Lideranças religiosas enfatizam o “trabalho” na Bíblia para invalidar o fim da escala 6x1 sem uma compreensão histórica do texto, legitimando formas de exploração atuais em vez de valorizar a vida humana


“Que proveito tem o trabalhador naquilo com que se afadiga? Vi o trabalho que Deus impôs aos filhos dos homens, para com ele os afligir. Deus fez tudo formoso no seu devido tempo. Também pôs a eternidade no coração do ser humano, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até o fim. Sei que não há nada melhor para o ser humano do que alegrar-se e aproveitar a vida ao máximo. Sei também que poder comer, beber e desfrutar o que se conseguiu com todo o trabalho é dom de Deus” (Ec 3.9-13, NAA).

Nas últimas semanas, avançou no Congresso Nacional a petição para que deputados viabilizassem a tramitação de um Projeto de Emenda Constitucional que encerrasse no Brasil o regime 6×1 em escalas de trabalho. Encabeçado pelo Movimento Vida Além do Trabalho, liderado pelo vereador eleito pelo Rio de Janeiro Rick Azevedo (PSOL), foi levado como Projeto para a Câmara dos Deputados Nacional pela deputada Erika Hilton (PSOL) no dia 1º de maio (Dia do Trabalhador) de 2024.

Claramente, a pauta é de interesse de toda pessoa trabalhadora brasileira, pois afeta diretamente o tempo de vida que temos disponível para poder fazer o que nos motiva além das responsabilidades de emprego e busca por renda, além de tempo para estarmos com nossas famílias e com quem amamos. O clamor popular cresceu nas últimas semanas como pressão sobre deputados eleitos de diferentes partidos e bancadas.

Como em qualquer outra situação que emerge de nossa vida política e social, prontamente lideranças religiosas começaram a apresentar suas posições e interpretações não apenas a respeito da PEC contra a escala 6×1, mas também do que seria o “trabalho” à luz da Bíblia (ou das “Escrituras”). Não foram poucos os versículos sacados para justificar a exploração do trabalho sob o regime 6×1 ou mesmo para apresentar os motivos pelos quais determinadas lideranças eram impelidas a “acompanhar o clamor dos que sofrem”. 

Como a função de pastor não está propriamente regulamentada como profissão (e nem possui direitos trabalhistas), é relativamente natural que os líderes não se percebam como parte da classe trabalhadora e a vejam de longe — apesar de muitos efetivamente terem seus trabalhos explorados dentro das instituições religiosas. Mas o problema que gostaríamos de tocar em nossa breve reflexão é o uso de textos bíblicos a respeito de “trabalho” sem as devidas mediações necessárias para que se aplique uma sabedoria nascida em um tempo passado para a vida prática dos vivos no presente.

Em última instância, o que queremos destacar é a necessidade de se compreender a história do desenvolvimento das sociedades humanas com seus modos de produção e, também, o modo como hoje estão estabelecidas socialmente as relações de trabalho e de produção. Sem análise da realidade social, o que poderia ser uma sabedoria espiritual valiosa pode se converter em um véu que nos separa da realidade viva, na qual estamos e realizamos nossos cultos, nossas orações, nossas relações comunitárias. Uma neblina que precisa ser dissipada para que nossa fé não funcione como instrumento de legitimação de relações de exploração.

O trabalho em uma sociedade complexa

Em formas sociais tradicionais, com uma divisão de trabalho mais simples e sem o objetivo de aumento da escala de produtividade como orientador dos projetos de desenvolvimento, o trabalho em geral é identificado com a própria pessoa que realiza um tipo de tarefa. Claro, há especificidades em diferentes grupos humanos, mas como “tipo” é possível que criemos essa generalização: o ofício de uma pessoa é identificado com ela (o marceneiro, o ferreiro, o escriba, etc). 

