príncipes deste mundo (antes com sobrenomes infindos, hoje, CEOs e acionistas de think tanks das assim chamadas “identidades subalternas”) e, por já terem derramado muito sangue há quinhentos anos com as Guerras de Religião, agora podem dizer que belicosos são os “cristãos fundamentalistas” — mais um jargão que não quer dizer nada de interessante ou de sensato que faça alguma diferença na vida de qualquer um que tente minimamente mudar as coisas que só aceleram o fim do mundo. Vem daí seu pacifismo. Além disso, apesar do bom mocismo, nossos estadistas-in-Jesus-name também têm seu projeto de Pátria Cristã, justamente o resultado secularizado da Reforma (orgulho universal dos filhos de…): o Estado Laico. Com direito a secretaria para tratar de evangélico! Is Damares back? Pelo visto, só mudou de endereço.

E tudo isso começou, sabe com quem? Não, meus caros, não foi a partir das falas de seus pastores que, contra o golpe fundamentalista (?), colocam sempre a importância do Estado laico ou mesmo a novidade de quinhentos anos atrás de ensino crítico da Bíblia nas escolas e instituições contra o Mal do Fundamentalismo (?). Foi Martinho Lutero. Um alemão. Ariano. 

Em suma, a única coisa que diferencia a Pátria Cristã Reformada da que está sendo construída é, além da origem social, a letra dos códigos e mandamentos a serem seguidos. A forma é a mesma: a norma, a doutrina, o “ande na linha se não quiser ser posto na frente da Igreja para ser repreendido”. Enquanto uns condenam os viados, outros, aqueles que usam os termos errados. Nos dois casos, normatividade pura — até porque quem xinga o outro de “normativo” precisou criar régua e compasso antes… ou não? 

Voltando pra resumir um pouco mais e deixar sem sombra de dúvida: a única diferença entre os dois projetos de Pátria Cristã é a de que os que agora podem pagar de pacíficos já fizeram sua revolução que, ao se secularizar, deu no que deu, para orgulho dos pais fundadores desse monstrengo que faz parte da desgraça que é esse mundão que jaz no Maligno. Carl Schmitt,1 dessa vez? Não, estamos falando da crentalhada ilustrada brasileira. A fórmula é infalível. Filho de peixe…

2. Travessias desistênticas

O penúltimo episódio da nossa última catástrofe foi a eleição do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro. Nas palavras de um sociólogo, dos primeiros a perceber e tentar enfrentar o que aquilo significava: “Não há como diminuir o tamanho da catástrofe que aconteceu ao Brasil” no dia 28 de outubro de 2018.2 Do lado de cá da Cristandade, ela se deu da seguinte maneira: nossos desconstruídos-que-reinarão-pelos-séculos-dos-séculos (de resto, a paga mais que merecida por tanto massacre terreal, como dito acima) que gostam de filosofia, experienciam o tempo em suas dimensões a partir da apatia e do tremor de que o Fim é inevitável e só resta aceitá-lo. “Mas há que ser bom moço”, pensaram do alto do cocuruto. Aí decidiram fazer de tudo para adiar o fim do mundo. E por razões óbvias. Determinaram que é preciso abdicar da construção de algo diferente para reconstruir o Brasil. Esqueceram-se, por, dentre outras razões, uma questão de ancestralidade, que a nação que dá nacionalidade à Trindade, que começava a ser destruída, era uma das pedras angulares do problema. Ou seja, nossos amados são, desde então, parte da catástrofe que hoje atende pelo nome de “capitalismo em fim de linha” (mais uma vez e sempre, como diz aquela velha tia que sempre tem razão, “de boa intenção…”). E ainda estão a fazê-lo. Sabemos o que está reservado a estes.

A fórmula da desistência: recusar todo e qualquer projeto crítico e começar a fazer… teologia! Em sã consciência, sei lá como, todos os grandes baluartes da Intelligentsia crística acharam que, por A + B, deveriam dedicar-se a criar um aparato místico-power-teológico-master-político-blaster-espiritual-bullshit-blá-blá-blá-lenga-lenga conceitual para compreender a realidade e, a partir dela… sei lá o quê, porque até lá o mundo já vai ter acabado, com certeza. 

