Diferentes adventistas refletem sobre o legado de Charlie Kirk, tornado um mártir por supostamente guardar o sábado
Nota editorial: rótulos políticos e o sábado de Kirk
Por Alexander Carpenter | editor-chefe da Spectrum Magazine. Traduzido e adaptado do original em inglês por André Kanasiro para a revista Zelota.
Poucas semanas antes da morte trágica de Charlie Kirk, eu perguntei em uma reunião da equipe da Spectrum: será que conseguimos superar rótulos ideológicos amplos como “conservador”, “progressista”, “moderado” ou “libertário” ao descrever pessoas e organizações? Após ponderar sobre o assunto, a equipe concordou em adotar esta nova abordagem editorial. Por exemplo, ao invés de rotular um novo capelão universitário como “conservador”, incluímos seu trabalho anterior evangelizando estudantes do internato, algo que foi reportado pelo jornal da associação local.
Abaixo estão os textos de três mulheres negras — uma profissional de saúde, uma advogada e uma estudante de doutorado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) — refletindo sobre as palavras e ações de Charlie Kirk a partir de suas próprias experiências, assim como uma reportagem sobre a reação do adventismo brasileiro à morte de Kirk. Quando mencionei nossa nova abordagem editorial, uma das autoras respondeu positivamente e pediu orientação para descrever a organização Generation. Youth. Christ. (GYC). Fomos à página “Sobre nós” da própria GYC e citamos sua descrição: um exército de jovens “completamente comprometidos com a mensagem e a missão distintas da Igreja Adventista quanto à proclamação das três mensagens angélicas”.
Buscamos, através de pesquisas expandidas e caracterizações alicerçadas em fontes, servir aos nossos leitores evitando epítetos retóricos que simplificam a questão e estão desgastados pelo uso excessivo. Não há utilidade alguma em ficar simplesmente empurrando outros para dentro de times ideológicos. Vamos juntos expandir o espectro adventista para representar mais plenamente como seres humanos vivem, se movem e existem (At 17.28).
Na última semana, a equipe da Spectrum passou muitas horas lendo e ouvindo palavras ditas por Kirk e sobre ele. Fiquei orgulhoso ao receber uma mensagem de um dos nossos editores, dizendo que nunca teve que checar a veracidade de tantas citações. Também vi editores removerem expressões com as quais concordavam para criar um tom construtivo em questões sensíveis como racismo e religião. Dado o que está em jogo, foi importante ver a Associação Central States, a associação regional dos adventistas na União Mid-America (que engloba os estados do Colorado, Minnesota e Missouri) ecoar as preocupações de nossos autores. A liderança da associação escreveu: “Para nós, é decepcionante e perturbador perceber que há líderes cristãos, dentro de nossa própria denominação, que abraçaram completamente figuras públicas que promovem ideologias nacionalistas cristãs, racistas, xenofóbicas, sexistas, e outros tipos de discriminação.” Indo além de palavras rumo à responsabilização, a associação acrescentou: “A liderança da nossa associação vai estudar este fenômeno e entrar em contato com os líderes da Amazing Facts e da 3ABN para determinar nossas relações oficiais futuras com estas organizações.”
Além disso, nesta semana eu me concentrei em entender o sabatismo de Kirk. Ele descreve sua fé evangélica como algo entre o calvinismo e o pentecostalismo. Sua nova crença no sábado parece ser um compromisso pessoal recente de desligar o celular da sexta-feira à noite até a manhã de sábado todas as semanas para passar tempo com a família. Ele afirmou que gosta de assistir futebol americano enquanto observa o que chamou de sábado judaico. Embora a intenção seja admirável, esta abordagem tem poucas conexões com os mandamentos das escrituras judaicas, os ensinamentos de Jesus no Novo Testamento, ou as práticas da igreja cristã primitiva.
Escrevendo para o The Forward, Mira Fox observou que a guarda do sábado de Kirk “demonstra as formas pelas quais muitos cristãos que adotam práticas judaicas, sejam estas um final de semana sem tecnologia ou um Seder, o fazem de modo a apagar o judaísmo”. Ela prossegue: “Esta é a mesma falácia que subjaz não só a adoção que Kirk fez de um sábado sem tecnologia, mas também muitas de suas razões para apoiar Israel, as quais não partiam de um desejo de ajudar ou proteger os judeus, mas sim do fato de que os lugares sagrados do cristianismo estão em Jerusalém.”
A prática sabatista de Kirk oferece um mingau teológico muito ralo, e sabota a autoridade hermenêutica dos adventistas que o louvam como um companheiro na obra de evangelizar sobre o sábado. Seu uso do sábado como uma ferramenta de autodisciplina (se abster de usar o celular) tem mais semelhanças com a abnegação performática da “machosfera” — na qual homens anunciam um mês inteiro de abstinência de masturbação como teste de força de vontade e masculinidade — do que com qualquer teologia robusta de descanso e justiça.
Alguns adventistas foram ainda mais longe, especulando que Deus pode usar o livro de Kirk sobre o sábado, a ser publicado postumamente, para converter pessoas à Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD). Esse livro será publicado pela Winning Team Publishing (Editora do Time Vencedor”, em português), uma empresa fundada por Donald Trump Jr., após cinco grandes editoras se recusarem a publicar sua obra sem o direito de checar a veracidade de suas alegações. A Winning Team publicou outros livros de Kirk, como Right Wing Revolution, assim como livros de Kari Lake e Marjorie Taylor Greene.
A Winning Team Publishing é conectada à MAGA SA (“Make America Great Again”, um slogan de Trump), que recebeu a doação de US$1 milhão de uma família importante do ramo do açúcar. Ela é conectada à maior refinadora e distribuidora de açúcar do mundo, incluindo marcas como Domino e C&H. Em 2022, a agência federal dos EUA de Alfândega e Proteção de Fronteiras (CBP) baniu suas importações. A ação veio após uma investigação de dois anos do governo encontrar cinco indicadores de trabalho forçado. A ordem da CBP também citou evidências de trabalho infantil e tráfico de pessoas. Recentemente, após a família fazer doações à MAGA Inc., o governo Trump silenciosamente retirou a proibição às suas importações.
