Morre, em 5 de novembro de 2023, Enrique Dussel, um dos mais importantes intelectuais do pensamento latino-americano e fundador da Filosofia da Libertação
Uma breve biografia (1934-1975)1
Enrique Dussel nasceu no povoado de La Paz, Mendonza, Argentina, em 1934, e faleceu na noite do dia 5 de novembro de 2023. Está no hall dos intelectuais latino-americanos de maior reconhecimento e impacto internacional. Formou-se em filosofia na Universidade Nacional de Cuyo (Argentina) em 1957, viajando em seguida para a Europa. Em entrevistas e também em algumas de suas aulas, Dussel contava que sua jornada para o “velho continente” abriu seus olhos para um mundo então desconhecido. Particularmente, destaca a diferença que foi parar no Brasil, no porto de Santos, e sentir um clima quente, com uma diversidade humana que não conhecia. Cada parada pelo caminho teria sido uma descoberta até a chegada em solo europeu, onde já não se sentia parte daquele território e se via diferente das pessoas ao seu redor.
No final dos anos 1950 e durante os anos 1960, Dussel realizou seus estudos superiores: doutorado em filosofia em 1959 pela Universidade Central de Madrid (Espanha), licenciatura em estudos da religião pelo Instituto Católico de Paris (França), em 1965, e seu doutorado em história pela Sorbonne (França) em 1967. Nesse período, também ministrou cursos na Alemanha – onde conheceu Johanna, sua companheira – e pôde fazer uma viagem como mochileiro para o Oriente Médio, especificamente em Israel, no território da Palestina, onde conheceu o padre Paul Gauthier, que o convidou para regressar para essa região depois que terminasse seu doutorado.
Assim, em 1959, Dussel passou uma temporada na “Terra Santa” estudando hebraico, participando de um curso de estudos bíblicos e trabalhando na construção civil com palestinos em um kibbutz – onde também aprendeu um pouco de árabe. Em sua autobiografia, ele comenta que contou com entusiasmo para Gauthier a história de Pizarro, o conquistador dos Andes, e logo foi questionado: “mas quem eram os oprimidos nesse período? Pizarro ou os índios?”. A pergunta teria feito com que o filósofo escrevesse naquela noite uma carta para um companheiro argentino, na qual dizia que “um dia precisaremos escrever uma história da América Latina contada desde baixo!”. Seus estudos se voltam, então, para a história da igreja na América Latina e dos padres e bispos que desempenharam algum papel de luta em defesa dos povos originários – tema de sua tese de doutorado defendida na Sorbonne.
Em 1968, Dussel retornou para a Argentina, casado com Johanna e com dois filhos, para assumir o posto de docente na Universidade Nacional da Resistência e na Universidade Nacional de Cuyo. Ainda impactado por sua experiência na Europa e no Oriente Médio, publica sua primeira obra em 1969: El humanismo semita, na qual tenta sistematizar o que havia aprendido a respeito da cultura ética e material das tradições semitas. Seu trabalho a partir de então se volta para a ética, entendida pelo autor como ponto de partida para a produção teórica no âmbito da filosofia.
Desse modo, na primeira metade dos anos de 1970, Dussel sistematiza um plano de trabalho que pretendia desenvolver ao longo de sua vida: partindo do campo da ética, visava reconstituir uma história e passaria progressivamente para os demais campos da filosofia (a política, a econômica, a pedagógica, a erótica, etc.). Seu propósito inicial era desenvolver esse conteúdo como filosofia latino-americana, ou seja, filosofia que assumia de modo autoconsciente a América Latina como referência e território a partir do qual os problemas deveriam ser enfrentados. Isso implicava em uma busca pela compreensão da história, das estruturas políticas, econômicas, de poder e de dominação que constituíam a realidade latino-americana. Este pensamento latino-americano seria compreendido como tal não por essencializar o que seria a “cultura específica do continente”, seu traço “fundamental” ou coisa do tipo. Seria latino-americano por assumir que a cultura presente era fruto de um processo violento de colonização e se mantinha em uma situação de dependência em sua diversidade, sob tensões políticas e econômicas em um mundo capitalista, imperialista e com crises sociais particularmente profundas em nossa região.
Sob esse aspecto, a partir de 1973, Dussel assumiu, junto com colegas argentinos, que a filosofia que produziam tinha como objetivo a libertação das condições de dominação que caracterizavam o processo de constituição da América Latina. Seguindo a tradição terceiro-mundista e animados pela recém-constituída Teologia da Libertação, nasceu a Filosofia da Libertação, tendo como principal representante Enrique Dussel, que constituiu a tendência teórica que se hegemonizou no grupo. Nesse período, também conheceu Franz Hinkelammert, Gustavo Gutierrez, Paulo Freire, Hugo Assmann e toda uma rede de intelectuais que conformam o que podemos considerar como a primeira geração do pensamento de libertação latino-americano.