Os exemplos são vários… desde gente que antes se punha a identificar as raízes do que se convencionou chamar de Teologia Negra e sua possível assimilação para a realidade brasileira, que se tornou um copia-cola made in USA, até gente que antes intuiu que as forças policiais eram talvez o grande problema brasileiro, e criaram um fetiche em torno de certa experiência pentecostal. Para todas as épistémè, a última moda é deixar de falar português para falar em línguas estranhas aos brasileiros que trabalham nos piores postos de trabalho, têm raça e classe social, e morar na autodeclarada Terra Santa desde 1776, o Norte do mundo. E pra quê? Pra tentar mudar a rua com esgoto a céu aberto de uma favela brasileira. E depois esses crentes-do-pau-oco dizem que não acreditam em milagre… Eles não acreditam no que dizem, isso sim! Porque, realmente… é preciso muita fé, mais do que a necessária para mover montanhas, pra achar que da terra de Hollywood é possível fazer algo de concreto pra mudar a vida dos negros brasileiros (que para o desgosto deles, são pentecostais e conservadores ao mesmo tempo — como se fosse possível ser só uma coisa ou outra, mas isso é outra conversa), olha… Com todas as letras: C-O-L-O-N-I-Z-A-D-O-S, e com orgulho de ser, justo daqueles que arrogam para si mesmos a condição de Absolutos e por isso mesmo financiam todas as guerras genocidárias no mundo. Já vivemos melhores dias.

Chega de lamúrias. Voltemos à ancestralidade. Ao saírem dos projetos críticos a este mundo para tentar criar um aparato teológico-cosmológico, mais uma vez, tentando inventar uma nova roda, os cosmólogos-do-grande-Eu-Sou caíram nos seus ancestrais de verdade. O primeiro, um alemão (sempre eles, santo Deus!) que viveu para fazer a transvaloração de todos os valores que eles não cansam de admirar. O segundo, um brasileiro que, assim como eles, abdicou de alguma coisa, começou a estudar filosofia e depois foi virar professor online… sabe onde? Nos Estados Unidos! Sabemos onde desaguaram os projetos do bigodão e do velhote — o primeiro, na Solução levada a cabo por um exército de Ubermensch (e derrotada apenas militarmente), o segundo, na “revolução que estamos vivendo”, de acordo com os próprios insurgentes.3 E depois reclamam que os ateus tripudiam dos cristãos. O problema não são os “sem doutrina”, são os doutrinados. 

3. Não saia da linha!

E de novo, outro ponto de contato entre os irmãos em Cristo (donde começa a brotar a sensação de que talvez “cristão fundamentalista” seja apenas uma redundância que uns têm coragem de admitir e outros ainda não confessaram com a boca): o Pecado, a culpa e a norma como nexo de sociabilidade e termo a partir do qual se põe a linha que separa amigos de inimigos. Linha que demarca, de um lado, compadrio, amizade, pertença e leniência, e do outro, a possibilidade de Guerra Justa (conservadorismo puro, em bom português). Dos dois lados, o critério para entrar no inferno, o “errar o alvo”, mais conhecido como “pecado” ou “normatividade”, a depender da seita. Querem ser Deus, o justo juiz, sendo pó. Comeram do fruto do conhecimento — que uns mais entendidos chamam de ato despótico original — e ainda não se deram conta do resultado. Não entenderam que “não há condenação”. Ouse sair um milímetro da bênção de nossos amigos desconstruídos pra você ver o que acontece. Não queira!

Historicamente, é possível datar quando os desviantes passaram a se ter como régua e compasso e, portanto, apartaram-se da Trindade para demarcar sua linha entre o Bem e o Mal. Isso acontece em 2012 quando seu modelo, a Igreja Batista de Água Branca, com a faca e o queijo na mão da ministração de seu pastor principal, ao abrir a boca e falar sobre um trecho do capítulo 8 do Evangelho segundo Paulo Apóstolo, deu pra trás ao decidir não viver o que significava tamanha revelação. Tremeu diante dos fariseus que estão no seu hall de membros e que ficaram incomodados com o que lhes havia sido manifesto. Ao ouvir o zumzumzum daqueles que pagam o dízimo pelos outros milhares que “não são fieis para com Deus” no dinheiro e fazem com que a igreja não entre no vermelho — obrigando esses donos da igreja (geralmente com raça e classe muito bem definidas) a dar as suas sobras (sabemos qual valor o Cristo dá a essas sobras que pagam a campanha de Natal), esses mesmos que têm acesso à agenda do Pregador (e só eles!) —, levou-se para o púlpito a pergunta mais cretina que poderia ser feita, “mas, então quer dizer que Hitler vai para o céu?”. 

