Em tempos de ditadura militar, missão adventista entre os indígenas teria desnutrido 80% dos carajás e espoliado artesanato da aldeia
No último sábado (6), em nosso púlpito predileto, mais uma vez a mesa estava posta para aquele banquete intelectual com sabores extravagantes que a gente espera com ansiedade semana a semana. O pastor Michelson Borges, conhecido entre outras coisas pelo seu blog Outra Leitura, e mais recentemente por ser um dos mais eficientes divulgadores olavistas nos corredores da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), nos presenteou com a conhecida criatividade de quem faz malabarismos para defender o que pensa, ainda que sob solo instável.
Seu sermão, intitulado “Janela para o Futuro”, está mais para “Voz do Passado”, já que seus argumentos foram usados em outros tempos — não para convencer os irmãos de que a ação dos colonizadores era motivo de louvor a Deus, mas para legitimá-la. Insultar, agredir, injuriar, tornar bárbaro o indígena não é tarefa inédita. No sábado, essas ideias foram usadas para defender os colonizadores, chamados de “primeiros cristãos”; já na história de nosso país, as mesmas ideias foram úteis para autorizar a escravização e genocídio dos povos nativos. Já que esta mensagem abriu uma porta para o passado, é um bom momento para aproveitar e estabelecer o difícil e raro exercício da reflexão histórica.
Falar do indígena — como ele é; o que gosta; o que quer ou não quer; não parece tarefa difícil para algumas pessoas. O que elas têm em comum, além de não serem indígenas? A provável facilidade de classificar o outro a ponto de transformá-lo numa extensão de si.
No dia 24 de janeiro de 2020, Bolsonaro representou bem esse espírito quando, na live cotidiana de inacreditáveis surpresas, cravou: “Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós.” Essas transmissões oferecem sabores cada vez mais próximos de alguns sermões de sábado, confundindo o público quanto a seus respectivos propósitos e temas, já que na live do presidente também se fala de Deus, e no púlpito da igreja também dos indígenas brasileiros.
O discurso de sábado tem implicações práticas já visíveis em nossa história recente, tanto do país como da igreja adventista. Em agosto (7) de 1973, em plena ditadura militar, o Jornal do Brasil inaugurava uma novela que se desenrolaria por mais alguns anos e edições. O título da nota é: “General Bandeira desmente atrito com adventistas”. O general era presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), e a nota se referia a uma notícia publicada por outro jornal carioca, dizendo que os adventistas seriam expulsos da Ilha do Bananal, às margens do rio Araguaia. À época, o general “salientou que a FUNAI mantém as melhores relações com a missão protestante. ‘Não vou ficar comentando jornal todos os dias’, disse irritado o General Bandeira.”
A crise ficaria mais evidente três anos depois, contradizendo o que disse Bandeira, quando o jornal, em 1976, traz a notícia com maior destaque: “Funai constata que missão religiosa trata os carajás com discriminação racial”. O texto do corpo diz: “Os indios carajás do Posto de Fontoura, na ilha do bananal, sofrem discriminação racial por parte da missão religiosa dos Adventistas do Sétimo Dia. A missão tem duas igrejas, uma para os índios, e outra só para brancos — proíbem que os índios comam carne de porco, de peixes de couro e de tartaruga e adquirem seus objetos de artesanato através de permuta.”
O jornal permite, algumas edições depois, a resposta do pastor Walter Streihorst. Ali ele afirma que a igreja construiu um templo em estilo carajá para se aproximar daquela cultura, mas não restringe acesso a nenhum dos dois lugares que havia construído para adoração.
A fala do pastor Michelson Borges aponta no índio um ser humano menos civilizado, de segunda categoria, em contraposição ao colonizador que não deve ser tão mau quanto se prega nos livros de história. O índigena e o colonizador são separados pela ausência da Bíblia na vida do primeiro, o que o transforma no mais vil dos homens. Assim como Bolsonaro, o pastor Michelson parece esperar que aquele homem se torne como um de nós, ou é melhor que seja eliminado. As reportagens citadas denunciam justamente a prática nefasta de se tentar civilizar o indigena, mancha na história de nossa instituição, através da dominação de áreas fundamentais para a subsistência de qualquer povo: a produção humana, histórica e cultural, que era sequestrada por meio de permutas; a dieta; e o lugar de adoração.