Em 1975, no auge das tensões entre os movimentos populares e as ditaduras militares nos países latino-americanos, a Revista de Filosofia Latinoamericana foi censurada pelo governo militar, e, semanas depois, alguns colegas e uma aluna de Dussel foram assassinados. No mesmo ano, Dussel e sua família sofreram um atentado a bomba em sua casa – realizado por um movimento religioso e conservador aliado à ditadura argentina. Temendo por suas vidas, organizam uma fuga e extradição para o México, onde o filósofo da libertação começa a trabalhar como docente na Universidade Autónoma-Metropolitana de Iztapalapa.
Nesse momento, Dussel considerou a possibilidade de não conseguir mais produzir e dar sequência ao projeto intelectual que estava desenvolvendo junto a uma rede de teóricos envolvidos com as lutas populares. Desse modo, organizou em 1975 um livro, Filosofia da libertação, cujo objetivo era sistematizar e garantir como legado seu projeto filosófico. Nele, Dussel desenha a base de seu pensamento e os passos que imaginava serem necessários para a constituição de uma teoria robusta e consistente para os movimentos de libertação no continente.
Um panorama do amadurecimento teórico (1968-1998)
Quando havia retornado para a Argentina após sua jornada formativa na Europa, Dussel começou a ministrar aulas de ética, que funcionavam como laboratório para seu projeto de uma filosofia latino-americana. Começou um projeto de 5 volumes, intitulado Para uma ética latino-americana, de base fundamentalmente heideggeriana e muito influenciada, também, por Paul Ricoeur (que havia sido professor de Dussel na França). Nesse meio tempo, chega em suas mãos a obra Totalidade e Infinito, do filósofo judeu-lituano-francês Emmanuel Lévinas, que havia sido preso em um campo de concentração (Stalag B) e que havia produzido uma filosofia ética profundamente crítica à ontologia de Martin Heidegger. Esse livro impactou Dussel, que viu no pensamento de Lévinas uma crítica que podemos considerar semelhante à questão que Gauthier havia colocado para o filósofo argentino sobre Pizarro e os índios: onde está o “Outro” excluído ou dominado nessa ontologia?2
Com isso, Dussel altera significativamente o rumo de sua discussão ética, e desenvolve um trabalho original e particularmente relevante para a América Latina ao considerar em termos gerais e críticos a América Latina como a alteridade negada pelo continente europeu, assumida como objeto à mão, mas jamais como sujeito com quem se relaciona. Sua obra evolui para o desenvolvimento de uma metodologia de trabalho teórico própria (a chamada analética), que influencia e impacta gerações do pensamento crítico latino-americano. A sistematização e explicitação dessa metodologia aparecem pela primeira vez em 1974, e são revistas no início dos anos de 1980 em Método para uma filosofia da libertação, uma longa discussão sobre dialética na história da filosofia eurocêntrica que culmina com a proposição de um novo modo de trabalhar dialeticamente os conceitos de nossa realidade.
Durante a década de 1980, contudo, Dussel percebe que seu trabalho caminhava ainda em termos bastante abstratos. A passagem de uma reflexão ética crítica que conduzia para o desenvolvimento de uma nova metodologia carecia de materialidade. A partir das críticas que recebia de alunos, ex-alunos, colegas e também de movimentos sociais, além de sua insatisfação com muitos dos conteúdos propostos por correntes marxistas hegemônicas em nosso continente à época, Dussel dedicou mais de dez anos aos estudos do trabalho de Marx – o que fez com que muitos de seus novos leitores o tomassem como um marxólogo. Nesse período, produziu obras como A produção teórica de Marx, Hacia un Marx deconocido, El último Marx e Las metáforas teológicas de Marx. O manejo deste conteúdo garantiu a Dussel uma perspectiva materialista das relações políticas e econômicas, conferindo consistência às ideias que havia produzido anteriormente.
Por fim, em nosso pequeno recorte histórico, escolhido a partir do propósito de homenagear Dussel e apresentar seu trabalho a quem não o conhecesse, temos a entrada dos anos 1990, que nascem no nosso continente com o processo de implementação de democracias sob os marcos do projeto neoliberal – uma abertura política aliada ao estrangulamento econômico de nosso povo e nossa terra. Entram em vigor as propostas de emancipação individualizantes e de conversão das relações entre cidadãos em relações entre consumidores. A pretensão e a tendência de mercantilização da vida e das relações sociais criavam a expectativa (ilusória) de que no âmbito da negociação e convencimento entre sujeitos seria possível evitar guerras, mitigar conflitos e articular toda a vida social. Nesse âmbito, Dussel começou a discutir com a então em voga ética do discurso – cujos principais representantes eram Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas.3
Dos debates que promove durante os anos de 1990 (chamados debates Norte-Sul), Dussel conseguiu desenvolver uma crítica contundente às éticas formais e propor uma ética material com pretensão de universalidade. Sua forma final é apresentada na principal obra produzida por Dussel, Ética da libertação na era da globalização e da exclusão, publicada em 1998. Nela, o filósofo defende um princípio ético básico fundamental para a crítica da ordem vigente, e necessário para a constituição de novas normas e instituições – além de orientadora para as ações dos sujeitos, claro. Trata-se do princípio de produzir, reproduzir e garantir a vida humana em comunidade. Seu conteúdo e desdobramentos revolucionaram o pensamento crítico latino-americano. Intelectuais como Franz Hinkelammert, Wim Dierckxsens, Juan José Bautista, Katya Colmenares, Isabel Guerra Narbona, entre outros,4 tomaram esse conteúdo como pedra de toque para a crítica de teorias que negam a realidade óbvia (mas absolutamente desaparecida no pensamento moderno) das condições de produção e reprodução da vida como pressuposto para qualquer ação humana.