Ao invés de pronunciar o devido “não é da sua conta!” e enfrentar as consequências da grandeza do que havia sido alardeado (que só poderiam ser muito melhores do que as imaginadas), a igreja apartou-se de seu propósito e transformou-se numa outra espécie de realização de seu conceito. É o universal abstrato de uma megaigreja: está em todos os lugares e não faz diferença alguma, ou melhor, é parte do problema, como estamos acompanhando. Um bando de Jonas que, ao ouvirem a palavra de Deus, fugiram de Nínive porque escutaram da boca do Altíssimo que aqueles a quem eles odeiam vão para o céu andar em ruas de ouro de mãos dadas com eles — o maior pesadelo de todas as Igrejas do Apocalipse. 

 Voltamos ao ponto de contato entre o precedente e a realidade desses nossos evangélicos progressistas: nossos críticos-crentes são absolutamente desnecessários. Todo mundo já sabe de tudo, inclusive eles, e decidiram estar onde estão (mais uma vez, inclusive eles). Por isso decidiram deixar tão demarcada a sua soberania, porque foi só isso que sobrou. A cristandade ilustrada vive na espiritosfera porque não tem coragem de declarar o que é, talvez a maior disparidade com relação aos seus irmãos que de fato desconstroem a realidade acabando com ela. Daí brota uma diferença (!) em relação aos seus iguais abertamente soberanos, estes últimos estão de fato preparados para a guerra e já começaram a fazer a revolução trabalhadora, negra, feminina e, como os salvadores da pátria abandonaram o barco, conservadora, no Brasil: ela é pentecostal. Um exemplo eleitoral, para passarmos ao próximo ponto de nosso Manual: acabaram em uma tacada com o reinado de vinte anos de condomínio eleitoral e, quatro anos depois, com o maior símbolo do que é a nação genocida de si própria que é o Brasil: Brasília. E farão pior em 2026.

4. Eventin

Tudo precisa ser um acontecimento, desde um carrossel de Instagram a um Congresso, passando pelos podcasts e outras paragens. E não poderia ser de outro jeito, é só isso o que têm a oferecer. Pelo visto, é isso que signfica ser igreja no século 21. Mais espetacular impossível, já diria um francês (outra língua que nossos enlightened adoram gastar): o germe dos segundos finais que fazem da paralisia um dos motores da máquina de moer gente. O evento tem a fantasia do pentecostalismo, o branding que serve a toda e qualquer roupagem. E só. Como se ser pentecostal fosse gritar durante a oração e cantar com a voz na garganta, com umas quebradas de corpo pra frente e um “xuricanta” aqui e acolá. E depois reclamam do “homem branco” que olha os nativos com olhares colonizadores europeus. Bom… se já identificamos que uma das matrizes de nossos desconstruídos é um ariano e eles gostam de falar em inglês e francês… estamos em casa.

Assim como seus irmãos conservadores (o que, pela enésima vez, até agora só junta os dois polos em rusga, sem os diferenciar em instante algum), formam seus guetos movidos pelo sentimento de culpa que gera rituais e costumes. Com a diferença (!!) de que, enquanto os seus irmãos fundamentalistas (?) preservam aquilo que realmente foi construído durante séculos de domínio, já percebemos que o gueto desconstruído, justamente por isso, vive apenas daquilo que fala aos seus próprios ouvidos — que, novamente, por isso mesmo só faz diferença para aqueles que vivem scrolling.  Pelo visto, confundem Pride com Party

Quem em sã consciência pensaria na possibilidade de que uma senhora que precisa dar satisfação para o Criador, para o Altíssimo, perderia seu tempo precioso com discursinho xumbrega de crente tilelê, sendo que precisa dividir seu tempo entre oração e cuidar da filha do patrão? Os exemplos podem ser mil, ao fim e ao cabo chegarão nas redes de sobrevivência a que essas pessoas se agarram para não passar desta para melhor, já que o posto de trabalho não existe mais. Elas têm orgulho de dizer, para além de sua autonomeação: “Deus proverá!”. 