Embora passar tempo com a família seja muito importante, os mandamentos de sábado em Êxodo 20 e Deuteronômio 5 delineiam uma família muito maior que a de Kirk. Enquanto este promove o sábado como forma de reduzir tempo de tela, peso e ansiedade, as escrituras conectam o espiritual e o social. Guardar o sábado significa cuidar de trabalhadores, estrangeiros e, essencialmente, os vulneráveis, incluindo animais.
Cada aquisição do livro de Kirk vai beneficiar ações da equipe da MAGA, assim como a saga do barão do açúcar narrada acima — algo que parece ser exatamente o oposto do que o sábado representa. Adventistas que promovem o sabatismo de Kirk, como Danny Shelton da 3ABN e pessoas do grupo Wisdom Pearl, não somente estão abraçando uma teologia batida e mal feita — eles colocam em risco os próprios princípios antinacionalistas que tornam o sábado um presente para toda a humanidade, não somente para o “time vencedor” do momento.
A morte de Charlie Kirk no Brasil
Por André Kanasiro e Felipe Carmo | editores-chefe da revista Zelota. Traduzido e adaptado do original em inglês por André Kanasiro para a revista Zelota.

A comunidade adventista brasileira também se comoveu com o assassinato de Charlie Kirk e ficou entusiasmada com sua suposta fidelidade ao sábado. Isso, combinado com suas opiniões políticas, rapidamente o tornou um “mártir não adventista” — isto é, um cristão que deu sua vida para que a verdade possa sobreviver. Sua conexão com o sábado amplificou ainda mais o valor do seu martírio entre adventistas, que transformaram as redes sociais em um Coliseu virtual — um espetáculo confirmando a verdade do sábado às custas do sacrifício de um homem justo.
A mensagem do sacrifício de um inocente foi enfatizada, por exemplo, pelo pastor Eleazar Domini. Atualmente ministrando em Connecticut, Domini tem um canal no YouTube para o público brasileiro no qual ataca frequentemente a ameaça de movimentos esquerdistas ou “woke” enquanto promove grupos de cura gay e apoia discursos bolsonaristas ao criticar o sistema judicial do país. Ele chove elogios sobre a integridade de Kirk, chamando-o de “jovem brilhante” com uma “mente incrível”, pensamento crítico admirável e sinceridade. Estas qualidades — combinadas à sua posição como pai de família branco — parecem ter convencido Domini de que Kirk via o sábado como o verdadeiro dia de guarda.
Outro pastor cuja reação ao assassinato de Kirk ganhou tração significativa, embora aposentado, é o pastor Edson Romero Marques. Ele também enfatizou a integridade do mártir, chamando-o de “homem fantástico”, “altruísta”, “gracioso” e “bem-humorado”, que não combatia pessoas, e sim ideias. O pastor Michelson Borges, influenciador digital, jornalista e editor da Casa Publicadora Brasileira (CPB), foi ainda mais longe, sugerindo que Kirk guardaria o sábado mais respeitosamente que muitos adventistas.
Amplamente conhecido no Brasil por seu talento para criar teorias da conspiração, Borges descreveu o assassinato como uma antecipação do que aguarda os sabatistas no futuro — um exemplo, ele sugeriu, do sofrimento pelo qual passarão os adventistas ao confrontar a sociedade com verdades desconfortáveis no debate do sábado contra o domingo. Para o pastor, os EUA permanecem “um país que valoriza a liberdade de expressão”. Ele havia republicado recentemente o texto de um adventista português expressando que estava “extremamente feliz” com a vitória recente de Donald Trump, citando as políticas do presidente a favor da liberdade de consciência.
Como todo bom mártir, Kirk é apresentado como alguém que foi assassinado por forças perversas em oposição às suas crenças. Nem Domini, nem Borges dão nome direto à posição política do antagonista, embora suas descrições deixem poucas dúvidas. Ambos retratam Kirk como um “oponente desumanizado” aos olhos do inimigo, atacado não por suas ideias, mas por sua própria humanidade. Ambos argumentam que a mesma dinâmica se deu na Alemanha nazista, sugerindo que os oponentes de Kirk empregam métodos que remetem ao Holocausto.
Domini descreve o ataque como obra de alguém que promove ideologias intolerantes ao debate, alérgicas ao diálogo, e incapazes de suportar a oposição. Para ele, esta ideologia naturalmente inclui as causas progressistas às quais Kirk se opunha: direito de aborto, igualdade de gênero e movimentos relacionados. Borges, em um terceiro vídeo sobre o assunto, interpreta o assassinato como parte de um conflito entre direita e esquerda, retornando uma vez mais a suas especulações proféticas — já que, para ele, esta dicotomia é a chave para entender a História.
A única figura a nomear explicitamente o antagonista foi Jefferson de Araújo, um influenciador adventista, palestrante e consultor da GYC Brasil. Atualmente gravando uma série documental sobre O Grande Conflito para a filial portuguesa da Hope Channel, Araújo é um leitor ávido de Olavo de Carvalho, e frequentemente prega sobre a necessidade de empreender guerras culturais contra adventistas progressistas. Em uma publicação feita com Aisamaque Morales — e inspirada no influenciador do Instagram Danilo Cavalcante, conhecido por suas diatribes contra a esquerda política, movimentos a favor do abordo e “ideologia de gênero” — Araújo alegou que Kirk foi assassinado por um “atirador militante da extrema esquerda”.
Até o momento não há indícios de que Tyler Robinson, réu pelo assassinato de Kirk, fosse militante em qualquer organização política de esquerda, embora Trump tente aproveitar a ocasião para declarar o movimento de esquerda Antifa como organização terrorista no país.Tais construções narrativas de martírio são centrais para a imaginação teológica cristã. Elas não somente reforçam o comprometimento dos crentes à verdade, mas também espelham o padrão da morte e ressurreição de Cristo. Como explica André Castro, editor da Zelota e autor de A luta que há nos deuses: da teologia da libertação à extrema direita evangélica, o mártir é “ao mesmo tempo a demonstração do fato último da morte” e o “anúncio de uma vida nova” — uma dualidade que visa mobilizar os evangélicos nos EUA e no Brasil.