Em geral, algumas famílias por tradição se especializam em certos setores e ensinam às próximas gerações o trabalho de seus ancestrais. A maioria das comunidades se organiza por pequenos grupos familiares com produção própria de subsistência, ou uma comunidade ampliada que divide tarefas também para a subsistência. De qualquer forma, não há uma complexa divisão social de trabalho, mas um trabalho comum, simplificado e muitas vezes diretamente identificado com a pessoa que trabalha naquela tarefa (talvez naquele momento).

Em sociedades que complexificam sua divisão social de trabalho, as tarefas cada vez mais se descolam das pessoas, de modo que é possível começar a perceber o trabalho não como uma pessoa que gasta de seu tempo de vida para produzir algo necessário para seu consumo e de sua família para que a vida seja possível no “dia seguinte”, mas como uma “força de trabalho”. Vai se tornando cada vez mais possível perceber o ser humano individualmente como um organismo capaz de realizar diferentes tarefas úteis para a realização de um tipo de produção de maneira genérica. Mão de obra não mais especializada ou qualificada como “aquele trabalhador”, mas genericamente vista como “trabalho” — abstrato e em geral.

Estar disponível para trabalhar em qualquer tarefa e oferecer seus serviços dessa maneira é uma condição para que a ideia de “vender a força de trabalho” seja possível. A separação do trabalhador de seu trabalho é fundamental para que do ponto de vista social essa pessoa trabalhadora seja utilizada para produzir insumo a ou b, melhorar ou potencializar um setor produtivo ou mesmo aperfeiçoar a própria produção, qualificando de maneira planejada a força de trabalho deste ou daquele trabalhador. O trabalho nessa abstração poderá aparecer tanto como força de trabalho (o trabalhador que com seu corpo é capaz de realizar uma tarefa), quanto como “emprego” da força de trabalho — uma atividade produtiva que é socialmente determinada, independentemente de quem seja o trabalhador.

Hoje, quando falamos de trabalho, nos referimos ao “emprego”. Trata-se propriamente de um uso da força de trabalho empregada em um setor produtivo socialmente determinado, dinâmico e variável. O “empregado” e o “empregador” desempenham suas funções para fazer com que o “emprego” da força de trabalho seja possível dentro de um modo de organizar a sociedade bastante específico. Não é, portanto, o mesmo que o trabalho identificado com o trabalhador – como em geral aparece nos textos bíblicos que fazem referência ao trabalho e ao trabalhador em seu esforço de subsistir realizando seus ofícios e cuidado de suas terras.

Na Bíblia, por exemplo, quando se fala sobre a necessidade de trabalhar (como nos códices do livro de Provérbios), tem-se como pressuposta a relação de trabalho comunitária, familiar e de identificação entre trabalhador e seu ofício. Um transposição direta para nossos dias sem as mediações necessárias poderia fazer com que a própria mensagem do texto que valoriza a capacidade de garantir meios de vida para si e para sua família em uma entrega total e diligente a todo tipo de serviço, emprego e relação de trabalho socialmente determinada, sem mais.

O mesmo poderia ocorrer com textos que falam sobre a necessidade de trabalhar ou ainda a instituição do trabalho por Deus (como por vezes é compreendido o capítulo 2 do livro de Gênesis). No caso, trata-se da necessidade orgânica de gastar energia para produzir um algo necessário para a manutenção da própria vida e da vida da comunidade. Assim é qualquer relação básica de nossa necessidade real e efetiva de produzir os meios necessários para a reprodução de nossas vidas. Em qualquer sociedade, ocorre algo semelhante para que ela persista e se mantenha: a produção de relações sociais, instituições e recursos que ao serem consumidos e utilizados, garantam as condições para que um novo dia para essa sociedade seja possível. Trata-se da necessária “reprodução social”.

O âmbito da reprodução social

Organizar as relações sociais e de produção para que o “dia seguinte” seja possível é um limite fundamental para qualquer forma social. Para isso, são estabelecidas leis, regramentos, instituições, valores e relações sociais específicas. A sociedade capitalista, por exemplo, para realizar seu objetivo (produzir, acumular e reproduzir de maneira ampliada o capital) precisa estabelecer o mercado como instituição que media as relações de trabalho, de produção e também sociais, além de proteger a forma do direito de “propriedade privada” (que é uma forma jurídica específica da sociedade capitalista, distinta da “posse” ou usufruto de coisas que pertencem a um grupo ou família) e garantir que cada ser humano e entidade jurídica atue formalmente como um indivíduo apartado de todos os demais.