Tudo parecia culminar para o encerramento da discussão quando o jornal destaca, em maio (23) de 1976, mais absurdos: “Missão espolia comunidade de índios carajás.” Como num arremate, na quarta matéria sobre os adventistas do Araguaia, o texto traz a denúncia de técnicos da FUNAI e dos carajás sobre a atuação da igreja ali:
“Índios carajás e o chefe do Posto Indigena Fontoura confirmaram a denúncia de técnicos da Funai em Brasília de que a comunidade está sendo espoliada pela Missão Adventista dirigida pelo pastor Caleb Pinho, ali instalada há mais de 40 anos. Além de promover permuta ilegal de artesanato, a Missão é indiretamente responsável pela subnutrição — 80% dos indios estão anêmicos — devido às proibições religiosas alimentares impostas aos indígenas.
O pastor afirma que dali não sai, bota na cadeia os denunciantes porque tem “amigos influentes” em Brasília. O chefe do posto indígena teme ser afastado do cargo a exemplo do que já ocorreu com sete que o precederam: ‘Fora os caciques, chefe aqui não esquenta posto’, disse ele, acrescentando que os outros foram retirados por intrigas e denúncias do pastor Caleb de que eram ‘incompetentes, ou subversivos’.”
A declaração do pastor Caleb Pinho é impressionante e reveladora. O discurso de autoridade está alicerçado numa relação promíscua e vergonhosa, muitas vezes velada, entre o líder de uma missão religiosa adventista e seus “amigos de Brasília”, em plena ditadura militar. Além do discurso autoritário, a declaração é uma ameaça, uma vez que, aqueles que o denunciassem seriam jogados na cadeia por serem delatores. O próprio chefe do posto indígena teme o afastamento, que não seria inédito, a partir de movimentos do pastor Pinho. A linguagem autoritária do estado é importada para o discurso do pastor, de modo que o domínio e a ordem da missão deveriam ser preservados. Os inimigos da missão são classificados de modo muito parecido aos inimigos da ditadura: o pastor os denuncia como subversivos, ou agitadores incompetentes.
O resultado do encontro daqueles povos com uma cultura supostamente bíblica resultou, depois de 40 anos de convívio, em 80% da população indígena com subnutrição, possivelmente pelas restrições alimentares impostas; seus retalhos e artesanatos sendo apropriados e vendidos pela missão a um custo de 40 C$ (valor aproximado de 0,50 centavos de real); e isso sem contar o sequestro da dignidade humana pelas restrições nos espaços de adoração e ressignificação de mundo, no qual, nesse novo modelo, deixam de ser o que eram para nascerem bárbaros passíveis de domínio; seja este religioso, cultural, alimentar ou físico.
Fonte: Revista MBS (7 out., 2014, número exclusivo).
Por outro lado, pode-se experimentar significativos avanços da década de 1970 para cá. Em um cenário no qual o negacionista e o evangélico se confundem como uma coisa só, a igreja desponta com iniciativas que destacam a valorização da ciência e o uso de suas recentes conquistas para a proteção de indígenas e ribeirinhos da região norte do país. Como fica claro nas publicações do dia 1.º e 5.º de fevereiro de 2021: “O risco de não vacinar” e “Do laboratório para o braço” respectivamente, que surpreendem os mais experientes e os incrédulos: existe inteligência em meio à fé, a igreja pode andar ao lado da ciência.
Séculos atrás, a mesma lógica que orientou o pastor Caleb Pinho e Michelson Borges nasceu a partir das experiências europeias, diante dos descobrimentos que subverteram a lógica e os pilares que explicavam o mundo como tal. Neste tempo, lugares não rastreados, plantas e animais não classificados, e homens estranhos passaram a fazer parte do imaginário de um “Novo Mundo”. Impossível imaginar o impacto daqueles que praticavam a poligamia, andavam nus, faziam guerra e comiam uns aos outros, entre os descobridores.