O peso das palavras
Por Shelbe Johnson | Doutoranda em engenharia química no MIT, em Cambridge, Massachusetts, onde atua no ministério infantil de uma IASD local. Traduzido e adaptado do original em inglês por André Kanasiro para a revista Zelota.
Pois: “Aquele que quer amar a vida e ter dias felizes refreie a língua do mal e evite que os seus lábios falem palavras enganosas; afaste-se do mal e pratique o bem, busque a paz e empenhe-se por alcançá-la. Porque os olhos do Senhor repousam sobre os justos, e os seus ouvidos estão abertos às suas súplicas, mas o rosto do Senhor está contra aqueles que praticam o mal.” (1Pe 3.10-12, NAA)
Desde o chocante e trágico assassinato de Charlie Kirk — o ativista estadunidense de direita que foi baleado enquanto discutia com estudantes na Utah Valley University, sua primeira parada em um tour por vários campus — observei um discurso infindável a respeito do significado de sua vida e morte para os EUA.
Em debates acalorados nas redes sociais, eu vi Kirk caracterizado de formas diferentes, muitas vezes opostas. Muitas pessoas o rememoram como um defensor da liberdade de expressão e um homem de Deus que morreu defendendo seus valores e no que acreditava. Outros, perturbados por sua retórica e suas opiniões fortes, o veem como um semeador de ódio e divisão que dava um péssimo exemplo como cristão.
Após ver as opiniões de ambos os lados, só consigo me perguntar: por que há interpretações tão diferentes do que significa viver como Cristo? Se Kirk realmente foi um homem de Deus e um mártir para a fé, por que há tantos vídeos dele, incluindo em suas próprias redes sociais, fazendo afirmações odiosas e polêmicas, e até demonizando minorias marginalizadas em nossa sociedade?
Após sua morte, é difícil ignorar o número imenso de vídeos, citações e afirmações dele ressurgindo nas redes sociais. Embora eu já estivesse familiarizada com Kirk e suas provocações, até eu fiquei chocada com algumas coisas que ele disse publicamente.1
Em seu programa The Charlie Kirk Show, Kirk fez referência a várias mulheres negras — Michelle Obama, advogada e ex-primeira-dama dos EUA; Joy Reid, comentarista política e apresentadora de TV; Ketanji Brown Jackson, juíza associada da Suprema Corte dos EUA; e Sheila Jackson Lee, advogada e ex-representante do governo dos EUA — ao discutir ações afirmativas. Kirk disse: “Vocês não têm o poder de processamento cerebral para serem realmente levadas a sério. Vocês tinham que ir roubar a vaga de uma pessoa branca para serem levadas a sério de alguma forma.”
Além disso, em várias ocasiões, incluindo em seu programa, em aparições públicas, e em um episódio de Surrounded, Kirk disse que os negros viviam “melhor” durante a era Jim Crow2, e disse que desprezava o Ato de Direitos Civis de 1964.3 Kirk foi até citado pela revista Wired dizendo: “Nós cometemos um erro gigantesco ao aprovar o Ato de Direitos Civis nos anos 1960,” crendo que isso levou às políticas modernas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), das quais ele discorda.
No seu programa em 2024, assim como em outras aparições, ele promoveu a ideia da “Grande Substituição”, uma conhecida teoria do nacionalismo branco.
Ainda no The Charlie Kirk Show, em 2024, ele disse: “Penas de morte deveriam ser públicas, deveriam ser rápidas. Deveriam ser transmitidas na televisão. Acho que a partir de certa idade, é uma iniciação.”
Kirk também fez piadas sobre incluir comerciais nas execuções, dizendo que estas deveriam ser “patrocinadas pela Coca-Cola”. Em 2023, durante um de seus programas, ele também disse que Joe Biden, ex-presidente dos EUA do qual ele discordava em vários, senão todos os tópicos políticos, “deveria ser colocado na cadeia e receber a pena de morte por seus crimes contra a América”.
Independentemente de seu apoio à retórica de Kirk, espero que possamos concordar em pelo menos uma coisa — nenhuma das afirmações acima são coisas que Cristo diria. O Deus que eu sirvo não acredita que eu — uma mulher negra — sou intelectualmente inferior a uma pessoa branca simplesmente por causa da cor da minha pele. O Deus que eu sirvo jamais se alinharia às crenças de nacionalistas brancos.
Kirk construiu toda uma carreira exercendo seu direito estadunidense à liberdade de expressão, mas por outro lado abandonou o mandamento divino de amar ao próximo.
Em João 13.34-35 (NAA), Jesus diz: “Eu lhes dou um novo mandamento: que vocês amem uns aos outros. Assim como eu os amei, que também vocês amem uns aos outros. Nisto todos conhecerão que vocês são meus discípulos: se tiverem amor uns aos outros.”
Muito da ideologia que Kirk propagava não era de amor, paz e unidade, e definitivamente não representava o evangelho de Jesus Cristo. Na verdade, penso que a retórica dele não só nega os momentos em que ele compartilhava uma perspectiva cristã, como envenena o evangelho ao misturar ódio e polêmica com o amor de Jesus.
Como cristãos nos EUA, temos a liberdade de dizer o que queremos, quando queremos, e para quem queremos. Mas a liberdade de expressão não nos livra das consequências. Ainda temos que responder a Deus, e ele não tolera ódio ou divisão. Deus nos deu liberdade de escolha, mas ainda temos que escolhê-lo se quisermos a vida eterna. Da mesma forma, este país nos garantiu a liberdade de expressão. Mas se quisermos viver à altura de seus ideais, que incluem vida, liberdade e busca da felicidade para todos os cidadãos, devemos proferir palavras que nos unam, não nos separem.
Em conclusão, eu simplesmente pergunto: como você, como cristão, usou sua liberdade de expressão? Se seu tempo na Terra acabasse hoje, quais palavras as pessoas que te conhecem poderiam citar? Será que essas palavras levariam a Cristo? Ou levariam as pessoas à confusão em relação a quem é Cristo e o que ele representa? Essas palavras encorajam seus irmãos e irmãs na fé? Ou as demonizam e degradam com base em raça, etnia e gênero? Você aprendeu a segurar sua língua quando não tem nada construtivo a dizer?