Sob essas condições, é possível garantir a competição entre os agentes econômicos (sejam pessoas individualmente ou entidades sociais) pelas oportunidades de mercado, regulado pela oferta de produtos e serviços e a demanda requerida por que potencialmente vai consumir. Toda a reprodução social precisa garantir as condições para que esse mecanismo funcione a longo prazo, senão a sociedade pode colapsar. Para isso, as instituições precisam se organizar e serem organizadas. Contudo, do ponto de vista da reprodução social, temos um problema (entre muitos): as pessoas trabalhadoras são vistas como unidades de força de trabalho à disposição no mercado, mas se reproduzem enquanto força de trabalho não individualmente e sim em organizações familiares (das mais diversas configurações). Afinal, a próxima quantidade de força de trabalho que substituirá os trabalhadores de hoje e estará disponível no mercado como uma mercadoria a ser empregada por empregadores em suas empresas, é gestada e amadurecida sob condições que dependem da capacidade dos responsáveis pelas famílias de conseguirem alguma renda vendendo individualmente sua força de trabalho.

Os salários, portanto, caso pretendam ser equilibrados e suficientes para garantir um ciclo relativamente sustentado e estável precisam pensar na renda das famílias e nas condições de vida de próximas gerações. Por outro lado, nem só de salário vive o humano, mas também do tempo de vida necessário para estar com quem ama em ambientes saudáveis, seguros e que possibilitem relações de afeto. É preciso que as pessoas responsáveis estejam em casa e com tempo em casa. Do ponto de vista da reprodução social, é necessário regulamentar de maneira cada vez mais efetiva e consciente as escalas de trabalho – ou melhor, de emprego da força de trabalho.

Essa divisão social do trabalho e seu funcionamento requer, por si só, constantes intervenções para equilibrar o ciclo e torná-lo viável a médio e longo prazo, sob planejamento. Esse planejamento, entretanto, não pode estar limitado aos interesses de quem pode ou não empregar força de trabalho, fazer ou não investimentos de acordo com seus interesses, sem mais. A dinâmica de complexidade social cria uma interdependência cada vez maior entre diferentes setores e serviços altamente especializados e requer, portanto, ações que orientem a produção social, que a tornem racional do ponto e vista reprodutivo. 

Aqui entra o papel da sociedade organizada, na qual os sujeitos que trabalham e que consomem (que criam os valores, os produtos e fecham o próprio ciclo econômico ao usar o que foi produzido) atuam para que as condições de suas vidas e reprodução de vida sejam cada vez melhores e respondam cada vez melhor a suas necessidades. Afinal, a sociedade (seja simples ou complexa) apenas existe como efeito das relações humanas na história e apenas é viabilizada se houverem esses seres humanos, vivos e que persistem em viver. Apesar de parecer óbvio, é sempre bom lembrar que a sociedade e as instituições existentes são produto dos seres humanos em seus trabalhos, e não o contrário – apesar de muitas vezes tratarem as instituições como o Mercado, o Estado, a Igreja ou mesmo o “emprego” como os sujeitos da história que decidem sobre os seres humanos.

Vida além do trabalho

Há uma racionalidade presente na tradição de Jesus que aparece no Sermão do Monte da seguinte maneira:

Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou irá odiar um e amar o outro, ou irá se dedicar a um e desprezar o outro. Vocês não podem servir a Deus e às riquezas. Por isso, digo a vocês: não se preocupem com a sua vida, quanto ao que irão comer ou beber; nem com o corpo, quanto ao que irão vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e não é o corpo mais do que as roupas? Observem as aves do céu, que não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros. No entanto, o Pai de vocês, que está no céu, as sustenta. Será que vocês não valem muito mais do que as aves? Quem de vocês, por mais que se preocupe, pode acrescentar um côvado ao curso da sua vida? E por que se preocupam com o que vão vestir? Observem como crescem os lírios do campo: eles não trabalham, nem fiam. Eu, porém, afirmo a vocês que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, não fará muito mais por vocês, homens de pequena fé? Portanto, não se preocupem, dizendo: “Que comeremos?”, “Que beberemos?” ou “Com que nos vestiremos?” Porque os gentios é que procuram todas estas coisas. O Pai de vocês, que está no céu, sabe que vocês precisam de todas elas. Mas busquem em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas lhes serão acrescentadas. Portanto, não se preocupem com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal. (Mt 6.24-34, NAA)

O produto do trabalho humano não é mais importante do que a vida que cria as condições para qualquer trabalho, qualquer produção, qualquer realização. Desfrutar da vida dada por Deus é fundamental e muito mais importante do que qualquer efeito da atividade viva dos seres humanos na história. Infelizmente, sob uma sociedade que organiza sua produção não sob o critério de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana em comunidade, mas para garantir o aumento infinito e valores e de capital, as vidas humanas passam a ser peças na engrenagem social capitalista e seu modo de produção:

O capital que foi alienado em troca da força de trabalho é convertido em meios de subsistência, cujo consumo serve para reproduzir os músculos, os nervos, os ossos, o cérebro dos trabalhadores existentes e para produzir novos trabalhadores. Dentro dos limites do absolutamente necessário, portanto, o consumo individual da classe trabalhadora é a reconversão dos meios de subsistência, alienados pelo capital em troca da força de trabalho, em nova força de trabalho a ser explorada pelo capital. Tal consumo é produção e reprodução do meio de produção mais indispensável ao capitalista: o próprio trabalhador. O consumo individual do trabalhador continua a ser, assim, um momento da produção e reprodução do capital, quer se efetue dentro, quer fora da oficina, da fábrica etc., e quer se efetue dentro, quer fora do processo de trabalho, exatamente como ocorre com a limpeza da máquina, seja ela realizada durante o processo de trabalho ou em determinadas pausas deste último.1

Nesse processo, a vida das pessoas e de suas famílias é sacrificada para a manutenção de instituições organizadas sob um modo específico de sociedade: a capitalista. A inversão dessa relação faz com que objetos, frutos do trabalho humano, se convertam em ídolos, que não comem, não bebem, não sentem frio, nem sede, mas decidem sobre a vida dos seres humanos. Na tradição bíblica era assim que se configurava a idolatria como maior pecado e, hoje, esse tipo de relação é generalizada efetivamente sob o modo de produção capitalista. Como notou Marx: 

Toda produção capitalista, por ser não apenas processo de trabalho, mas, ao mesmo tempo, processo de valorização do capital, tem em comum o fato de que não é o trabalhador quem emprega as condições de trabalho, mas, ao contrário, são estas últimas que empregam o trabalhador; porém, apenas com a maquinaria essa inversão adquire uma realidade tecnicamente tangível. Transformado num autômato, o próprio meio de trabalho se confronta, durante o processo de trabalho, com o trabalhador como capital, como trabalho morto a dominar e sugar a força de trabalho viva.2

O modo de organizar e dirigir a economia depende de como organizamos e projetamos socialmente nossas vidas. Hoje, ao deixarmos o mecanismo do capital e suas instituições agirem como se fossem forças vivas e subjetivas que decidem sobre nós, enquanto classe trabalhadora de seres humanos que produzem, consomem e tornam possível a própria reprodução social, empurramos as condições de produção e reprodução da própria vida para o abismo, impedindo que sejam possíveis novos ciclos econômicos e mesmo as condições de vida do planeta. Intervir pela diminuição de uma escala de trabalho é um primeiro passo necessário para que intervenções sistemáticas sejam realizadas pela classe trabalhadora e para a classe trabalhadora de acordo com suas necessidades de vida.

Notas:

1. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1: O processo de produção do capital. São Paulo: Editora Boitempo, 2017.

2. Ibid., p. 495.