Eram canibais, já afirmava Cristóvão Colombo, líder da primeira frota que alcançou o continente americano em 12 de outubro de 1492. A origem do termo, segundo a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, encontra raízes nos povos indígenas da América do Sul e caraíbas antilhanos, cuja derivação espanhola “caribal” sugere o surgimento da expressão “canibal”, que logo foi associada a práticas relatadas pelos impressionados europeus, que escreviam perplexos a respeito dos costumes antropofágicos locais.1
Era urgente incorporar a descoberta à visão europeia do mundo, e logo isso aconteceu. Os novos personagens dos textos e figuras dos viajantes eram, desta forma, descendentes de Cão (Cam), filho mais novo de Noé, que recebera a maldição por rir da embriaguez do pai, condenado a ser servo dos servos. A própria terminologia moderna de canibais, além dos caraíbas, também encontra origens na identificação com os descendentes de Cam.2
Assim, os indígenas já surgiram no pensamento europeu como amaldiçoados. Essa foi a base usada para legitimar os futuros atos de escravização, não só de indígenas como também do comércio africano de escravizados, já que ambos eram considerados descendentes da mesma maldição. O banquete ideológico do último sábado não está distante dessa fonte. Borges, na tentativa de defender uma cultura “superior” supostamente regida pela Bíblia, recalcula a invasão européia, produzindo um cenário estranho aos acontecimentos históricos, questionando o próprio termo “invasão”.
Em seu diário da primeira viagem ao Caribe, Colombo guarda curiosidade e espanto ao citar que os habitantes das ilhas tinham em sua dieta o consumo da carne humana, chamando-os de “caribes” ou “canibes”. Já na segunda viagem às Antilhas, o nome vira adjetivo, e sua difusão consolida o novo objetivo geral dos exploradores — a escravização da população nativa. Na carta-registro escrita à coroa, o explorador dizia que eram “preguiçosos, andavam nus, eram carentes de vergonha, pintavam o corpo para a guerra e usavam apenas tatuagem, braceletes e colares para cobrir as intimidades.”3 Assim, os nativos eram tão bárbaros quanto se podia imaginar, mas poderiam ser úteis como bons escravos.
Assim como o pastor Michelson e Colombo, outro explorador tem uma atuação fundamental para a consolidação da imagem negativa dos indígenas. Américo Vespúcio, além da narrativa escrita, descreve cenas de canibalismo com imagens publicadas no livro Mundus Novus de 1504, que se popularizou em grande escala. Pelo testemunho pessoal, além da sedução das imagens, o nativo ganha contornos de uma gente sem ordem e fé, sem noção do mínimo civilizatório: de propriedade, dinheiro ou família. Uma “outra humanidade decadente”, que contrastava com o ambiente paradisíaco em que se encontrava.
O excerto do sermão de Michelson, ainda que feito mais de cinco séculos após o livro Mundus Novus, parece tê-lo como bibliografia. Sem qualquer tipo de reflexão ou fontes, o “tupi” citado pelo pastor é colocado como oposto de uma outra invenção “olavista”: os chamados “pilares da civilização judaico-cristã”, que certamente nortearão outras discussões. No entanto, o que interessa agora é justamente destacar o que parece servir aos mesmos interesses dos colonizadores: dar contornos decadentes aos nativos para, de forma inversamente proporcional, valorizar o que é cristão como civilizado, incluindo a igreja ou o que o pastor chamou de “os primeiros cristãos”.
A França inaugura uma nova perspectiva e faz uma discussão semântica fundamental para os nativos ganharem novos lugares no imaginário europeu. Até então, duas noções conviviam no mesmo espaço: o canibalismo e a antropofagia. Quase um século depois do livro Mundus Novus, Montaigne, em 1580, diferentemente do que fez Borges, coloca os Tupinambá numa posição até então de rara dignidade. Em Os Canibais,4 que foi escrito a partir de diálogos com índios radicados na Europa, o filósofo inaugura uma nova perspectiva sobre os homens do Novo Mundo. Até então, o encontro dessa nova humanidade produziu perguntas monocromáticas em direção ao que se via. Montaigne diante do novo, se pergunta: quem somos nós?