A morte de Kirk é um lembrete de que o que dizemos importa — mesmo após a morte.
O fracasso de evangelistas adventistas em condenar a supremacia branca: o que resta aos adventistas negros?
Por Nezetta Thompson | Traduzido e adaptado do original em inglês por André Kanasiro para a revista Zelota.
Dois dias após o assassinato do controverso ativista de direita Charlie Kirk — no dia 10 de setembro, na Utah Valley University, enquanto discutia com estudantes — a página de Instagram oficial da IASD publicou uma série de afirmações que pareceram ser sobre sua morte. Estas incluíam “Nós sabemos que dói, mas a morte não é o fim” e “Quando alguém que amamos morre, parece que todo o nosso mundo desmorona.” Os comentários resultantes ofereceram um vislumbre da profunda divisão política e racial que engoliu a IASD. Muitos comentários, de pessoas não brancas, respondiam que era irresponsável publicar afirmações que poderiam gerar confusão a respeito do apoio da igreja a Kirk, sendo que muitos de seus apoiadores estão clamando por ações extremas e até violência contra seus oponentes. A IASD respondeu que a publicação estava agendada e era uma completa coincidência. Outros responderam que a IASD deveria apoiar Kirk abertamente, crendo que ele era um irmão em Cristo e supostamente um guardador do sábado.
Embora canais oficiais pareçam tentar permanecer “neutros”, muitos adventistas proeminentes sequer tentam. Em uma publicação do Facebook, Doug Batchelor, um dos evangelistas televisivos mais populares do adventismo e presidente da organização Amazing Fact Ministries, afirmou que “ficou extremamente triste ao acordar e ficar sabendo da morte violenta de Charlie Kirk […] Eu fui convidado para participar de um programa com ele no ano passado, mas não pude comparecer devido a um conflito de agenda […] Teremos que nos encontrar no reino.” Afirmar com confiança que um homem conhecido por sua consistente retórica de ódio contra comunidades marginalizadas — incluindo negros, imigrantes, mulheres e a comunidade LGBTQ — estará no reino é deploravelmente insensível e é uma provocação deliberada.
No final da minha adolescência, eu me envolvi com a GYC. A GYC se descreve como um grupo de jovens “completamente comprometidos com a mensagem e a missão distintas da Igreja Adventista quanto à proclamação das três mensagens angélicas”. Este movimento promovia muitos pregadores jovens e eloquentes que mobilizavam seus pares a abraçar valores adventistas históricos. Eu escutava avidamente seus sermões no Audioverse, um ministério cristão on-line que faz curadoria de conteúdo em áudio, e participava de conferências aos finais de semana na minha terra natal quando estes jovens líderes eram convidados. Como de costume nestes movimentos, os conselhos dados do púlpito não se restringiam a um aspecto da vida, e sim a tudo — a comida que eu comia, as roupas que eu vestia, e até a pessoa que eu decidia namorar, os inúmeros sermões on-line e presenciais cobriam tudo isso. Nas conferências da GYC, os pregadores se misturavam com os jovens participantes, muitas vezes conversando e nos aconselhando durante o almoço.
Eu naturalmente comecei a seguir estes jovens líderes nas redes sociais, e, conforme o tempo passou, percebi uma tendência preocupante. Eu nunca tinha sentido qualquer conflito entre minha fé e meu apoio às causas do movimento negro, e sempre entendi no fundo do coração que racismo é algo antitético aos ensinamentos de Jesus. No entanto, eu não podia deixar de perceber que sempre havia traços de racismo em alguns oradores da GYC. Tais traços incluíam observações de passagem sobre estilos musicais africanos serem demoníacos, alertas contra interpretações da Bíblia através das lentes da teologia negra ou feminista — presumivelmente sob a premissa equivocada de que a teologica branca e masculina é objetiva e neutra — e uma mensagem sutil e persistente de que a cultura sempre é secundária em relação à fé. Em todas estas críticas e histórias com lições de moral, os valores culturais brancos e europeus, por coincidência, raramente eram mencionados.
Infelizmente, conforme aumentavam as tensões raciais durante o Movimento Vidas Negras Importam (BLM) de 2020, muitos pastores adventistas populares aos quais eu tinha sido apresentada pela GYC falaram contra o BLM, questionando a validade das alegações de racismo feitas por pessoas negras, e aludindo a teorias nocivas da conspiração sobre as origens do movimento. Eles chegaram a acusar líderes e igrejas adventistas que participaram dos protestos de terem apostatado. Surpreendentemente — ou não, se você entende a dinâmica do tokenismo nestes espaços — alguns destes pastores eram negros.
Eu comecei a perceber que para este subgrupo o racismo na verdade era proposital, e não acidental. Estudos do Instituto Público de Pesquisa em Religião na América em 2018 demonstram que este problema não é exclusivo do adventismo — atitudes e crenças racistas são mais frequentes em meio a brancos cristãos como grupo do que em brancos não religiosos.
Um momento decisivo que me levou a perceber tudo isso foi quando um pastor que eu acompanhava no Audioverse fez uma publicação no Facebook, questionando se seria possível que algumas raças fossem simplesmente mais inclinadas à violência, além de terem um QI menor. Ele então sugeriu que talvez isso acontecesse por conta de sua dieta ruim.
Ao ver isso, eu enviei uma mensagem diretamente a ele expressando minha preocupação com o racismo flagrante da publicação, e ele respondeu que iria editá-la. No entanto, a publicação revisada era igualmente racista, senão pior, e eu fiquei magoada e confusa. Se estes líderes espirituais, que passaram tanto tempo na presença de Deus, não eram capazes de ver a imagem de Deus totalmente refletida em pessoas que se pareciam comigo, como eu poderia confiar neles? Como eu poderia ser discipulada por pessoas que sequer conseguem conceber o que, para mim, é um dos elementos mais básicos da fé cristã?