O modelo, álibi, precedente e fórmula de sucesso não poderia ser outro: a IBAB pós-Romanos (leia-se: a série “Não me envergonho do Evangelho”, o início do fim da igreja local que ainda mantém a mesma marca registrada). De projeto de uma igreja que, ao realizar seu próprio conceito, se autodestrói, virou uma megaigreja cuja verdade é o cúmulo do culto-clero-domingo-templo: o último dia da campanha de Natal (culto-domingo) onde nosso presidente, a primeira-dama e o séquito (clero) anunciam do púlpito (templo) a fortuna amealhada — que, na verdade não vale de nada, todos sabemos, mas não temos coragem de dizer. O problema, em verdade, não é a quantidade de dinheiro — que no nível pessoal gera a famosa, rançosa e egoica “culpa cristã” traduzida na afirmação cínica de que “me sinto culpado por ser rico” (i.e., pecado não confessado) —, mas a ciência de que mais uma vez se escolheu a particularidade dos príncipes deste mundo. Feita a escolha, adicionada a culpa e o bom mocismo, só nos resta o já propalado mix de “senso comum com existencialismo requentado”, sempre com o modelo TED Talks de ser (cuja fórmula pode ser resumida em: palco limpo + fundo preto + autoajuda de botequim com entendidos sobre alguma coisa irrelevante) para escamotear a escolha de Hobson, que é (mais uma vez repetindo para demarcar que não há nada de up to date nos nossos descolados-que-se-dobram-ao-Criador), apesar da intenção, a junção de “uma aliança de correntes predominantes dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBTQ), por um lado, e segmentos empresariais de serviços e ‘simbólicos’ de ponta (Wall Street, Vale do Silício e Hollywood), por outro”,4  que deram em Trump e Bolsonaro, para a desgraça dos bem intencionados.5 E depois falam mal da Teologia da Prosperidade.

Os resultados são infalíveis e podem ser comprovados!6

Notas:

1. N.E.: Jurista conservador alemão, de origem católica, que, na década de 20 do século passado, redescobriu a questão da soberania como sendo o centro da discussão em torno da origem do Estado e do Direito. Pelas piores razões possíveis, fazer carreira, aderiu ao Terceiro Reich quando de sua ascensão.

2. Celso Rocha de Barros. No fundo do poço há o porão. Folha de S. Paulo. 29. out. 2018 (Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/celso-rocha-de-barros/2018/10/no-fundo-do-poco-ha-o-porao.shtml; último acesso: 27 de Outubro de 2023)

3. N.E.: O autor refere-se, respectivamente, a Friedrich Nietzsche (1844–1900) e a Olavo de Carvalho (1947–2022). O primeiro, um dos grandes filósofos do final do século 19. O segundo, ideólogo que virou guru do governo Bolsonaro. O que os dois têm em comum é sua oposição à modernidade e ao liberalismo, bem como ao socialismo.

4. Nancy Fraser. “Neoliberalismo progressista versus populismo reacionário: a escolha de Hobson.” In: Arjun Appadurai et al. A grande regressão: um debate internacional sobre os novos populismos e como enfrentá-los. São Paulo: Estação Liberdade, 2019. p. 78.

5. Ao lançar o artigo “A prosperidade da abundância” (https://revistazelota.com/a-prosperidade-da-abundancia/), foram dois os tipos de reação. Uns se condoeram e foram se lamentar ao mestre que havia sido profanado. Outros tripudiaram em cima do mesmo Mestre. Como estamos falando em coisas comuns, ninguém entendeu. Era deles que estava falando. O pastor exemplar (eis a palavrinha!) é a síntese mais acabada (no melhor dos sentidos) de tudo o que é rasteiro nos nossos cristãos progressistas. Talvez sejam essas as duas faces de uma mesma moeda: o terem como senhor e não terem entendido nada de nada.

6. O manual ora apresentado pode ser encontrado em termos mais sóbrios em: André Castro, Jayder Roger e João Marcos Duarte. “Quem tem medo do Progressismo Evangélico?”. A Terra É Redonda (online). 06. Dez. 2023 (Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/quem-tem-medo-do-progressismo-evangelico/; último acesso: 06 de Dezembro de 2023).