O autor, no ensaio citado, postula: “Mas, voltando ao assunto, não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e na verdade, cada qual considera bárbaros o que não pratica em sua terra […]”.5 Tendo como pano de fundo as guerras religiosas que dominavam a Europa do século XVI: “Por certo em relação a nós são realmente selvagens pois entre suas maneiras e as nossas há tão grande diferença que ou o são ou somos nós.”6 Segundo a historiadora Manuela Carneiro da Cunha, esses canibais encontrarão em Montaigne:
“Uma consagração duradoura. Tornam-se a má consciência da civilização, seus juízes morais, a prova de que existe uma sociedade igualitária, fraterna, em que o meu não se distingue do teu, ignorante do lucro e do entesouramento, em suma, a da Idade de Ouro. Suas guerras incessantes, não movidas pelo lucro ou pela conquista territorial, são nobres e generosas. Regidos pelas leis naturais ainda pouco corrompidas, estão próximos de uma pureza original (…) Até sua culinária é sem artifícios! Esse resumo das virtudes dos canibais, com seus lapsos evidentes — a agricultura, por exemplo, existe entre os Tupi— não é um discurso de etnólogo e sim de moralista, e como tal deve ser entendido: constitui o advento de uma duradoura imagem, a do selvagem como testemunha de acusação de uma civilização corruptora e sanguinária. Não é fortuito que Montaigne, no fim de seu ensaio, mencione as objeções que ouviu de três índios brasileiros com quem o jovem rei Carlos IX (que entrava em Rouen, em 1562, após ter sido subjugada a rebelião da cidade) conversou. Os índios, conta Montaigne, estranhavam que homens feitos obedecessem a uma criança — o rei. E estranhavam também que existissem na mesma sociedade ricos e mendigos.”7
A descoberta do outro coloca a si em perspectiva, e questiona não os valores dos indígenas, mas antes os seus próprios — um exercício ainda difícil para o cristianismo do século 21, que tem o sermão e o texto do pastor Michelson como exemplo.
Na disputa de versões, mesmo no século 16, outro personagem é muito importante para essa discussão. Jean de Léry, pastor e sapateiro, membro da igreja na fase inicial da Reforma, não economizava palavras para relatar “os peixes velozes, pássaros de todas as cores, tartarugas gigantes, baleias imensas, borboletas coloridas, golfinhos animados, macacos, ratos, crocodilos e jacarés, quatis, tatus e os famosos papagaios, também de todas as cores.”8
Contudo, aos nativos é reservada a impressão mais forte. Desde o cotidiano do povo, seus espaços domésticos, cozinha, alimentos, até o esforço por entender o lugar da guerra e vingança naquelas sociedades, assim como a maneira pela qual suas ‘regras’ primavam sobre a ‘gula’; tudo isso fez parte dos relatos do pastor reformista. Retornando a Genebra ele seria informado sobre a Noite de São Bartolomeu, que em 24 de agosto de 1572 testemunhou o assassinato de protestantes por católicos na França, e que se tornou o gatilho para o início de uma sangrenta guerra civil no país.
Entre estes dois mundos a conclusão para o pastor era de que a guerra e as práticas canibais (antropofágicas) não tinham como objetivo satisfazer as necessidades fisiológicas, mas sim significavam formas de comunicação próprias, o reconhecimento das virtudes dos inimigos, agora incorporadas por essas práticas.
Não existe aqui uma defesa da antropofagia, ou canibalismo, definitivamente. Há, no entanto, um esforço contra as reduções que comunicam mal, reduzem e sequestram a dignidade própria de qualquer homem ou mulher. Diante do outro existe a possibilidade para questionar-se a si. O que os colonizadores ofereceram e fizeram, em nome da Bíblia ou do Senhor, supera o que existia? O que a igreja adventista ofereceu aos Carajás corresponde à humanidade daquela gente? A Bíblia não precisa ser defendida, muito menos com argumentos desonestos que valorizam a prática da iniquidade e do pecado em situações inacreditáveis, daqueles “primeiros cristãos”, louvados por Michelson. E para aqueles que costumam sequestrar Deus e aprisioná-lo em seus próprios costumes e práticas, Ele mesmo responde: “Não me sois, vós, ó filhos de Israel, como os filhos dos etíopes? Diz o Senhor: Não fiz eu subir a Israel da terra do Egito, e aos filisteus de Caftor, e aos sírios de Quir?” (Amós 9:7). Ele é o Deus dos povos todos.
Referências
1. ↑ SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 59
2. ↑ Idem.
3. ↑ Idem, op.cit, loc. cit p. 29
4. ↑ Montaigne, “Os canibais”. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1972, pp. 101-6. Apud idem, loc. cit p. 23
5. ↑ Idem, Ibidem.
6. ↑ Idem, Ibidem.
7. ↑ CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 1992, p. 34-35.
8. ↑ Idem, op. cit, loc cit. p. 59