Enfatizando ainda mais a minha conclusão de anos atrás, a falta de uma resposta formal da IASD à onda crescente de racismo e retóricas de extrema direita pelo mundo me deixou decepcionada, mas nem um pouco surpresa. Há décadas a liderança adventista deixa claro que, a menos que seja colocada contra a parede, está disposta a tolerar racismo. Nos anos 1980, meus pais e outros adventistas negros no Reino Unido retiveram seus dízimos e criaram o Fórum de Membros Leigos de Londres, em protesto contra o fato de que a liderança pastoral, de maioria branca, relutava em contratar pastores negros para associações nas quais a vasta maioria dos membros era de herança afro-caribenha. Somente então a associação levou as preocupações dos membros a sério.
Nos EUA, associações racialmente segregadas, tornadas necessárias pelo terrível e persistente racismo de adventistas brancos, existem até o dia de hoje. E embora os EUA tenham eleito seu primeiro e, até o momento, único presidente negro em 2008, ainda não tivemos um presidente negro para a Associação Geral. Universidades adventistas continuam a ter dificuldades com problemas de racismo contra negros em seus campus, e a IASD continua fazendo vista grossa para ministérios independentes que reproduzem discursos de extrema direita enquanto atraírem grandes audiências. Será então alguma surpresa que uma figura como Kirk, conhecido por suas cruzadas contra diversidade e representatividade, para quem o Dr. Martin Luther King Jr. era “horrível” e o Ato de Direitos Civis de 1964 era um “erro gigantesco”, não seja condenada pela mesma igreja que tem um legado de morosidade e até resistência a direitos civis?
Já faz tempo demais que adventistas negros têm que tolerar uma ausência de liderança e discipulado de associações oficiais e ministérios afiliados na questão do racismo. Com um histórico de repetidos fracassos e uma renúncia à própria responsabilidade neste assunto, e num momento em que a ascensão da extrema direita está prejudicando globalmente comunidades negras, talvez seja hora de não só exigirmos mudanças coletivamente, mas nos prepararmos — assim como nossos ancestrais — para retirar nossa presença e nossos recursos de líderes que não nos valorizam.
Por que a política de Charlie Kirk importa para os adventistas
Por Simone Samuels | Consultora de diversidade, equidade e inclusão, escritora, oradora e profissional de educação física. É apaixonada por justiça social, desconstrução religiosa e descolonização da fé. Já atuou na igreja como anciã, líder do ministério jovem, e em muitos outros cargos. Traduzido e adaptado do original em inglês por André Kanasiro para a revista Zelota.
“Uma única morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística.” — Atribuída (sem evidências) a Joseph Stalin.
“Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine.” (1Coríntios 13.1, NAA)
“Assassinado. Derramaram sangue inocente. Nós te amamos, Charlie! Seu legado não será esquecido.” Foi isso que um amigo meu do Facebook publicou após a morte de Charlie Kirk, fundador do Turning Point USA — este amigo, por acaso, também é um adventista negro.
Até o dia 10 de setembro, quando Kirk foi assassinado, eu mal tinha certeza de quem ele era. Eu tive que pesquisar o nome. Charlie Kirk, quem é mesmo? Eu ouvi que ele havia morrido, então pesquisei no Google e percebi que ele gostava de debater com outras pessoas sobre raça. Vi algumas citações perversas atribuídas a ele a respeito de mulheres negras, proteção à Segunda Emenda, imigração, a filha dele e o útero dela, mulheres solteiras, e esforços para Diversidade, Equidade e Inclusão. Eu me considero uma pessoa justa e razoável, mas não há contexto em que eu poderia contextualizar ou justificar ideias tão retrógradas e crenças tão abomináveis.
Então eu fiquei sabendo do tiroteio em uma escola no Colorado. Logo após a morte de Kirk, o serviço de emergência foi alertado a respeito de um estudante de 16 anos atirando um revólver em sua própria escola, a Evergreen High School — deixando três alunos em condição crítica, incluindo o atirador, que morreu posteriormente. Duas semanas antes, no dia 27 de agosto, duas crianças morreram, e 17 pessoas, sendo 14 crianças, foram feridas por um atirador nos arredores da igreja da Annunciation Catholic School, no estado de Minnesota.
Eu sou canadense. E olhando de fora, eu me pego pensando que os EUA deveriam tomar jeito e se unir logo pela reforma no porte de armas de fogo — algo que não deve acontecer tão cedo. Da mesma forma, Kirk tinha pouca importância para a minha vida. Mas as respostas à retórica e morte dele têm muita importância para mim como mulher negra que, a despeito de quaisquer descontentamentos, se mantém membra da IASD.
Agora mais ciente da situação, reli a publicação do meu amigo: Espera aí, como é? “Nós o amamos”? Quem é esse “nós”? Por que você o ama? Então desci o feed.
Outro pastor adventista publicou algo sobre Kirk guardar o sábado. Então outro amigo adventista publicou um link para a pré-venda do livro de Kirk sobre o sábado, e outro amigo adventista publicou uma entrevista do Wisdom Pearl na qual Kirk falava de como o sábado o ajudou. Então eu vi uma publicação do famoso evangelista adventista Doug Batchelor, que disse: “COMO CAÍRAM OS VALENTES […] Teremos que nos encontrar no reino.”
Essas publicações adventistas elogiando e apoiando não somente Kirk, mas o que ele representava, me deixaram surpresa e confusa. Não estamos somente oferecendo nossas condolências à família de Kirk; o estamos celebrando a despeito de tudo que ele fez e falou para difamar comunidades marginalizadas. Por quê?
O interessante é que eu não vi nenhuma publicação de adventistas sobre os tiroteios em escolas — se houve alguma, ela não apareceu para mim. Imagino que — na lógica de algumas pessoas — tiroteios em escolas já tenham perdido seu ar de novidade nos EUA e não mereçam comentário; o fato de que Kirk guardava o sábado parece muito mais interessante. E esta conclusão parece ser uma realidade infeliz, levando-me a relembrar um artigo de 2019 publicado pela Spectrum: “Adventismo e supremacia branca”.
