Há uma frase célebre atribuída ao teólogo africano Desmond Tutu que reza: “Não há nada mais político do que dizer que religião e política não se misturam.” Com essa afirmação, ele não pretende “macular” a religião, mas constatar uma realidade irremediável: como parte da identidade de um grupo, a religião se articula de forma consciente ou inconsciente à cultura e, naturalmente, a uma ideologia política; isto é, a uma maneira peculiar de pautar relações entre os seres humanos. Não é inevitável falar de religião sem recorrer à política, mas há situações determinantes em que ambas se encontram. Como em qualquer relacionamento, elas negociam preceitos e princípios para articular uma práxis.
Assim como a religião se expressa na cultura, ela também se expressa na política. O problema, no entanto, é que existem maneiras desprezíveis de fazer política, e outras igualmente deprimentes de fazer religião. Quando a religião é afirmada como superioridade de um povo e, ao mesmo tempo, se une a um discurso político de “limpeza étnica”, o casamento é demoníaco. Nos EUA, por exemplo, a religião da maioria tornou-se ferramenta do Partido Republicano para implantar uma ordem cristã. De forma semelhante, no Brasil, ela é articulada pela bancada evangélica em nome da moral e dos bons costumes “judaico-cristãos”.
Os adventistas do sétimo dia, desde os primórdios de seu movimento, militaram contra a união entre a má política e a má religião expressa nos lobbies entre a Igreja e o Estado. O próprio documento oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) afirma essa repulsa, e, com razão, defende uma posição apartidária em suas relações com o governo. No entanto, como qualquer organização humana, a igreja tropeça em contradições: no afã de negar relações partidárias, ela negou também suas ações políticas. Se esqueceu de que é impossível organizar-se como religião sem aplicar à sociedade um projeto político. O resultado: uma liderança que assume posturas políticas de forma inconsciente ou dissimulada, disfarçadas como discursos de piedade religiosa, e que só vê a política como meio de conquistar benesses para sua corporação.
Não é errado possuir posturas ideológicas no que tange a política. Muito pelo contrário, é inevitável; reconhecer isso demonstra inteligência e sensibilidade para com a organização e as demandas da sociedade. A liderança adventista precisa reconhecer que possui ideologias políticas e, ao mesmo tempo, ter consciência de que não possui outra alternativa. Ela não deve se filiar a partidos políticos, mas deve reconhecer que não é possível ser uma igreja neutra. Do contrário, resulta o que observamos: a negação da política por meio de discursos políticos que não se reconhecem como tal.
Essa postura não é exclusividade da igreja brasileira. O fenômeno da negação da política por meio de discursos políticos, apesar de combatido por nossos pioneiros, possui raízes antigas na história do adventismo: podemos observá-lo na submissão de nossos líderes ao nazismo na Alemanha e a ditaduras militares na América Latina, ou mesmo nas relações da Associação Geral com a União Soviética nos anos da Guerra Fria. Tantos casos borram a linha já tênue entre pragmatismo institucional e compromisso ideológico na IASD.
No Brasil, o discurso político velado trouxe graves problemas à membresia adventista. Durante nossa ditadura civil-militar, infelizmente, temos evidências de que a igreja compactuou com o Estado de maneira promíscua, não apenas elogiando seu discurso ideológico, mas legitimando a perseguição e a violência contra dissidentes. De maneira igualmente velada, ela vulgarizou movimentos populares e de esquerda, como movimentos por moradia (MST e MTST, por exemplo) e o Partido dos Trabalhadores (PT), negligenciando o cuidado com seus próprios membros, acusando-os de criminosos! Não por acaso, no atual governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, ela imuniza aliados ideológicos e persegue qualquer evidência de esquerdismo entre pastores e membros adventistas. Em todos esses casos a IASD nega o aspecto político de suas ações, e, cega à contradição, prioriza projetos ideológicos à direita em nome da verdade.
Frente a essa realidade, a revista Zelota organiza, neste primeiro semestre de 2021, uma edição dedicada ao tema adventismo e política. Isso significa que, durante seis meses, ela publicará artigos, matérias, entrevistas e opiniões sobre essa relação na América Latina e no mundo. O objetivo, obviamente, não é difamar ou dividir a congregação: o intuito é analisar os acontecimentos de maneira crítica e interpretativa para, assim, delimitar caminhos de esperança na relação entre política e religião no contexto adventista.
Essa associação pacífica só é possível porque os editores e colaboradores desta edição não compreendem política de uma perspectiva conspiratória ou pecaminosa, mas como fenômeno cuja compreensão é necessária para o convívio social. Se uma pessoa está doente, ela recorre à ciência da medicina. Se não há solução natural, recorre-se à fé. Assim também ocorre com as ciências humanas: se precisamos compreender melhor a sociedade a fim de reorganizá-la de forma mais justa, recorremos às ciências sociais e à vivência dos injustiçados. Quando se esgotam as forças e falham os planos humanos, recorremos à fé que inspira as boas ações na esperança de uma nova terra.
Desde de Ellen G. White, os adventistas apreciam o bom uso da ciência natural para ilustrar o propósito divino na criação. Atualmente, eles precisam entender que a política também é iluminada pela ciência e, como tal, pode ser benéfica para colaborar com os propósitos de Deus, revelando ideais divinos para a organização das sociedades humanas.
Por fim, a revista também quer afirmar um ponto de encontro inevitável entre o adventismo e posições políticas como o marxismo: a esperança. É justamente nesse aspecto que essa ciência política pode enriquecer a missão da IASD. Para os comunistas, por exemplo, a esperança é a utopia que motiva à ação política para a transformação do mundo. Para os adventistas, contudo, ela tem sido apenas um slogan; é a propaganda de uma utopia futura pela qual não agimos de forma política no presente, com medo de sermos “esquerdistas demais”.
Nas palavras do poeta cubano Eliseo Diego, em conversa com Frei Betto em O Paraíso Perdido: Viagens ao Mundo Socialista, “o marxismo é uma ciência, e o cristianismo, uma revelação divina”. Com isso, o poeta entende que ambos se complementam: o primeiro como ofício intelectual humano, e o segundo como vontade revelada de Deus. Se há esforços humanos para a ordenação de uma sociedade mais justa e, do outro lado, o imperativo divino com base em promessas futuras para um mundo melhor, há infinitas pontes de esperança entre política e religião.
os editores.