Todo o trabalho posterior de Dussel tem como referência sua Ética da libertação. Pessoalmente, na primeira vez em que nos encontramos, Dussel comentou que a primeira parte deste livro (dividido em uma longa introdução e três seções subdivididas em capítulos) era a mais importante de todo o seu pensamento. Curiosamente, não é necessariamente a mais trabalhada. Ao contrário, muitos teóricos e alguns de seus discípulos optam pelos debates teóricos com diferentes autores contemporâneos, que são mencionados nas seções seguintes. A primeira seção realmente é a mais densa e complicada, pois se trata de uma apanhado crítico do desenvolvimento da compreensão que temos de nós mesmos, enquanto seres humanos, a partir do avanço recente no âmbito das ciências biológicas (em especial com respeito ao avanço da teoria evolutiva e os estudos neurocientíficos). Este ponto de partida, ao ser explicitado, desmonta boa parte da base teórica moderna, cuja compreensão de ser humano elimina de si mesma suas condições materiais de existência (entre elas, o fato de que só se é um ser humano com individualidade porque antes dele existe uma comunidade necessária e fundamental).
O ser humano como necessitado
Em sua vida madura, Dussel procurou desenvolver uma filosofia que contribuísse com as lutas populares. Nunca imaginou que a vida seria mudada pelas ideias, mas sustentava que, sem o exercício crítico constante de compreensão da realidade e autocompreensão dos seres humanos em suas comunidades e em sua relação com outras, não seria possível criar outro mundo possível. Esse mundo possível, por sua vez, a partir de Dussel não seria fruto do melhor mundo concebível (tópico apropriado a partir de sua relação com o trabalho de Franz Hinkelammert). Isso porque nesse mundo imaginado e sem fricções, a materialidade desaparece – e com ela a fome, a doença, as tensões, as relações de dominação, etc. O ser humano não é necessitado, está satisfeito. Mas, na realidade, somos seres carentes que precisam trabalhar e se organizar coletivamente para produzir satisfatores que atendam nossas necessidades, o que nos falta, e que viabilizem as condições de permanência em vida (nossas e de nossas comunidades).
Os processos de trabalho e de organização não se dão no vácuo. Se dão durante a emergência, enquanto a vida acontece e está sob risco. Com toda a beleza, as potencialidades e também a dureza que é fazer uma escolha (e eliminar, com ela, todas as demais), podemos realizar a vida. Contudo, dada a história em curso, as possibilidades de realização da vida dependem de como estão disponibilizados os recursos necessários para a subsistência e as condições para o acesso a esses recursos. Na realidade, há grupos humanos que não podem viver porque não têm garantidas as condições para produzir, reproduzir e desenvolver sua vida (em comunidade). No pensamento de Dussel, de modo resumido, esses sujeitos são o ponto de partida para criticar uma ordem vigente e construir uma nova, com a pretensão de que nesta todos caibam dentro.
O legado de Dussel é imenso, sua produção foi monumental. Deixa um testemunho de vida de diálogo franco, debate aberto e entregue a um projeto popular. Seu trabalho foi formalmente reconhecido diversas vezes, com onze títulos de doutor honoris causa em instituições na Europa, América Latina e Caribe. Além disso, recebeu como premiações a Medalha Aristóteles (outorgada pela Direção Geral da UNESCO em 2012), a Medalha Vera Cruz (2020, pela Associação de Filosofia do México), entre outros, com destaques para o Prêmio Libertador do Pensamento Crítico em 2010, oferecido pelo governo bolivariano da Venezuela, e o Prêmio General Emiliano Zapata, congratulado pela Fundação Zapata e dos Heróis da Revolução, nesse ano de 2023. Um teórico potente que abriu um novo capítulo para a filosofia, partindo desse território que agora o acolhe em seus braços: a América Latina.
Notas:
1.↑ As informações e os livros de Dussel citados em nosso artigo podem ser todos vistos e baixados gratuitamente em pdf em seu site, enriquedussel.com
2.↑ A esse respeito, indicamos a leitura de Bruno Reikdal, “Além do mesmo: de uma ética da alteridade para uma ontologia situada”, in Outramargem: revista de filosofia 7.2 (Belo Horizonte: UFMG, 2017), 155-171. Disponível no link <https://revistaoutramargem.files.wordpress.com/2018/04/11-v7-bruno-reikdal-lima-alc3a9m-do-mesmo-de-uma-c3a9tica-da-alteridade-para-uma-ontologia-situada.pdf>
3.↑ A esse respeito, ver Ética de la liberación ante los desafíos de Apel, Taylor y Vattimo.
4.↑ Particularmente, meu caso, que pude trabalhar o pensamento de Dussel no mestrado em filosofia e publicar o livro Fetichização do poder como fundamento da corrupção.