Supremacia branca, adventismo e Charlie Kirk
Eu conheço a história complexa do adventismo e seus próprios membros negros. A despeito da militância abolicionista dos pioneiros adventistas e do estabelecimento da Universidade Oakwood (OU), a única universidade historicamente negra da denominação, a IASD se demonstrou de muitas maneiras antagônica aos negros. A OU foi fundada pela IASD para educar afro-americanos recém-libertos da escravidão. Devido ao racismo, afro-americanos eram impedidos de estudar em instituições educacionais, inclusive adventistas, e por isso a OU atendeu a uma necessidade — que certos bolsões no adventismo ajudaram a criar. Um triste exemplo deste racismo dentro da IASD foi a morte trágica de Lucy Byard devido a atitudes racistas no Sanatório Washington em 1943, perto da sede da denominação, e a história complexa de segregação e dessegregação racial na lanchonete do sanatório.
Estas ações antagônicas aos negros são exemplificadas até na criação de associações regionais.4
Eu também havia passado boa parte da vida congregando em espaços nos quais aplausos eram reprovados; dançar era proibido; jazz, R&B, e qualquer coisa com ritmo era demonizada; e os JAs eram tomados por debates sobre permitir ou não bateria na igreja. Eu sabia que minha negritude estava em conflito com um adventismo mergulhado e criado na branquitude, mas amo Jesus, e meus laços familiares adventistas vão longe, então permaneço em uma igreja que pode nunca me aceitar de fato ou me enxergar na plenitude da minha humanidade.
Frente à onda recente de tiroteios em escolas nos EUA, eu li “Adventismo e supremacia branca”, que ilustrou com excelência como nosso evangelismo baseado no medo se torna um vetor e um hospedeiro para a supremacia branca. Mesmo sabendo que a IASD era antagônica aos negros, foi somente lendo este artigo que eu entendi como nossos ensinamentos adventistas radicais atraem pessoas que já estão radicalizadas de outras maneiras — tais como supremacistas brancos.
Com a morte de Kirk e a resposta adventista a ela, vemos uma nova evolução num momento perturbador: não só a igreja é antagônica aos negros, não só ela é um espaço hospitaleiro para supremacistas brancos, mas agora vejo que muitos adventistas na verdade não se importam com a supremacia branca, desde que ela venha embrulhada na guarda do sábado.
Por que isso acontece?
Primeiro é preciso perguntar: o que os adventistas temem mais do que tudo? A resposta: o decreto dominical. Consequentemente, para os adventistas, desde que alguém acredite no sábado, essa pessoa é aprovada, e os temores da denominação são abafados. Isso aparentemente é o bastante para conquistar a lealdade adventista.
E é isso que me assusta — adventistas são comprados com tanta facilidade. Me aterroriza o fato de que só é preciso dizer “eu guardo o sábado” para que essa pessoa seja desculpada, absolvida e apoiada. Não há escrutínio. Não há pensamento crítico. Sábado é a mesma coisa que seguro.

Não é irônico? Adventistas se orgulham de não serem como evangélicos, mas na verdade não há diferença. Os evangélicos desculpam qualquer coisa, desde que você seja contra o aborto e contra direitos para pessoas LGBTQ. Para os adventistas, embora você também possa ser contra essas coisas, o bilhete premiado é o sábado. Guarde o sábado e você conquistará a nossa amizade. Não é preciso fazer mais nada.
Se isso é verdade, então — não importa quanto praticamos, promovemos ou priorizamos a guarda do sábado — não estamos seguros. Como eu vou me sentar na igreja perto de pessoas que louvam abertamente um homem que degradava a inteligência de pessoas negras, questionava a excelência de pessoas negras, se opunha à diversidade, demonizava a imigração, usava pessoas transgênero como bodes expiatórios, e defendia a violência resultante do porte de armas como o custo “prudente” da liberdade — e ainda assim, a única mensagem que fica é mas ele guardava o sábado? Como eu congrego em um espaço onde o racismo não é visto como pecado, mas violar o sábado sim?
Isso é assustador, e faz eu questionar se estamos servindo ao mesmo Deus.
Enquanto voluntariamente ignoram preconceito, homofobia, racismo e intolerância em nome da guarda do sábado, muitos adventistas têm a cara de pau de perguntar: “Onde estão os jovens?” Os jovens estão tentando encontrar espaços que não estejam repletos de simpatizantes de supremacistas brancos. Os jovens estão tentando se proteger do ódio que muitos adventistas sustentam, promovem e apoiam.
Ao invés de vermos as pessoas refletindo a respeito do ódio e da falta de regulação do porte de armas que levaram à morte de Kirk, pelo menos seis universidades — todas historicamente negras, diga-se de passagem — foram forçadas a adotar algum tipo de lockdown, recebendo represálias pelo assassinato de Kirk embora não tivessem nada a ver com ele. Um homem branco foi morto por outro homem branco, mas quem sofre ameaças são as universidades historicamente negras. Enquanto isso, os adventistas preferem fazer publicações sobre o novo livro de Kirk.
E que estranha ocasião para fazer proselitismo sobre o sábado, como se sua suposta guarda do sábado tivesse relação com a sua morte; é por isso que devemos nos lembrar dele?
Para as pessoas não brancas que a IASD alega amar e receber bem, ver pessoas oferecendo apoio a um racista só porque ele supostamente guardava o sábado exige uma pergunta: como vocês poderiam me amar se vocês sequer se preocupam com os problemas que me afetam?
Uma das razões pelas quais eu passei a defender as pessoas LGBTQ não é a existência de uma agenda oculta, mas sim porque estou regularmente em comunidade com elas, seja esta religiosa ou não.
Eu esperava que, sendo adventista — especialmente se você tiver amigos não brancos ou imigrantes — você fosse simpático ao clamor de comunidades marginalizadas dentro da nossa denominação, reconhecendo que suas dores e seus interesses são importantes. A Bíblia nos pede que amemos nosso próximo; mas, infelizmente, as publicações de adventistas no Facebook após a morte de Kirk me mostraram que não, muitos adventistas não se importam com o que machuca as pessoas não brancas nos bancos de suas igrejas. Embora estejam próximos a elas, sem dúvida não estão em comunidade com elas.
Parece que alguns adventistas demonstram mais cuidado com a família de Kirk que com sua própria família eclesiástica, que é muito diversa. Como alguém pode me cumprimentar no sábado de manhã enquanto celebra uma pessoa que zombava e marginalizava pessoas como eu? Eles ensinam a lição da escola sabatina para as crianças e então louvam um homem para quem a morte de crianças dos EUA é um dano colateral aceitável — uma incoerência gritante.
Charlie Kirk e sabadolatria
Kirk disse que, se visse uma pessoa negra pilotando um avião, questionaria se esta pessoa era qualificada para este trabalho. Mas sim, o sábado. Kirk disse que mortes por armas de fogo são uma parte necessária para a defesa da Segunda Emenda e outros direitos “concedidos por Deus”. Mas sim, o sábado.
Ketanji Brown Jackson é a única pessoa na Suprema Corte dos EUA que estudou em um colégio público, se formou em direito por uma universidade da Ivy League,5 trabalhou como defensora pública, foi funcionária da Suprema Corte, serviu na comissão de sentenças, trabalhou como juíza distrital, e atuou como juíza na Corte de Apelações. A despeito de tão extensa experiência e especialização, Kirk questionou e menosprezou o poder de processamento do cérebro dela, assim como o de outras mulheres negras com extensa formação e qualificação acadêmica. Mas — você adivinhou — o sábado.
Kirk fazia a coisa que os adventistas mais amam: ele supostamente guardava o sábado, e isso, seja lá por qual motivo, era o bastante para que inúmeros membros façam vista grossa para o que ele disse sobre mulheres negras, pessoas trans, e mortes por armas de fogo.
Parece que o sábado é a única coisa que importa — embora não saibamos de fato se Kirk realmente o guardava. Tudo que ele teve que fazer foi mencionar o sábado, e nós decidimos crer que ele o observava com base em sua própria confissão “confiável”.
Mas será que Deus opera desta forma? Parece que muitos adventistas estão operando sob a crença de que Deus não se importa com a violência que nossas palavras incitaram ou quantas pessoas morreram devido ao nosso desprezo imoral por suas vidas; de que para ele não importa como tratamos as pessoas ou se temos o amor dele em nossos corações. Se fôssemos nos basear nessas ideias equivocadas, poderíamos concluir que Deus só nos exige guardar o sábado. E isso simplesmente não é verdade, pois a Bíblia diz: “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior deles é o amor.” (1Coríntios 13.13)
Parece que os adventistas não só adoram no sábado, mas adoram o sábado, amando-o acima de todo o resto. Afinal, ele está no nome: Adventista do Sétimo Dia, e é uma das principais características que nos distinguem de outras grandes denominações cristãs, permitindo que mantenhamos intacta nossa peculiaridade orgulhosa. E às vezes não consigo deixar me perguntar: será que os adventistas amam mais ao sábado que a Jesus?
Pela forma como eles colocam o sábado acima da humanidade, o elevam acima do bom senso, e regulam rigidamente o que se pode ou não pode fazer nele, pode-se facilmente concluir que a guarda do sábado chutou do primeiro lugar a ordem de exemplificar o caráter de Cristo.
Não nos esqueçamos de que quando o sábado passa a ser sobre performar, provar ou proteger a própria retidão ao invés de repousar, refletir e se relacionar com Deus, ele pode ser objeto de idolatria.
Durante seu tempo na Terra, Jesus dissipou e dispensou a idolatria do sábado. Fosse encorajando as pessoas a resgatar seus bois de buracos no sábado (Lucas 14.4-6), pegando espigas no sábado (Lucas 6.1-2), ou curando no sábado (Marcos 3.1-6), Jesus demonstrou consistentemente que “o sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Marcos 2.26-28).
Contudo, muitos adventistas continuam a idolatrá-lo, tornando sua guarda o sinal definitivo de retidão — um distintivo de superioridade moral. Eles desprezam outros cristãos e até irmãos adventistas que possam interpretar a observância do sábado de uma forma diferente, apegando-se ao aspecto legalista — proibido comprar, cozinhar ou dirigir — ao invés do aspecto espiritual — repouso, adoração e conexão com Deus.
Infelizmente, o sábado tem mais relação com identidade cultural do que com espiritualidade. Como consequência, muitos adventistas tratam a guarda do sábado mais como uma marca do adventismo do que uma prática de fé — quase como o requisito para participar de um clube. Aqui vemos a priorização das aparências e da exatidão ritual ao invés de devoção interna e ação ética.
Adventistas disseram que Kirk guardava o sábado. E, portanto, ele deve ser um de nós — parte do clube.
Muitos adventistas usam o sábado como escudo, observando-o para sinalizar a outros que são “justos” ou “escolhidos”. Eles se apoiam em regras sabáticas para evitar refletir sobre a própria moralidade ou se envolver em questões sociais. Mas o que mais me aflige é como muitos adventistas veem o sábado como substituto para justiça e compaixão, crendo que “guardar o sábado” de algum modo torna alguém moralmente superior ou menos responsável por suas ações durante o resto da semana. Estes adventistas se promovem como “cristãos e guardadores do sábado perfeitos” enquanto permanecem em silêncio frente a genocídios, opressão e males sistêmicos.
O silêncio sobre massacres em escolas, genocídios e justiça social
Há anos eu tenho implorado que a IASD diga alguma coisa — qualquer coisa — relevante para a dor das comunidades marginalizadas na nossa igreja e ao redor do mundo. Até mesmo um clichê como “violência nunca é a resposta” ao menos mostraria que nossa fé dialoga com as duras realidades deste mundo. Digam alguma coisa sobre Gaza. Digam alguma coisa sobre o Vidas Negras Importam. Digam alguma coisa sobre George Floyd. E se isso, por algum motivo, der muito trabalho ou for muito “político”, ao menos digam algo sobre os massacres nas escolas dos EUA. Mas não — os adventistas preferem permanecer em silêncio. Não queremos incitar as massas. Nos recusamos a “criar confusão”.
Mas subitamente, quando o assunto é Kirk, todos descobrem que têm voz. Para os palestinos? Silêncio. Para os congoleses? Silêncio. Para os sudaneses? Silêncio. Para as crianças mortas a tiros em suas salas de aula? Silêncio. Para a brutalidade policial? Silêncio. Mas para Kirk — um homem que não precisa ser defendido por eles, que tinha a própria plataforma, que nunca foi marginalizado e sempre teve voz — a igreja de algum modo redescobre suas cordas vocais. O contraste é gritante. É decepcionante. É ofensivo.
Quando as pessoas declaram publicamente “Nós te amamos, Charlie” enquanto não mostram amor algum nestes outros casos, cria-se uma flagrante dissonância.
No entanto, tamanho desdém e insensibilidade não são novidade. É algo característico da denominação. Nos orgulhamos de não fazer parte da cacofonia do mundo, mas trocamos o envolvimento com significado pela produção de um silêncio vazio. Deveríamos ter um “som definido” — um apelo claro — mas nosso apelo quase nunca é por justiça. É pelo crescimento no número de membros, pela observância do sábado, pela autopreservação.
Eu quero que avaliemos nossa inclinação a imediatamente compartilhar doutrinas frente ao sofrimento. Isso pode soar herético, mas talvez possamos pausar nosso proselitismo quando tantas pessoas no mundo estão sofrendo. Talvez, por um momento, possamos lamentar. Possamos nos enlutar com os enlutados.
Ao invés disso, nossa energia e nossas condolências são reservadas para os que se parecem conosco, pensam como nós e falam como nós. E faremos de tudo para que as pessoas entrem na nossa igreja, não importa o quão insensíveis sejamos. Somos fracos quando nos convém e ausentes em momentos importantes — um cenário grave e revelador. O que diz a nosso respeito o fato de que a supremacia branca nos é uma zona mais segura?
“Intolerância não é uma ‘diferença de opinião’”: Charlie Kirk e “perdão”
Eu me lembro de quando um artigo da Canadian Broadcasting Corporation sobre Karla Homolka — um dos assassinos mais infames do Canadá, cúmplice no estupro e assassinato de sua irmã e dois outros menores de idade — o encontrou atuando como voluntário num colégio adventista. O colégio não havia notificado os pais, que ficaram compreensivelmente transtornados.
Eu lembro de publicar o artigo no Facebook e criticar muito o incidente, chegando a dizer que isso provavelmente não teria acontecido numa escola não denominacional.
Eu também me lembro de vários amigos adventistas no Facebook defendendo a situação e discordando de mim, dizendo: “E quanto ao perdão? As pessoas não merecem segundas chances?”
Eu também creio no perdão, mas perdão não é a mesma coisa que um assassino trabalhar como voluntário numa escola cheia de crianças, sem o conhecimento dos pais, e potencialmente colocando todos os alunos em risco só porque a instituição é adventista. Esse tipo de descuido, tamanha falta de responsabilização, são o que vejo nas reações à morte de Kirk — esta ideia de que “ele pode ter dito umas coisas problemáticas, mas sabe como é, ninguém é perfeito. Precisamos perdoar.”
Mas existe uma diferença entre ser um humano falho e uma intolerância gritante.
Infelizmente é muito comum que as igrejas promovam perdão sem sabedoria, sem responsabilização, sem parâmetros e sem consequências. Eu diria que esta é uma das razões pelas nossas taxas de evasão de membros e de abuso sexual infantil, assim como outras formas de trauma religioso. Em espaços religiosos, pessoas demais acreditam em perdão, carta branca, sem proteger os mais vulneráveis e marginalizados. Sim, é verdade que devemos perdoar setenta vezes sete (Mateus 18.21-22), mas também devemos ser astutos como serpentes e mansos como pombos (Mateus 10.16).
Kirk era de fato um racista — entre outras coisas — e não podemos comparar seu racismo com nossas falhas, tolices e tropeços diários. Não temos o mesmo alcance, e, espero, não estamos expelindo o mesmo racismo.
Em tantos espaços cristãos, e especificamente adventistas, o perdão é pregado como uma licença ilimitada para padrões nocivos de comportamento, mas a responsabilização e a sabedoria são negligenciadas. Esse perdão barato acaba protegendo abusadores, racistas, e todo tipo de gente que fere outras pessoas, enquanto os vulneráveis seguem expostos.
E isso tudo está diretamente ligado à veneração adventista do sábado.
Em relação ao sábado, adventistas são meticulosos. Somos zelosos. Começamos a policiar o exato momento do pôr-do-sol, discutindo se podemos cozinhar ou comprar comida, e constrangendo pessoas que interpretam a guarda do sábado de outra forma. Mas com racismo, abuso e intolerância? Não damos nada a não ser silêncio e minimização. “Somos todos pecadores” passa a ser o refrão, e se oferece perdão sem responsabilização, sem a imposição de limites, e sem sabedoria, numa tentativa de apagar, ignorar e menosprezar o dano causado. Perdão sem responsabilização não é graça: é cumplicidade.
Isso revela uma espécie de energia moral seletiva: as pessoas estão dispostas a guerrear por regras rituais, mas não para proteger os oprimidos. Fizemos da violação do sábado o maior pecado de todos, enquanto nos recusamos a sequer chamar racismo, preconceito e intolerância de pecado.
Eu não me alegro com a morte de ninguém. Kirk era uma pessoa com uma família que o amava. Não há vilão ou vítima perfeita. Ele disse coisas odiosas e perversas quando era vivo. Meus sentimentos pela família de Kirk e todas as comunidades marginalizadas sofrendo com as consequências do discurso inconsequente dele.
Notas:
1.↑ Os poucos exemplos incluídos são só o começo das coisas preocupantes que Kirk disse. Eu encorajo você a conduzir sua própria pesquisa e de fato entender a gravidade das palavras dele, assim como a consistência de seus discursos divisivos.
2.↑ Nota do editor: época em que a segregação racial era imposta por lei nos EUA, que durou de 1877 a 1964.
3.↑ Nota do editor: Ato que deu fim às leis Jim Crow de segregação racial no país.
4.↑ Nota do editor: as Associações Regionais são Associações para a população negra da IASD estadunidense. Elas existem paralelamente às Associações convencionais, onde se concentram os adventistas brancos, frequentemente em territórios que se sobrepõem.
5.↑ Nota do editor: Grupo de oito universidades dos EUA que estão entre as melhores do país e do mundo, como Harvard e Yale.